segunda-feira, 12 de julho de 2021

M611 - ENTREVISTA COM KAÚLZA DE ARRIAGA (conduzida por Batista-Bastos) - "Público" (1994)

Kaúlza de Arriaga- entrevista interessante, susceptível de desfazer mitos e equívocos. Novas perspectivas do que poderíamos ser de diferentes.

Entrevista conduzida por Batista-Bastos -  "Público" (1994)
ENTREVISTA COM KAÚLZA DE ARRIAGA
Kaulza de Arriaga, o último centurião
"Quem Diz Que Sou Fascista É Um Idiota" 


Recebe-me com a cortesia de um cavalheiro antigo, e os modos delicadamente afáveis de um homem marcado por esmerada educação. O registo da voz é claro, metálico, bem timbrado. Move-se com extrema presteza para quem tem 84 anos. O raciocínio é límpido, rápido. A frase é imperativa, por vezes cortante, sempre sólida, bem construída na locução. Um homem de outro tempo, penso agora. E também penso: fazia-o mais alto, sei lá porquê?, fazia-o arrogante, fazia-o intempestivo, fazia-o insolente. A insolência e a arrogância intempestivas de quem se habituou a mandar e a gerir destinos. Surge-me uma pessoa de meã estatura, jovial, sorridente, olhar de corte biselado, uma espécie de felino com um instinto subtil e seguro. E um gosto acentuado pela ironia, pelo sarcasmo. Recusa a cultura tecnocrática. Detesta o liberalismo. Não acredita na redenção de um pusilânime. Defende que Portugal estava incumbido de um papel histórico, que tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética impediram de realizar.
Kaulza de Arriaga fez da sua vida um friso, no qual se acentua uma pessoal visão do mundo. Não desvia opiniões, não vacila quando qualifica aqueles que entende falhos de carácter e de coragem. Diz: "O Spínola não era grande coisa, mas o Costa Gomes é pior!" No balanço dos factos e no varejo dos homens, aprendeu que a condição humana está cativada de ritos, de convenções e de preconceitos. E, também, que a História não é apenas escrita pelos vencedores: os vencidos têm sempre uma palavra a dizer. Exactamente porque são as grandes sombras de todas as grandes tragédias.
P. - Onde estava no 25 de Abril?
R. - Em casa, a dormir.
P. - Percebeu que havia um golpe militar em preparação?
R. - Já tinha percebido; mais do que isso: já tinha preparado o contragolpe, com forças mais do que suficientes para dominar qualquer golpe. Isto por intermédio de dois generais - desculpe, mas não lhe direi os nomes - , um da Força Aérea, outro do Exército. E tínhamos quatro planos, de seus nomes A, B, C, D. Como disse, estava a dormir e, por volta das três, quatro da manhã, telefonam-me a avisar de que estava a ocorrer um golpe. Sabíamos que ia ocorrer um golpe, mas não sabíamos a data exacta. Estive sempre em contacto telefónico até às oito da manhã, para saber o que se passava, e telefonei para os dois generais, para dar a seguinte ordem: executem o plano B. Fiquei bastante satisfeito, porque o contragolpe ia entrar em acção, e iria acabar com o 25 de Abril. Por volta das dez e meia da manhã do dia 25 de Abril, telefonam-me os dois generais, dizendo-me: "Meu general, está tudo perdido, porque as suas tropas - as suas tropas! - aderiram ao golpe." E eu cometi um dos maiores disparates da minha vida: acreditei naquilo que me diziam! Porque era mentira, quem aderiu ao golpe foram os generais, as tropas estiveram até às sete da tarde à espera das minhas instruções!
P. - O que era o plano B?
R. - Já não me recordo! Eram tantos planos. Isto que estou a dizer é a verdade, não me recordo.
P. - Afinal de contas, de que tropas dispunha?
R. - Não digo! Revelar-lhe seria certamente uma complicação para muitas pessoas. Porque parte delas estão aí...
P. - Como é que o senhor sabia que estava um golpe militar em preparação, se os serviços de inteligência estrangeiros, e a PIDE, não sabiam nada disso?
R. - Já tinha havido o 16 de Março. As coisas denunciaram-se nessa altura. Se o poder de então fosse mais clarividente, tinha mandado prender todos os oficiais implicados nesse golpe. Não só os deixaram em liberdade, como os espalharam por todo o país. E esses oficiais contaminaram todo o país.
P. - Admitindo a hipótese de que o contragolpe do senhor general saísse vitorioso, o que aconteceria ao Governo de Marcello Caetano?
R. - O Governo era imediatamente demitido. No entanto, o Presidente da República, almirante Américo Tomás, não seria demitido. Aliás, dava-me muito bem com ele, e ele até sabia um pouco daquilo que se passava. Eu faria outro Governo. E tinha uma decisão a tomar: ficaria eu como presidente do Conselho, ou arranjaria outra pessoa? Quer ficasse eu, quer ficasse outra pessoa na presidência do Conselho, o Governo seria sempre escolhido por mim.
P. - E esse Governo seria constituído por militares?
R. - Não. Só haveria militares em certas pastas, como a do Exército, mas o Governo seria civil.
P. - Havia civis que sabiam dessa sua intenção de fazer um contragolpe?
R. - Sim. O [antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar] dr. Franco Nogueira sabia. O [antigo ministro da Economia de Salazar] José Gonçalo Correia de Oliveira também sabia. Estes dois nomes eram duas pedras minhas, qualquer um deles dava um bom presidente do Conselho. E havia outros nomes, mas estes eram os mais importantes.
P. - Havia pessoas dos grandes interesses económicos que estivessem ligadas a essa sua intenção?
R. - Ninguém. Vou-lhe contar uma coisa a respeito disso: em 1965, houve eleições presidenciais, e o Santos Costa indicou ao Salazar o meu nome, dizendo que eu dava um bom Presidente da República, e a minha mulher uma boa primeira dama. O Salazar concordou, e disse à União Nacional para tomar as medidas necessárias para que eu fosse o próximo candidato a Presidente da República. Até houve pessoas do capital que me ofereceram banquetes, porque era o futuro Presidente da República. Banquetes a que eu e a minha mulher presidimos, como se já fôssemos Presidente da República. De repente, silêncio! Nunca mais se avançou com o meu nome para a candidatura! Após o 25 de Abril, o Manuel Queirós Pereira, que já morreu, disse-me: "A culpa do 25 de Abril, e de tudo o que sucedeu, é nossa, dos capitalistas." "Porquê?", perguntei-lhe. "Porque, quando você foi secretário de Estado, disse, num discurso, que em Portugal há fortunas grandes de mais, face ao nível médio financeiro da população - o que, de resto, era verdade - e nós, capitalistas, ficámos aflitos. Pensámos que você era um socialista. E fomos dizer ao Salazar para que desistisse do seu nome. E Salazar desistiu." Por isso nunca fui Presidente da República.
[Numa das paredes, um rectângulo espelhado com a imagem de Franco em alto contraste. Lá está, também, o apelo à virilidade, à coragem e à grandeza de Espanha, na reprodução de um discurso do ditador. E uma data funesta para os franquistas: 20 de Novembro de 1975. A efeméride da sua morte. Nas estantes, lembranças de África, retratos de família, livros. O general manifesta grande admiração por outro general: De Gaulle, cuja glória entende corresponder à imponência de um destino singular. E lá estão os volumes de memórias do militar que resgatou a honra da França. Volumes que costuma ler e reler, detidamente, com mão cuidada e diuturna atenção. Diz: "Foi um homem do tamanho do século, num século de titãs." Conto-lhe: "O Claude Roy escreveu, uma vez, sobre De Gaulle: 'A pátria está-lhe grata, a literatura é-lhe devedora, a República tem de se acautelar.?" Ri com gosto: "Excelente definição. Mas não se me aplica." Mora, há quarenta anos, na avenida João XXI, casa alugada, bela, ampla, mobilada com gosto e discrição. Oferece-me chá, oferece-me um álcool. Tudo isto sem resultar nada de enfático ou de pretensioso. Dirá: "Sou contra os extremismos. Os extremismos, aos quais são inerentes processos coercivos e agressivos, conduzindo, geralmente, à violência e ao crime, são, do ponto de vista moral e humano, ilegítimos e, em absoluto, condenáveis e inaceitáveis." E eu: "Considera-se um democrata?" Ele: "A democracia pluralista é o melhor sistema que a imaginação dos homens produziu e pôs em vigor."]
P. - Quando dizem que o senhor é um general fascista, como reage?
R. - Nessas coisas mantenho-me num plano de superioridade. Quem diz isso é idiota, não sabe o que diz. Além disso, são canalhas, porque dizem isso com má intenção. Não tenho nada de fascista! Sou um homem, desde a universidade, da direita democrática social. Mas social não é socialista, mas sim de uma ideia de fraternidade.
P. - Porque aderiu ao chamado Estado Novo?
R. - Primeiro, porque o Estado Novo não era fascista, nem nazista, nem comunista. Os três grandes regimes totalitários não tinham expressão no Estado Novo. O Estado Novo tinha um certo autoritarismo, embora não fosse totalitário, nem fosse, também, um estado democrático. Aderi ao Estado Novo quando fui convidado para colaborar com o gabinete do ministro da Defesa. E fiz uma análise ao Estado Novo em si, antes de aceitar, para saber se merecia ou não colaborar com ele. E concluí positivamente pelo Estado Novo. Salazar pôs em ordem a vida política, económica e social portuguesa, na sequência do golpe de 28 de Maio. Esse golpe pretendia ordenar este país, que estava num estado caótico, graças à I República. O 28 de Maio foi, no entanto, uma ditadura. O Estado Novo, que acaba com essa ditadura, aprovando a Constituição de 1933, herdou certos traços autoritários da ditadura militar do 28 de Maio...
P. - No entanto, historiadores insuspeitos dizem que essa Constituição foi aprovada até com os votos de mortos, e as abstenções tinham um carácter favorável para a aprovação da Constituição...
R. - Se houve algum vício, durante a aprovação dessa Constituição, não foi maior do que os vícios que existem agora. Eu aceito o autoritarismo do Estado Novo, mesmo sem que houvesse uma democracia, porque os sistemas políticos têm de se adaptar às conjunturas do momento. Ora, em 1933, pensa-se logo na transição para a democracia, mas em 1936 começa a guerra de Espanha. Essa guerra era de comunistas espanhóis, contra não comunistas espanhóis. Já viu o que era termos aqui, em 1936, uma democracia com os comunistas? Teríamos uma guerra civil em Portugal. E é isso que impede a transição para a democracia, já em 1936.
P. - Mas o Salazar não era um democrata.
R. - Não sei, nunca falámos disso.
P. - E como eram as suas relações com Salazar?
R. - Deixe-me só concluir isto. O Salazar teve uma importância enorme para a derrota dos comunistas na guerra de Espanha. Se assim não fosse, teríamos os comunistas por toda a Península Ibérica, era uma tragédia. Imediatamente a seguir a isto, dá-se a Segunda Guerra Mundial. E, aqui, há um pormenor curioso: o Salazar impede a comunização de Espanha, e durante a Segunda Guerra Mundial impede a nazificação de Espanha. O Teotónio Pereira conseguiu impedir que a Península Ibérica fosse aberta às tropas nazis, porque o Hitler tinha uma ideia persistente: dizia que era uma vergonha que Gibraltar fosse inglesa. E queria invadir a Península para libertar Gibraltar! E o Teotónio Pereira consegue convencer o Franco a não ir nessa conversa do Hitler. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, começam os problemas das colónias ultramarinas. Foi preciso segurar o Ultramar. E foi isso que me levou a colaborar com o Estado Novo. Ficou claro?
P. - Muito claro. O senhor general é daqueles que chama aos capitães de Abril traidores à pátria?
R. - Não. Chamo-lhes outra coisa: presumíveis delinquentes de crime de alta traição. A eles e a outros. O poeta Alegre quis pôr-me em tribunal porque, quando disse isso, encaixou como se fosse dirigido a ele e ao Soares, sendo o Soares, à época, Presidente da República.
P. - E a pátria, para si, estendia-se do Minho a Timor, como se dizia?
R. - Aí entramos numa coisa muito importante: qual era o conceito ultramarino português? Variou com o tempo. Falei com Salazar, a esse respeito, duas vezes: quando entrei para o Governo e quando, sendo ainda membro do Governo, fui, pela primeira vez, a Moçambique. Na primeira vez, perguntei a Salazar se Portugal ia do Minho a Timor para sempre. E ele respondeu-me: "Além de sermos uma pátria, somos uma nação fazedora de nações. É possível que amanhã façamos nações em Angola e Moçambique, mas, para isso, há duas condições: que se desenvolvam de forma a poderem autogovernar-se, senão é o caos. A segunda é que a URSS deixe de existir, para não se aproveitar da autonomia para as absorver." Salazar falava disto connosco. E concordei com isto totalmente.
P. - Mantém relações com antigos governantes de Salazar?
R. - Sim. Mantenho relações com o Adriano Moreira, embora não seja um seu adepto especial. Falo com o Veiga Simão. Não tenho visto o Silva Pinto, embora me tenha encontrado com o Dias Rosas. Também falo com o Baltazar Rebelo de Sousa, embora tenha tido uns atritos com ele e com o Adriano Moreira, no tempo do prof. Marcello Caetano, de modo que não tenho relações íntimas com os dois.
P. - E com os políticos do novo poder?
R. - Com nenhum deles. É óbvio que, para mim, o dr. Mário Soares não existe. Para mim, ele é inexistente. Não posso falar sobre uma coisa que não existe. No outro dia, o filho dele, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, mandou-me um presente, quando fiz anos! Agradeci, mas não abri o presente.
P. - Que lhe dizem os nomes de Álvaro Cunhal, Mário Soares, Sá Carneiro, Francisco Balsemão?
R. - Álvaro Cunhal é dos menos maus de todos, porque, embora laborando toda a vida num erro, foi sempre fiel a esse erro. Mário Soares é um salta-pocinhas. Sobre Sá Carneiro, vou-lhe contar uma história: estava no comando-chefe, em Moçambique, e o meu ajudante-de-campo era o Francisco Pinto Balsemão. E o Balsemão aparece-me, um dia, com um recado do Sá Carneiro. Esse recado dizia que ele, Sá Carneiro, era preponderante na ala liberal da Assembleia Nacional, e queria que eu fosse candidato à Presidência da República pela ala liberal. A minha resposta foi esta: era amigo do almirante Américo Tomás, e nunca aceitaria ser candidato sem falar com ele primeiro. Depois, a palavra liberal dá para tudo, e eu não sabia qual era a política da ala liberal. Só depois de a saber é que poderia dar uma resposta. Passados uns tempos, voltei a Lisboa. O Balsemão e o Sá Carneiro souberam disso, e o Balsemão veio até minha casa repetir o convite. E a minha resposta foi: "Mantenho o que lhe disse antes. Mais uma coisa: não conheço o Sá Carneiro, e o tio dele, o Lumbralles, não me dá umas referências muito brilhantes. É melhor conhecer o Sá Carneiro para lhe dar uma resposta." Combinou-se um almoço em Vila do Conde, e lá fui. Estavam lá umas quarenta pessoas. No fim do almoço, fomos tomar café, eu, o Sá Carneiro e o filho do Manuel Fino. O Sá Carneiro diz-me assim, de caras: "O senhor general não se esqueça de que eu o considero como comandante de tropas de ocupação de um território estrangeiro, que é Moçambique." Dizer isto a um comandante-chefe é uma coisa espantosa. E disse-lhe: "Você tem imensa sorte, porque se me dissesse isso em Moçambique, já estava na cadeia!" De modo que esse almoço não correu nada bem.
P. - Mantém relações com o Francisco Pinto Balsemão?
R. - Nenhumas! Mantinha óptimas relações com o Francisco Balsemão e com a Belicha, a primeira mulher dele, com os seus pais, até eu ser preso. Desde esse dia que não há relações. Ele vê-me, a mim e à minha mulher, cara a cara, e não me conhece. Não sei porquê, mas enfim...
P. - Conheceu certamente de perto alguns oficiais que seriam, posteriormente, os capitães de Abril. De qual deles conserva mais fortes recordações?
R. - Conheci um, que trabalhou na Operação Fronteira. O Mário Tomé foi meu major-de-campo, por ser o melhor capitão operacional em Moçambique. A mulher dele puxava um bocadinho para o socialismo. Ela era formada em Direito, era mais inteligente do que ele, de modo que lhe deve ter dado a volta. Ele era muito rígido, chamavam-lhe "o capitão nazi", mas foi sempre lealíssimo e um óptimo oficial.
P. - Na sua opinião, a guerra de África poderia ter tido outra solução que não a das independências?
R. - Devíamos ter continuado com a guerra. De resto, quem fazia a guerra não éramos nós, eram os russos e os chineses que faziam a guerra contra nós. Devíamos continuar com a acção defensiva da guerra, até que os povos africanos estivessem desenvolvidos. Nós fizemos um esforço enorme na educação desses povos. Fez-se mais em dez anos do que em todo o século anterior. Todo o sistema escolar progrediu imenso. Só faltava que a URSS acabasse para que lhes déssemos a independência.
P. - E o papel dos americanos, no meio disso?
R. - Já vai ver. Numa conferência que fiz no SNI, em 1966, previ o fim da URSS, lá para o fim dos anos 90. Deveríamos continuar com o nosso trabalho em Moçambique até aos anos 90, data em que a URSS acabaria, e nós dávamos-lhes, não a independência, mas a autodeterminação. E eles escolheriam o seu destino.
 [Cinco filhos, oito netos. Mostra-me retratos da família. As frases que diz agora apoiam-se mais em calor do que em ideias, mais em efusão do que em doutrina. "Mas a família pertence aos fundamentos daquilo que sempre defendi." Discreteia sobre África. Fala do tempo quase imóvel, da doçura dos poentes, da beleza estonteante das paisagens. "Agora, leio, escrevo, reflicto." Amigos e inimigos são unânimes: "O Kaulza é um obstinado, é um teimoso; mas é um homem de carácter e inteligentíssimo." Costa Gomes é um dos que sublinham estes traços da índole do seu antigo companheiro de armas e de amizades. Ergue-se do sofá onde se sentara para este diálogo em público. Diz: "Nós podíamos, em África, ter dado outra feição à História."]
P. - A chacina de Wiriamu.
R. - Quando sucede Wiriamu, estava em Lisboa. Passei todo o mês de Dezembro de 1972, até ao dia 21 ou 22, e depois fui para Moçambique, para passar o Natal com as tropas, como fazia sempre. Quando cheguei a Nampula, o brigadeiro Videira, que era o comandante da zona operacional de Tete, disse-me, mal cheguei ao aeroporto: "Há rumores de que as tropas fizeram abusos, num local chamado Wiriamu." "Onde era Wiriamu?", perguntei. "Não sei. Ninguém sabia onde ficava esse local. Até há quem pense que isso foi inventado." Fiz o que fazia sempre, porque, desde que chegara a Moçambique pela primeira vez, já tinha havido dezoito rumores de abuso das tropas. Ordenei, em todos os casos, que os serviços competentes investigassem esses rumores. E, desses dezoito rumores de abuso das tropas, três foram provados. E os prevaricadores foram a tribunal, e foram condenados. Também neste caso, ordenei ao serviço de justiça que abrisse um inquérito. Após um mês de investigações, concluiu-se que não havia nenhuma matéria que justificasse a existência desse rumor, logo, que houvesse algum crime. Mandei arquivar o inquérito, até que houvesse melhor prova.
P. - Bom. Mas a verdade é que, a partir de certa altura, deixou de ser um rumor, como diz o senhor general...
R. - Durante sete meses, após o arquivamento do inquérito, não se falou mais deste assunto. Mas, quando o Marcello Caetano foi a Londres, em visita oficial, na véspera, saiu no "The Times" uma coisa terrível sobre Wiriamu. Foi nessa ocasião que se deu o célebre incidente, em que dizem que, numa manifestação contra o Marcello Caetano, o Mário Soares pisou a bandeira nacional. Não sei se isso é verdade, mas o Mário Soares estava nessa manifestação, isso é um facto. Essa notícia, enviada para Londres pelo padre Hastings, fora mandada pelos padres espanhóis de Burgos, que eram nossos inimigos. Esses padres apoiavam os terroristas, guardavam o seu armamento, socorriam-nos. Tive de fechar quatro missões dos padres de Burgos, o que os deixou furiosos, e dois padres foram julgados em tribunal. Esses mesmos padres afirmaram em tribunal que eram inimigos de Portugal. Esses padres afirmaram que não queriam a nossa presença em Moçambique, que não queriam "perder o comboio", expressão deles. Foram os padres de Burgos que organizaram o escândalo de Wiriamu. O Marcello Caetano ficou arreliadíssimo, porque esperava fazer uma viagem triunfal, e não teve triunfo nenhum.
P. - E como é que o senhor reagiu?
R. - Voltei a Lisboa no dia 3 de Agosto de 1973. No fim de Agosto veio cá o Jorge Jardim, e disse ao Marcello Caetano, ao ministro da Defesa, Sá Viana, ao ministro do Ultramar, Silva Cunha, que houve uma coisa em Wiriamu mais grave do que aquilo que se pensava. O Sá Viana afirmou, depois, para os jornais, que parecia ter havido qualquer coisa grave em Wiriamu. O Marcello Caetano mandou fazer um inquérito, mas com gente daqui, o brigadeiro Nunes da Silva, com a sua equipa, que fizeram o terceiro inquérito de Wiriamu. E esse inquérito teve a mesma conclusão que os outros: não ocorreu nada em Wiriamu. Não houve nenhum crime em Wiriamu.
P. - O marechal Costa Gomes diz de si o seguinte: "Acho que o Kaulza de Arriaga se enganou quando foi para as Forças Armadas. Era uma pessoa muito inteligente, com grande capacidade de trabalho, foi aluno distintíssimo na Faculdade de Ciências (...), mas, quanto a mim, nunca foi, no entanto, um bom oficial."
R. - Isso que ele diz, na segunda parte, é completamente mentira. Já na primeira parte, é capaz de ser verdade o que diz. De resto, o marechal, ele até é marechal!, mente, e mente muito. Pensa-se que, neste livro que escreveu, descobriram-se, pelo menos, duzentas mentiras. Esse livro tem quatrocentas páginas, portanto, há mentiras página sim, página não, fora aquelas que não foram detectadas. Ele diz muito mal das minhas operações militares, que foram um desastre. Isso é tudo mentira. Essas operações, de que ele fala tão mal, foram óptimas, das melhores que fiz. Essas mentiras foram todas respondidas nos meus livros, e posso dar-lhe documentação sobre isso.
P. - O golpe de Botelho Moniz, ou a Abrilada de 1961, destinado a depor Salazar, e a colocá-lo na Suíça, com uma considerável fortuna, e grande conforto, foi abortado pelo senhor. Aquele não seria um caminho possível para a democratização do regime?
R. - Não. Como lhe disse, nunca poderia haver uma democratização, enquanto o problema do Ultramar não estivesse resolvido. A história do conforto do Salazar, só agora é que se fala nisso. Não tenho ideia nenhuma de que o Salazar fosse para a Suíça, com todo o conforto e bem tratadinho. Mais, o nome do golpe do Botelho Moniz é "13 de Abril". Isto é muito interessante: o golpe não foi impulsionado pelo Botelho Moniz. Ele estava doente da cabeça. Fui com ele a Paris, numa viagem oficial, e aquilo foi um desastre. Quem está atrás desse golpe é o Costa Gomes. Ele é que foi o cérebro desse golpe. E os Estados Unidos também estavam metidos nisso, lembre-se de que a Abrilada é feita no tempo do John Kennedy. O adido naval da embaixada americana em Lisboa, comandante Fitzpatrick, era da CIA, e dava-se imenso com o Costa Gomes. Soube disto tudo pelo próprio Botelho Moniz! Mais tarde, encontrei o próprio Fitzpatrick, que me corroborou a história.
P. - Como é que o senhor se opôs à tentativa do golpe?
R. - Percebi que ia haver um golpe militar. O Botelho Moniz queria reunir, no dia 13 de Abril às cinco da tarde, todos os generais. Se aderissem ao golpe, muito bem. A base das operações seria a Escola Prática de Infantaria, em Mafra. Pus a Força Aérea e os pára-quedistas, que era a melhor tropa da altura, de prevenção. Isto perturbou imenso o Botelho Moniz. Fui a essa reunião, o que foi um risco, e ele disse-me: "Porque pôs esta tropa de prevenção?" "Porque mandei! Tenho os pára-quedistas em Lisboa de prevenção." "Ninguém lhe deu ordens para isso." Respondi-lhe: "É a sua opinião. A minha é outra." Ainda julguei que o Botelho Moniz me prendesse, no final da reunião. E a coisa acabou da seguinte maneira, em que eu próprio me espantei com o modo como o fiz: a reunião de todos os generais, às cinco da tarde, era na Cova da Moura. Tinha o meu posto de comando no Aeródromo Militar. Às onze da manhã, chamei o Lumbralles e o Solari Allegro, que era uma espécie de chefe de gabinete do Salazar, e o chefe da casa militar do Presidente da República. Disse-lhes: "Às três da tarde, quero ouvir na Emissora Nacional a notícia de que foram demitidas certas pessoas e nomeadas outras. Se isso não acontecer, às cinco da tarde estamos em guerra civil, ou estamos todos presos." Isto era uma espécie de ultimato ao Salazar e ao Presidente da República! E, durante todo este processo, nunca falei com o Salazar! Não sei se ele, alguma vez, me perdoou isso. Eles saíram, chega o general Gomes de Araújo, e disse-lhe: "Arrisquei tudo. O senhor vai ser nomeado chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, e tem de impedir que os generais do Exército venham à reunião das cinco horas. Já impedi outros generais e almirantes. Só lá mandei ir o Albuquerque de Freitas." Ainda me perguntaram se achava que o Salazar devia ser ministro da Defesa interino. Achei mal, mas disse que os substitutos deviam estar ao encargo dos senhores. Não quis nomear ninguém. E, às três da tarde, lá apareceu a emissão, conforme eu pedi. Espantoso, não foi?
P. - Quer dizer, o Salazar seguiu as suas ordens!
R. - Sim, praticamente, seguiu-as. Às sete da tarde, o Salazar telefonou-me, e diz-me para me encontrar com ele. E disse-lhe: "Vou já aí, mas gostava que fizesse uma declaração pública." O que, para ele, era uma coisa terrível, mas diz-me o seguinte: "Uma declaração, por causa de uma remodelação ministerial de rotina?" E disse-lhe, espantado: "De rotina?" Tem piada, não tem? E, quando me dirigi, cometi um dos meus grandes erros. Cometi três ou quatro grandes erros, mas todos pela pátria, confesso. O problema do Salazar era que o general Albuquerque de Freitas queria passar à reserva. Disse que sim senhor, para deferir isso, mas também quis uma série de outros nomes. Só não dei o nome do Costa Gomes.
P. - Porquê?
R. - Olhe, por estupidez. Fiz a universidade, todo o percurso da minha vida, com o Costa Gomes, e pensei que ele poderia ser recuperado. Não era. Este país, sem o Costa Gomes, era outro. Quando entro no carro, o Salazar estava a fazer a declaração na rádio sobre a remodelação, que disse que não fazia! Chego a casa e está cá o Adriano Moreira, que tinha sido nomeado ministro do Ultramar. Estava eufórico com a nomeação, e porque, com a queda do Botelho Moniz, já não se entregava Angola aos americanos. A América queria Angola para o seu controlo. No fim, diz-me: "Meu caro Kaulza, a sua vida política vai acabar, porque o Salazar não lhe pode perdoar o serviço grande de mais que lhe prestou."
P. - Tem saudades do Salazar?
R. - Sim. Tive-as, sobretudo, com o Marcello Caetano. Porque como sei muito bem as relações que o Marcello teve com o Salazar, e as teve, depois, comigo, deve ter suposto que eu tinha saudades do Salazar. E tive-as, porque o Salazar era muito bom no contacto. Era um homem que não mandava em tudo, ao contrário do que se pensa. Por exemplo: fiz a minha tropa na Força Aérea, e o Salazar pouco intervinha nela. Só lá ia quando assinava decretos-leis. Só discordei dele por causa das enfermeiras pára-quedistas. "O senhor quer pôr mulheres na tropa? E logo nos pára-quedistas? O que será das rapariguinhas, no meio desses galfarros que são os pára-quedistas?", disse-me. Respondi-lhe: "A solução é simples. O senhor não sabe, mas as enfermeiras são todas de escolas religiosas, do mais sólido que há. Até as madres delas aprovam a entrada nos pára-quedistas. E os pára-quedistas não são galfarros, são a nossa melhor tropa."
P. - Qual é o seu conceito de liberdade?
R. - A liberdade é óptima, desde que não prejudique a liberdade dos outros, e não prejudique Deus, a pátria e a família.
P. - Como ocupa os seus tempos livres?
R. - Escrevo imenso. Leio, mas escrevo mais do que leio.
[No ano de 1955 estava em lua-de-mel. Salazar telefona-lhe: "De avião, já, para Lisboa!" Diz a Salazar que acabou de casar-se, que está em viagem de núpcias. Mas a pátria não admite intervalos, e a História é uma deusa exigente. "Apanhei o avião: tinha sido nomeado para o Governo, e no Governo servi, durante sete anos." Kaulza de Arriaga entende que a obrigação moral não pressupõe outra vontade além da que é determinada pela educação, pelo conhecimento do bem e do mal, e pela acumulação de experiências. Como um centurião, ele sabe muito bem que o poder de comando, de que dispôs, transformou-o numa personagem política, intimamente ligada a uma, por vezes dramática, dimensão histórica. Acompanha-me ao elevador. Sorri. "Podia ter sido. Mas não quis. Exactamente porque a coacção é exterior ao direito. E o valor supremo, a pátria."]

domingo, 16 de maio de 2021

M610 - OS "FLECHAS". O EXÉRCITO DA PIDE/DGS EM ANGOLA - AS DECLARAÇÕES ESCALDANTES DO INSPECTOR DA PIDE ÓSCAR CARDOSO SOBRE OS FLECHAS


OS "FLECHAS" O EXÉRCITO DA PIDE/DGS EM ANGOLA - DECLARAÇÕES ESCALDANTE

PARA RECORDAR
OS "FLECHAS" O EXÉRCITO DA PIDE/DGS EM ANGOLA - AS DECLARAÇÕES ESCALDANTES DO INSPECTOR DA PIDE ÓSCAR CARDOSO SOBRE OS FLECHAS / JOÃO SOARES / MÁRIO SOARES / UNITA / MPLA


Durante a guerra de Angola, a PIDE/DGS criou um grupo paramilitar de bosquímanos, um povo africano.
Em 1967, seis anos depois do início da guerra em Angola, a PIDE/DGS começou a recrutar novos membros entre algumas etnias africanas com o objectivo de integra-los num novo grupo paramilitar autóctone, criado nesse ano pelo inspector Óscar Cardoso, que tinha então sido transferido para Angola. Esse grupo ficaria conhecido como os “Flechas”.
O emprego de grupos autóctones em acções de combate contra insurgentes independentistas não era uma novidade. Porém, ao contrário de grupos semelhantes criados por ingleses, franceses ou sul-africanos, os “Flechas” actuavam na dependência directa dos serviços secretos da PIDE/DGS. Com a sua criação em 1967 procurou-se, acima de tudo, melhorar a capacidade de recolha de informações estratégicas, operacionais e tácticas, tentando desenvolver acções encobertas e clandestinas de combate
aos grupos insurgentes, que ganhavam cada vez mais terreno em Angola.
Os “Flechas” eram constituídos principalmente por bosquímanos, um povo que habitava a parte sul de
África há vários séculos e que se dedicava à caça e à recolecção. Foi o próprio Óscar Cardoso que lhes
escolheu o nome, por utilizarem arcos e flechas envenenadas para caçarem. A grande vantagem de
formar um grupo de bosquímanos estava no seu conhecimento do território africano — conseguiam
permanecer vários dias destacados em território hostil, alimentando-se do que a natureza lhes dava,
perseguindo pistas e seguindo o rasto de insurgentes.
Uma vez encontrados os acampamentos dos independentistas, bastava conduzirem acções de vigília
para obterem mais informações e esperarem para fazer uma emboscada. A ordem era que
capturassem os opositores e os levassem para serem interrogados. Porém, isso raramente acontecia
— na maioria das vezes, os “Flechas” acabavam por matar os insurgentes durante os confrontos.
As informações recolhidas no acampamento eram depois entregues a elementos da PIDE/DGS para serem analisadas.


Os Flechas

Os Flechas foram forças de operações especiais dependentes da Polícia Internacional de Defesa do
Estado (PIDE) , criadas, inicialmente em Angola, para actuar na Guerra do Ultramar.

História
Durante a Guerra do Ultramar, a PIDE (a partir de 1969, chamada Direcção-Geral de Segurança (DGS) era
responsável pelas operações de recolha de informações estratégicas, investigação e acções clandestinas contra
os movimentos guerrilheiros, em apoio das Forças Armadas e de Segurança. Como tal foi decido criar uma força
especial armada para auxílio e protecção dos agentes da PIDE nas operações contra os guerrilheiros.
Os membros dos Flechas eram recrutados entre determinados grupos nativos, nomeadamente ex-guerrilheiros e
membros da etnia bosquímana (khoisan). Os bosquímanos que historicamente tinham sido invadidos pelos povos
bantu não tinham qualquer problema a aliar-se aos portugueses, dado que viam nos movimentos de libertação o
bantu invasor do seu território. Estes eram especialmente escolhidos pelas seus conhecimentos do inimigo,
conhecimento do terreno, conhecimento das populações locais, etc. Esses membros nativos eram enquadrados
por oficiais do Exército Português e por agentes da PIDE e recebiam treino de forças especiais.
Com o decorrer da Guerra do Ultramar os Flechas revelaram-se uma das melhores forças anti-guerrilha ao serviço
de Portugal, indo progressivamente alargando o seu tipo de actuação. Se no início eram basicamente usados
como guias e pisteiros dos agentes da PIDE, passaram posteriormente também a ser usados como forças de
assalto em operações especiais. Pelo reconhecimento do seu elevado nível de eficácia, as próprias Forças Armadas
passaram a solicitar frequentemente à PIDE o auxílio dos Flechas nas suas operações.
Algumas das operações frequentemente realizadas eram as chamadas Pseudo-Terroristas, em que os Flechas,
muitos deles ex-guerrilheiros, se disfarçavam de guerrilheiros inimigos, para atacarem alvos com características
tais que não podiam ser abertamente atacados por forças identificadas como portuguesas (ex.: alvos em território
estrangeiro, missões religiosas que auxiliavam terroristas, bases terroristas de difícil aproximação, etc.).
Os Flechas actuaram sobretudo em Angola. Na década de 1970 começaram a ser organizados Flechas também em
Moçambique mas que não chegaram a ter uma importância tão elevada.

Organização e Equipamento
Foram inicialmente organizados pelo Sub-Inspector Óscar Aníbal Piçarra de Castro Cardoso no período que passou
nas “terras do fim do mundo”- o Kuando-Kubango. Os Flechas estavam organizados em Grupos de Combate de
cerca de 30 homens. Estavam equipados com o equipamento em uso no Exército Português, mas também
utilizavam muito armamento capturado aos guerrilheiros, nomeadamente nas Operações Pseudo-Terroristas.
O seu item de fardamento mais conhecido era a Boina Camuflada que se tornou um dos seus
símbolos.
Portugal deixou a PIDE colaborar com apartheid - Óscar Cardoso

Óscar Cardoso foi inspector-adjunto da PIDE/DGS. Era o número dois da organização em Angola. Nas savanas do
Cuando Cubango fundou os Flechas “para travarem a UNITA que queria fazer a guerrilha na região”. O sucesso
destas forças levou a multiplicar os grupos em todos os teatros de operações.
Em 1976, Óscar Cardoso foi para a Rodésia de Ian Smith onde criou forças especiais para enfrentar os guerrilheiros
da ZANU, comandados por Robert Mugabe. Um ano depois foi para a África do Sul organizar as forças de Savimbi
na guerra contra Angola. Pela primeira vez, depois da “Revolução dos Cravos” em Portugal e a extinção formal da
polícia política portuguesa, um alto responsável da PIDE fala do percurso de Savimbi ao serviço de Portugal e do
apartheid.
Jornal de Angola - Foi para Angola como militar ou já ao serviço da PIDE?
Óscar Cardoso - Eu era um homem de confiança do regime e a PIDE soube que o director da polícia em Angola,
São José Lopes, estava metido numa conspiração com a Rodésia e a África do Sul para proclamarem a
independência do território. Com São José Lopes estavam pessoas com grande poder económico na província.
Era preciso travar aquilo. Fui para Luanda com essa missão. Nessa altura já era inspector.
JA - Conseguiu travar essa conspiração?
OC - A minha missão era secreta, mas São José Lopes soube tudo ainda eu não tinha desembarcado em Luanda.
Por isso, quando cheguei, mandou-me para o Cuando Cubango alegando que havia movimentos subversivos na
região que era preciso travar. Quis ver-se livre de mim, rapidamente. Na verdade as forças do MPLA usavam o
norte do Cuando Cubango para se infiltrarem no planalto central e o Savimbi queria fazer a guerrilha naquela zona.
Eu estudei antropologia na Escola Colonial e interessei-me pelos khoisan, os chamados bosquímanos. Conheci-os ao vivo. Quanto à conspiração, eles pararam na altura mas nunca abandonaram o projecto. Logo a seguir ao 25 de Abril, retomaram-no.
JA - O que concluiu com os seus estudos?
OC - Os bosquímanos foram empurrados para os locais mais inóspitos e por isso odiavam todos os que não eram
da tribo. Verifiquei que eram pisteiros espantosos. Liam os rastos como nós lemos um livro. Sabiam se as pegadas
eram de homem ou mulher, se iam carregados ou não. Um dia até me disseram que a pista era de uma mulher
grávida. O administrador Amaral Pontes tinha uma grande paixão pelos bosquímanos. Chamavam-lhe Tata Kun.
Um dia decidimos fazer deles uma força contra os grupos da UNITA que queriam implantar-se no Cuando Cubango.
Como as suas armas eram os arcos e flechas, pus-lhes o nome de “Flechas”.
JA - Como conseguiam enfrentar forças armadas só com arcos e flechas?
OC - As flechas eram armas terríveis. Eles conhecem um tubérculo altamente venenoso que fica uns dias em
infusão. Depois embebem as pontas das flechas naquele líquido e quando acertam nas presas, elas ficam
paralisadas. Nem os elefantes resistem ao veneno. Os Flechas arrasaram os homens da UNITA porque eles tinham
medo da noite. Os bosquímanos conhecem a noite tão bem como o dia e atacavam o inimigo quando estava a
dormir. Seguiam o lema do general chinês Sun Tse Wu, que existiu há mais de 3500 anos: sejam mais rápidos que
o vento e tão misteriosos como a mata. Sejam destruidores como o fogo e silenciosos como as montanhas. Sejam
impenetráveis como a noite e furiosos como o trovão.
JA - Os Flechas no Leste também eram bosquímanos?
OC – Não. Dado o êxito dos Flechas no Cuando Cubango, decidimos criar unidades em todos os postos situados
no teatro de guerra. Em Gago Coutinho (Lumbala Ngimbo) foram recrutados os antigos guerrilheiros que se
entregaram ou foram feitos prisioneiros. Depois também recebemos um grande reforço dos guerrilheiros da
UNITA comandados pelo major Sachilombo, formado na academia militar de Nankin e que na época era o número
dois da UNITA.
JA - A UNITA foi criada pela PIDE?
OC - Não, a UNITA foi criada pelo Savimbi e mais alguns companheiros, que receberam treino político e militar na
China. Nós conhecíamos o perfil de todos e quando se instalaram na Frente Leste fomos estabelecendo contactos.
Eles estavam a ser muito úteis porque combatiam as forças do MPLA. Mas depois infiltraram-se na zona do
Munhango e começaram a incomodar a actividade dos madeireiros. Nessa altura fizemos o que qualquer força de
inteligência militar faz: estabelecemos contactos com Savimbi e os seus oficiais.
JA - Está a falar da “Operação Madeira”?
OC- Exactamente. O pessoal da PIDE e do comando da Frente Militar Leste começou a estabelecer contactos com
Savimbi e os seus oficiais. Conseguimos resolver o problema dos madeireiros. Logo nos primeiros contactos
verificámos que o Savimbi tinha muito gosto em trabalhar connosco. O general Bettencourt Rodrigues, um militar
extraordinário, deu luz verde e a UNITA passou a combater ao lado das tropas portuguesas.
JA - Quem fez os contactos com a UNITA no Munhango?
OC - Alguns nomes são públicos, mas eu não vou repeti-los. Por uma questão de ética só dou eu a cara. E refiro o
senhor general Bettencourt Rodrigues porque ele nunca escondeu o seu papel na Operação Madeira. O Savimbi
estava cheio de vontade para combater as forças do MPLA e nós fizemos-lhe a vontade.
JA - Savimbi fez alguma exigência para lutar ao lado das tropas portuguesas e dos Flechas da PIDE?
OC - Fizemos um acordo, ele combatia os guerrilheiros do MPLA e nós dávamos em troca armas, apoio logístico e
médico. O Savimbi esteve várias vezes internado no Hospital do Luso (Luena). Ele tinha problemas de saúde que
se agravaram mais tarde. Recebeu tratamento várias vezes num hospital da África do Sul que tinha uma área
secreta, destinada exclusivamente ao pessoal da UNITA.
JA - Depois da “Operação Madeira” a UNITA fez operações contra a tropa portuguesa?
OC - Fez algumas, para limpar a imagem. Quando se soube que Savimbi estava do nosso lado, perdeu prestígio
em África. E ele queria mostrar que eram mentiras para o prejudicar. Fez uma operação que quase me custou a
vida. Mas Deus salvou-me.
JA - Não me diga que Deus estava ao lado da PIDE?
OC - Pensem o que quiserem, mas eu fui salvo por Deus. Quando os comandantes Sachilombo e Pedro foram para
Gago Coutinho, algum tempo depois começaram a circular notícias que davam a UNITA como uma organização ao
serviço da PIDE. Então o Savimbi, que era muito traiçoeiro, resolveu fazer uma operação para limpar a imagem
negativa. Armou-me uma cilada. Queria matar-me, matar um coronel da Força Aérea da África do Sul e o major
Sachilombo.
JA - O que aconteceu?
OC – O Savimbi mandou dizer que queria mandar um grupo grande de guerrilheiros para nos ajudar na III e na IV
Região do MPLA. Disse que o comandante Nzau Puna ia comandar esses grupos. Montámos a Operação Viragem
e tratámos de todos os pormenores. O ponto de encontro era perto de Cangamba. Nós mandámos Flechas por
terra em direcção ao local. Eu e o major Sachilombo fomos num helicóptero sul-africano, pilotado por um coronel.
Aterrámos a cinco quilómetros do objectivo, num pequeno planalto, como estava previamente combinado. Veio
ao nosso encontro um homem andrajoso, mas com as mãos e as unhas bem tratadas. Fiquei desconfiado com isso.
JA - Retiraram da zona?
OC - Desconfiei e manifestei as minhas desconfianças ao major Sachilombo. Mas decidimos acompanhar aquela
figura estranha. Dois quilómetros à frente, encontrámos os nossos Flechas. Estavam todos sem armas. Disseram
que os oficiais da UNITA lhes pediram para guardarem as armas porque estávamos numa operação de amizade e
não fazia sentido andarem armados. Fiquei ainda mais desconfiado. O guia indicou-nos um morro a cerca de dez
quilómetros. Era lá que estavam os homens da UNITA e o Savimbi. Nesse momento o major Sachilonmbo chamou-
me à parte e disse para sairmos imediatamente dali. Dissemos aos homens para se dispersarem e esperarem a
chegada do helicóptero.
JA - Como escaparam?
OC - Partimos apressadamente para o helicóptero e quando levantámos voo pedi ao piloto para sobrevoar o morro
onde estava Savimbi e os seus homens. Mas o piloto disse que tinha pouco combustível e era melhor regressar a
Cangamba para abastecer. Chegámos a uma hora que já não dava para regressar. No dia seguinte, ao nascer do sol,
partimos para o local. Estava tudo limpo, mas sobre o morro caía uma chuva torrencial. Não se via nada. Demos
algumas voltas até que o nosso radio telegrafista em terra nos disse que quase todos os Flechas tinham sido mortos
pela UNITA. Disse-lhe para desligar o rádio e esconder-se. Montámos uma operação de resgate. Os Flechas em terra
tinham sido esquartejados. Foi horrível. Se não fosse aquela chuva hoje não estava aqui.
JA - Acabaram aí as relações com a UNITA?
OC - Continuaram, mas quisemos saber o que tinha acontecido. Os seus homens disseram que o Savimbi decidiu
montar a Operação Baile para limpar a imagem da UNITA. Queria apresentar a minha cabeça, as do major Sachilombo
e do coronel sul-africano. Além disso ficava com o helicóptero como troféu. Assim provava que nada tinha a ver com
a PIDE e ainda acusava os portugueses de estarem aliados à África do Sul. Dizer ao mundo que tinha morto em
combate o fundador dos Flechas era um grande trunfo. E fazia o papel de justiceiro em relação ao major Sachilombo.
JA - Essa foi a única operação contra as forças portuguesas?
OC - Ainda fizeram mais uma ou duas operações contra as forças armadas portuguesas, sempre para mostrar que a
UNITA lutava contra nós. Eu alertei para este comportamento, mas nada pude fazer quando, depois do 25 de Abril,
a inteligência apresentou Savimbi como o “muata da paz” e a UNITA como o “movimento dos brancos”.
JA - Ninguém o quis ouvir?
OC - Não, eu estava de licença graciosa em Portugal e apanhei lá os acontecimentos do 25 de Abril. Perdi os contactos
e não pude agir. Aquela ideia de fazer do Savimbi o grande dirigente angolano da paz foi um erro trágico. Perderam
os angolanos e os portugueses. Depois fui preso no Forte de Peniche. Estive lá dos dois lados. Comandei o forte e
depois fui prisioneiro. Mas nunca ninguém me tocou com um dedo. Só quiseram destruir-me psicologicamente.
Resisti.
JA - O senhor era considerado da linha dura da PIDE.
OC – O que é isso da linha dura? Nunca torturei ninguém. Nunca toquei com um dedo num preso. Havia um dirigente
estudantil que andava a fazer asneiras. Foi preso. Quando o interroguei percebi que ele não valia nada. Telefonei à
mãe para ir buscá-lo à sede da PIDE. No dia seguinte todos os estudantes souberam o que aconteceu e ele perdeu o
prestígio. Depois do 25 de Abril reapareceu e hoje é um grande político. Mas confesso que, por vezes, era preciso
dar uns calores.
JA – A PIDE tinha infiltrados nos movimentos de libertação.
OC – Sim, nós tínhamos e eles também tinham pessoas infiltradas nos nossos serviços.
JA - Depois do 25 de Abril foi julgado em Tribunal Militar?
OC - Fui julgado e na minha folha de serviços constavam relevantes serviços prestados à pátria, no Exército, na GNR
e na PIDE/DGS. Apanhei dois meses de prisão por não me ter apresentado semanalmente no posto da GNR, como
tinha sido determinado pelo Tribunal civil. Nos meses que se seguiram ao 25 de Abril soube que a UNITA tinha
tortura do e assassinado o Soba Matias no Cuando Cubango. Fiquei em choque. Ele era um valioso combatente ao
serviço de Portugal.
JA - Quem era o Soba Matias?
OC - Um grande homem. Um dia foi ter comigo ao posto da PIDE em Serpa Pinto (Menongue) e disse que andavam
homens da UNITA a fazer mal ao povo. Pediu-me oito armas para ir apanhá-los. Confiei nele e entreguei-lhe as armas.
Apanhou os guerrilheiros da UNITA. Desde então, foi um combatente extraordinário. Depois do 25 de Abril os
homens da UNITA foram à sua aldeia e mandaram-no arriar a bandeira portuguesa. Ele recusou. Torturaram-no até à
morte e esquartejaram-no para servir de exemplo ao povo. Foi terrível.
JA - Mesmo sabendo disso, foi trabalhar com Savimbi na África do Sul?
OC - Eu tive de fugir de Portugal. Passei 730 dias preso em Peniche e quando saí em liberdade condicional, participei
em algumas operações do ELP e do MDLP. Fui denunciado e os revolucionários queriam prender-me outra vez.
Quando o autocarro se atrasa 15 minutos ficamos logo nervosos. Eu passei 730 dias da minha vida no Forte de
Peniche. Não queria ficar preso nem mais um minuto. Contactei os meus amigos da Rodésia e fui para lá. Saí de
Portugal clandestinamente e em Madrid os meus amigos do MDLP arranjaram-me um passaporte. Eles tinham
muitos passaportes, em branco. Tive que arranjar um nome falso.
JA - Como passou a chamar-se?
OC - Rogério Ramon Pinto de Castro. Cada nome destes correspondia ao meu pseudónimo nas organizações a que
pertencia: Exército de Libertação de Portugal (ELP), Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP),
Frente de Libertação dos Açores (FLA) e Frente de Libertação da Madeira (FLAMA). Preenchemos o passaporte e um
amigo fez um carimbo com uma batata para parecer verdadeiro. Assim embarquei para Salisbúria (actual Harare,
capital do Zimbabwe).
JA - Em Portugal participou nos atentados do MDLP e do ELP?
OC - Ajudei a fazer atentados. Mas só atacámos as sedes do Partido Comunista. Ainda tentámos salvar Portugal, mas
quando precisámos de um presidente, o general Spínola fugiu para o Brasil. Percebi logo que aquilo não ia dar nada.
JA - António Spínola não era o vosso chefe?
OC - Nunca foi. O ELP foi fundado pelo coronel Santos e Castro. O MDLP foi criado pelo comandante Alpoim Calvão.
A FLAMA tinha pouco peso e a FLA não ia a lado nenhum. A CIA pediu-me para ir aos Açores ver se havia
possibilidades da independência do arquipélago. Mas isso só era possível se derrotássemos os comunistas.
Moscovo estava por trás do 25 de Abril. Eles queriam Portugal na órbita comunista por causa das colónias. Mas
percebi logo que não íamos a lado nenhum. Então decidi oferecer os meus préstimos à Rodésia.
JA - Trabalhou com a CIA?
OC - Sim, trabalhei mas só depois do 25 de Abril. Fui aos Açores ver se havia possibilidade de declarar a independência
do arquipélago. Os meus contactos foram muito importantes, mais tarde. O meu amigo Daniel Chipenda foi
abandonado pelos americanos depois da independência de Angola e eu meti-o na CIA.
JA - Antes de irmos à Rodésia: qual foi o papel de Mário Soares no Verão Quente?
OC - Serviu-se de nós. Ele queria poder a todo o custo. Apoiou os operacionais do ELP e do MDLP, trabalhou com a
CIA, fez tudo o que Carlucci lhe mandou fazer. Quando conseguiu o que queria, abandonou os amigos. É muito
parecido com o Savimbi. Por isso, sou capaz de me sentar à mesa com todos, menos com os socialistas.
JA - Qual foi o seu papel na Rodésia de Ian Smith?
OC - Organizei as forças especiais, para enfrentarem os guerrilheiros da ZANU. Eu ganhei muita experiência em Angola
e acabei por criar “Flechas” na Rodésia. Um ano depois, fui-me embora. Eles tratavam-me como se fosse um criado.
Nunca fui tão maltratado. Meti-me num avião e aterrei em Joanesburgo. Viram o apelido Castro no meu passaporte,
o meu rosto barbudo e disseram que era um espião cubano. Pedi um rand para telefonar ao brigadeiro Ben Roos.
Recusaram. Ofereci dez dólares rodesianos por um rand. Nada. Depois veio um oficial, ouviu a minha história e
deu-me um rand para telefonar. Falei com o brigadeiro e ele mandou logo os seus homens tirar-me do aeroporto.
JA - Foi assim que ficou a trabalhar com os sul -africanos?
OC - A minha ideia era essa. Ben Roos disse-me que a África do Sul estava a preparar a batalha final contra Angola e
que iam ganhar. Convidou-me para ser o oficial superior de ligação com os homens da UNITA e do Batalhão Búfalo.
Aceitei. Mas alertei imediatamente o brigadeiro para a personalidade do Savimbi. Ele já sabia tudo . Foi assim que fui
parar a Oshakati, onde montei o comando. E comecei a trabalhar com o pessoal da UNITA.
JA - Quem era o seu contacto?
OC - Era o senhor Isaías Samakuva, um homem muito apagado e extremamente limitado. Tinha pouco rasgo. Não é
fácil trabalhar com pessoas que não percebem nada do que lhe dizemos. Expliquei-lhe que a África do Sul queria que
a UNITA servisse de tampão aos avanços da SWAPO. Mas o Savimbi tinha-lhe dito que a UNITA estava a lutar contra
os cubanos e os russos e ele repetia esse discurso por tudo e por nada. Mas não tomava qualquer decisão. Quando
vejo que hoje é líder da UNITA, fico admirado. Ele não serve para liderar seja o que for. Não tem qualidades.
JA - Nesta altura falou com Jonas Savimbi?
OC - Muitas vezes. Mas ele nada tinha a ver com as operações, os sul-africanos não lhe davam confiança para isso.
Em Oshakati e no Rundu só tratávamos de inteligência, de operações militares e de sabotagens. O Savimbi era o
político, nada tinha a ver com estas coisas. A base militar principal era na Jamba. Os sul-africanos e os americanos
criaram ali aquela estrutura, grande em qualquer parte do mundo. Lá nada faltava. Mas eu estava mais ligado à
inteligência e às operações. No início, o objectivo era travar a SWAPO. O Savimbi aceitou as regras, mas cedo mostrou
que o seu único pensamento estava no combate ao MPLA para um dia chegar ao poder em Angola. Além de traiçoeiro,
ele era de uma ambição sem limites.
JA - Qual era a sua missão?
OC - Fazia tudo. Vezes sem conta fui levar armas e munições à fronteira. Transportei dezenas de feridos. Eles eram
retirados de Angola em bicicletas e chegavam à fronteira num estado lastimável. Quase sempre tinham que ser
mandados para o Rundu. Quando o Hospital de Ondângua não respondia à gravidade dos feridos, iam para Pretória,
para o Hospital Voortekerhoogte. Ali os serviços secretos criaram uma área só para o pessoal da UNITA. Ninguém
tinha acesso a essa zona. Médicos, enfermeiros, técnicos e pessoal de apoio eram todos credenciados pelos serviços
secretos.
JA - A UNITA usava armas sul-africanas?
OC - Nem pensar. A África do Sul não podia arriscar tanto. Montámos um esquema perfeito. Comprávamos armas de
origem soviética à Hungria e a UNITA dizia que aquele material era apreendido às FAPLA nos combates. Todas as a
rmas eram soviéticas. Entregávamos o material em Omungwelume, no Marco 14. Ali era o centro logístico. No Rundu
tínhamos o grande aeroporto onde chegavam os aviões carregados de material. Nesta altura, também estava activo o
Batalhão Búfalo, treinado pelo meu amigo Jan Breytenbach, um grande militar sul-africano. E tínhamos Flechas do
Cuando Cubango. Hoje vivem algures na África do Sul, abandonados por todos.
JA - Na Jamba encontrou aqueles políticos portugueses que iam ver Savimbi?
OC - A Jamba era mais para mostrar a organização da UNITA e eu trabalhava como operacional. Ali estavam todos
seguros, os aviões da Força Aérea Angolana não tinham capacidade de ir lá bombardear e regressar às suas bases.
Os portugueses iam mais para tratar de negócios. Os diamantes e o marfim fizeram muitos amigos à UNITA.
JA - Sabe o que aconteceu com o avião de João Soares?
OC - Claro que sei. O avião era de um grande amigo meu, Joaquim Silva Augusto, comerciante no Rundu. Ele como
piloto não era grande coisa. Carregaram os porões com pontas de marfim e com diamantes. Levantaram voo, mas o
Augusto não conseguiu aguentar o aparelho no ar. Foi terrível, ficaram todos em mau estado. Foram transportados
para o Hospital Verwoerd, onde a minha mulher era enfermeira. Só sabíamos que o Augusto estava gravemente ferido.
A minha mulher foi imediatamente para o hospital, mas não encontrou o Augusto, estava a fazer exames de Raios X.
Os outros tinham os olhos negros, estavam irreconhecíveis.
JA - Como soube que um dos feridos era João Soares?
OC - A minha mulher soube que os feridos eram todos portugueses. No dia seguinte já encontrou no hospital a mãe e
a esposa de João Soares. Ele estava gravemente ferido. O nosso amigo Augusto, também. O tráfico de diamantes e de
marfim daquela vez correu mal.
JA - João Soares diz que isso é invenção do Jornal de Angola.
OC - O avião estava cheio de marfim e diamantes. Perguntem ao nosso amigo Augusto, que ele confirma tudo.
A UNITA roubava os diamantes em Angola e matava os elefantes. Depois os amigos iam à Jamba buscar o material.
JA - É verdade que os sul-africanos pediram a Mário Soares apoio à UNITA, em troca de lhe salvarem o filho?
OC - Desconheço. O Mário Soares não foi à África do Sul ver o filho ao hospital. Maria Barroso esteve lá muitos dias.
A esposa de João Soares também. É uma situação interessante. Eu trabalhava com os sul-africanos na ligação com a
UNITA. E Mário Soares apoiava a UNITA em Portugal. Estávamos unidos no mesmo objectivo. Mas para mim, esse
homem foi o que de pior aconteceu à minha querida pátria.
JA - Pertencia às Forças Armadas Sul-Africanas?
OC - Trabalhei sempre com a inteligência militar. E sou coronel na reforma da Força Aérea da África do Sul. Fui
condecorado. Quando chegou a altura de ir para casa perguntaram-me se queria uma pensão mensal ou se queria
receber tudo de uma vez. Preferi o dinheiro todo. Deram-me 100.000 euros. Fui muito bem tratado na África do Sul.
Participei nas negociações que conduziram à retirada das nossas tropas de Angola.
JA - Como oficial das forças sul-africanas?
OC - Sim, nessa condição. Era perito em inteligência militar. Reuní-me com os oficiais angolanos e tratámo-nos todos
com respeito. Do lado angolano estava gente com muito valor. Retirámos as nossas forças para além do paralelo
determinado. Mas a guerra através da UNITA continuou até à Batalha do Cuito Cuanavale. Foi a batalha final. Os a
ngolanos saíram vitoriosos. Tenho de reconhecer que foram heróicos, bateram-se pela pátria deles, como ninguém.
São os vencedores.
JA - Tem alguma pensão do Estado Português?
OC - Tenho uma pensão, porque servi Portugal no Exército, na GNR e na PIDE/DGS. Fui condecorado e louvado. Mas
agora andam a cortar-me a pensão. Estou muito triste com o presente de Portugal e apreensivo quanto ao futuro. Há
demasiada corrupção. Deve ser o país mais corrupto do mundo. Depois as manobras do super capitalismo estão a
lançar as pessoas na pobreza.
JA - Como vê as relações com Angola?
OC - Também estou apreensivo. A maneira como tratam Angola é revoltante. Há situações de autêntica
irresponsabilidade. Mas Angola e Portugal estão condenados a ter boas relações. Espero que todos os problemas
sejam ultrapassados. A presença da China em Angola também me preocupa. Se eles não tivessem ambições
expansionistas, não tinham um exército tão grande. Aqueles milhões de homens em armas não são apenas para as paradas.