sábado, 15 de dezembro de 2012

M568 - Porque não morri?! O último grande combate. 5º Capítulo. Um conto de Victor Cerqueira



NOTA: Os autores deste excelente e histórico conto "Porque não morri?! O último grande combate", Victor Cerqueira, oferecem a quem o quiser ler, gratuitamente com uma úncia e facultativa condição, que a seguir reproduzimos. 

A narração divide-se em 6 capítulos, que vamos publicar durante esta e a próxima semana, e nesta mensagem apresentamos o 2º Capítulo. 

Diz o autor - Vitor Cerqueira:

"... tenho uma proposta a fazer-lhe: se considera que valeu a pena ler e que pode interessar a outros divulgue o conto pela mesma via que o recebeu, ou outra, se não gostou, deite fora. 

Participe na experiência da possibilidade dos autores se”livrarem” das editoras. 

Pague pela leitura deste conto entre ZERO e cinco páginas caso tenha, ou não, gostado. E possa! 

Transfira para a conta da Caixa Geral de Depósitos 0120 009848600 Ou NIB – 003501200000984860084.

Aos autores apresentamos aqui o nosso abraço. 



PORQUE NÃO MORRI?! 


O ÚLTIMO GRANDE COMBATE 


TCHAZICA | MOÇAMBIQUE 


1974 

VICTOR CERQUEIRA 

5º CAPÍTULO
Lopes da Gama

Toda a vida tinha lutado, era do contra, sempre do contra, manifestava sempre a sua opinião e, quase sempre, da maneira mais imprópria e inconveniente, porque dizia o que tinha a dizer muitas vezes de uma forma dura e quase sempre aos “berros” com alguma mistura de raiva e revolta.
Mas era assim, de uma franqueza brutal, dizia o que pensava sem subterfúgios e acabava muitas vezes por magoar as pessoas e quase sempre quem menos queria magoar, deixando-o de rastos.
Como lhe dizia na sua adolescência o seu melhor amigo, o Sodas:
- Tu não percebes que na maioria dos casos nem sequer percebem o que tu queres dizer, as análises e os raciocínios das pessoas ficam muito pela superfície, não vale a pena irritares-te…
O Sodas foi o amigo que conseguiu fazer o Lopes aliar a sua curiosidade, a sua necessidade de leitura, quase compulsiva, com o estudo formal, curricular. Estudo formal esse que o “irritava”, detestava os horários, as normas, o ter que agradar, ter de ir às aulas aquela hora naquele dia e com cumprimento total de uma certa rotina. Foi por isso mais “fácil” para ele o estudo Universitário, que ele geria, do que os estudos secundários, em que era… gerido. De qualquer forma o facto de o Sodas o “obrigar” a uma certa disciplina fez “disparar” algumas notas do Lopes para surpresa… dele próprio.
Esta sua maneira de ser, associada à sua coerência, parecia que “assustava” as pessoas, retraías e, por isso, embora ganhasse alguma respeitabilidade esta era associada à fama de “intratável”, com as inerentes consequências.
Quase se poderia dizer que o Lopes tinha sido “um menino de rua” os seus Pais viviam muito do trabalho e para o trabalho, ele costumava dizer que estavam entretidos… a ganhar dinheiro, não lhe dando muito apoio afectivo e social.
Como os Pais trabalhavam na indústria hoteleira vivia muito sozinho desenvolvendo por isso uma grande autonomia, era ele que se alimentava aquecendo a sua comida desde muito miúdo.
Além disso tinha muito tempo para estar na rua, onde “criava” brincadeiras e aventuras, tanto nas barreiras, com alguns amigos vizinhos da rua e do prédio onde vivia, como também na sua imaginação inventava histórias de amor e viagens como se de realidades se tratassem. Nos dias de festas e feriados, quando os Pais dos outros estavam em casa os Pais dele estavam a trabalhar e o Lopes não deixava de sentir isso.
O espírito aventureiro era praticado com os seus amigos e vizinhos de infância nas brincadeiras que tinham nas chamadas barreiras, em Lourenço Marques mas também nos Escuteiros, que foi uma experiência não muito agradável e mais tarde já com dezoito anos no primeiro curso de pára-quedismo civil realizado pela Mocidade Portuguesa em Lourenço Marques. Também estava a tirar o Brevet de piloto e, já no pré-voo, desistiu por insistência da sua companheira. Mal ele sabia como todas estas experiências de vida viriam a ser tão úteis na guerra.
Mas o menino Lopes só queria que gostassem dele, ao fim e ao cabo só queria ser amado.
Como diz o poeta: “As coisas vulgares da vida não deixam saudades, só as lembranças que doem ou nos fazem sorrir.”… (Fernando Maurício)
O Lopes tinha muito mais lembranças que lhe doíam profundamente do que das outras.
Sobretudo da sua infância, e por isso aprendeu a não esperar nada. Nem dos outros nem da vida, ia vivendo…
O que se calhar lhe valeu era a seu gosto pela leitura, que lhe enchiam as noites e os dias em que estava sozinho é que ao fim e ao cabo quem lê está sempre acompanhado…
O que o tirou das ruas, de alguma maneira o disciplinou e educou foi o desporto.
O desporto em Moçambique era algo bastante cultivado pela sociedade. Assim, os Pais tinham-no posto a aprender a nadar para aí com três anos, na Associação dos Velhos Colonos com o Senhor Matos, onde andou algum tempo e uns anos depois, já noutro clube, o Desportivo de Lourenço Marques, acabou por se dedicar a sério à competição com alguns bons resultados.
Foi com o acompanhamento do seu treinador Eurico Jorge, seu “Pai”, seu “irmão”, seu Amigo seu mentor e dos seus colegas e Pais destes, onde estava incluído o Sodas que, finalmente, o Lopes “assentou” e teve suporte social e emocional para o seu desenvolvimento pessoal, social, cultural e evidentemente físico e emocional.
Não abandonado nunca a sua veia de “malandreco”…
Pelo facto de ter feito parte da selecção Nacional isso permitiu-lhe conhecer a Europa e o Brasil (de Norte a Sul) o que lhe deu uma real perspectiva do que era o regime autocrático em que se vivia na Metrópole e em África, o que acabou por lhe dar uma aprendizagem muito esclarecedora e prática daquilo que desejava para o seu futuro e para Moçambique.
Muito cedo constituiu família, para aí com dezanove anos. Esta sua companheira já vinha de um casamento falhado e com uma filha. Sabia que a prazo poderia não resultar, mas não podia “usar e deitar fora”, não era a sua maneira de ser.
Tentava tudo para criar o ambiente familiar que idealizava e nunca tinha tido, sobretudo porque tinha uma enorme adoração pela miúda que considerava como filha.
Mais uma vez tinha começado tudo… demasiado cedo!
Quando foi chamado para a “tropa” poderia ter pedido adiamento por estar no Instituto Industrial, mas não quis. Tinha já responsabilidades familiares, tinha de cumprir o serviço militar, não tinha tempo para perder tempo… O mesmo aconteceu quando acabou o CSM (Curso de Sargentos Milicianos) foi convidado para fazer o COM (Curso de Oficiais Milicianos) recusou na hora. Ele não dava nenhuma importância a cargos e honrarias e não lhe fazia sentido que numa guerra ter o 7º ano fosse sinónimo de bom combatente e de bom oficial. Para ele era ridículo este conceito, como a realidade das tropas pacassas no mato lhe provavam isso mesmo até à saciedade, sobretudo com os oficiais do quadro permanente mas também com os milicianos.
Felizmente foi para uma tropa que provava isso mesmo, durante algum tempo o valor de comando foi avaliado e conquistado em acção, mais nada.
Fruto da sua capacidade física tinha feito a preparação militar com alguma facilidade mas com total empenhamento, e desde que tinha ido para o CIGE que usava barba que era rala, enfim, mais uma colecção de pelos do que barba propriamente dita.
Não queria morrer na “praia”, isso não! Aliás, este aspecto, o de morrer no fim da comissão era um “fantasma” que perseguia todos os militares, e, nas circunstâncias presentes, ainda muito mais… era insuportável!
As suas preocupações estavam no auge. Tudo lhe vinha há mente. O passado, o presente e, sobretudo, o futuro! E por isso não podia deixar de pensar no reabastecimento do grupo. Normalmente ou ia a Mandia, a Tete ou ao Guro.
Mandia era uma pequena povoação a cerca de 100 km dali, onde estava uma companhia de pacassas e onde ele já se tinha chateado com o primeiro-sargento vagomestre e com o Capitão que não queriam perceber que o Lopes abastecia-se com o que queria e não com o que eles queriam ou lhes interessava… Depois de esclarecidas as coisas e estabelecidas as regras de jogo as relações normalizaram.
Aquela povoação tinha sido um centro de investigação e desenvolvimento de gado, nomeadamente de “caraculo”, uma raça de ovelhas que se adaptava bem aos climas quentes.
Era impressionante a qualidade das instalações agrícolas, embora simples, tinham um sistema em que o gado ao sair para pastar e depois ao recolher não podia deixar de passar por zonas de desinfestação e desinfecção dos animais.
A quando da sua primeira ida para a zona, no GEP 005, ainda tinha tido a noção da quantidade e qualidade do gado ali existente. Agora, com a guerra, estava tudo parado e as populações mais pobres, e senão estavam mais ainda era porque a “tropa” ia comprando o gado para seu sustento. Só que sem a orientação anterior este caminhava para o fim.
Era assim que o Lopes da Gama sonhava com o “seu” Moçambique, uma terra com o desenvolvimento assente em si próprio – na sua realidade, na sua investigação, no seu conhecimento.
Numa espécie de política da negritude (valorizar aquilo que é Africano, como por exemplo as casas, em detrimento do Europeu) iniciada por Sengor no Senegal.
E isso acreditava ele, era perfeitamente possível. Acreditava que com um governo razoavelmente competente em meia dúzia de anos Moçambique seria verdadeiramente independente política/económica e financeiramente. O que significava para o Lopes também a auto sustentação alimentar.
Ao contrário daquilo que sucedia na Metrópole, em Moçambique não passava pela cabeça de ninguém tirar um curso de agronomia, agricultura ou veterinária e depois ficar em Lourenço Marques ou noutra grande cidade. Quem tirava cursos especializados, era para ir (e queria ir) para o mato… onde havia muito trabalho a fazer!
A guerra tinha acabado com muitos sonhos deste Moçambique. E agora, mais do que nunca, tinha a intuição que se calhar não teria lugar naquela sua terra…
Mas ele para abastecer preferia ir ao Guro, embora bem mais longe. Significava para aí cerca de 400 km de picada, mas era a sua gente os seus camaradas do CIGE, que o recebiam de braços abertos com tudo do bom e do melhor que conseguissem arranjar.
Quando tinha transporte dos Fusos, ir a Tete subindo o grande Zambeze.
Estes pensamentos vinham-lhe à cabeça, de uma forma compulsiva, estes e outros. Até parecia que estava a “pôr as contas em dia”.
A vida, tal qual um filme, ia-lhe surgindo, mas não de uma forma cronológica mas sim de forma anárquica. Agora uma coisa, depois outra, numa mistura de histórias que ocasionava ao mesmo tempo uma mistura de sentimentos e emoções difíceis de controlar.
Mais uma vez sentia uma profunda solidão, sem minguem com quem partilhar as suas preocupações e as suas ideias como foi quase sempre ao longo da sua vida, sentia-se tremendamente só.
Só!
Estava com um terrível problema nas mãos, criado por ele e que ele tinha de resolver e ia resolver, pensou, quando se levantou do embondeiro de repente.
Em frente dele uma criança, também de cócoras, olhava muito séria para ele, e se assustou com o gesto repentino dele, há quanto tempo estaria ela ali? Perguntou-se.
Se fosse um turra tinha-lhe metido a kalash pelo cu acima.
Que importava isso, merda!
Regressou ao destacamento. Era hora de contactar com Massangano – com tanta preocupação tinha-o abandonado um pouco, ao fim e ao cabo era lá a “sede” e ele estava ali “emprestado” até ao nascimento do filho do Furriel Mico. A propósito, já teria nascido?
Teria corrido bem? Seria menino ou menina? Se bem se lembrava ele queria uma menina.
Leão 3, Leão zero escuto!
Leão zero, Leão 3 escuto!
- Como correm as coisas por aí?
- Por aqui tudo bem, também nervosos mas tudo bem, quando é que pensa fazer o reabastecimento?
- Não é para já enquanto não chegar o Leão dois não é possível, atenção à caça, não quero caça grossa neste momento é muito perigoso, vamos estar atentos à segurança, segurança mais segurança, entendido leão três?
- Entendido Leão zero.
- Então terminado até amanhã.
- Terminado.
As suas conversas eram rápidas e incisivas, o alferes Lopes não era de estar muito tempo no rádio e naquele momento muito menos.

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