quarta-feira, 5 de outubro de 2011

M375 - RANGER Eduardo Lopes do 1º Curso de 1969 – Parte IV - As emboscadas


RANGER Eduardo Lopes
1º Curso de 1969


O RANGER Lopes, que foi Alferes Miliciano da CCAÇ 2600 do BCAÇ 2887 (Companhia de Caçadores Nº 2600 do Batalhão de Caçadores 2887), continua a narração do desfile das suas memórias dos factos e acontecimentos do dia-a-dia, da sua experiência e vivência em África, mais precisamente em Balacende – Angola -, dando seguimento a nove mensagens publicadas neste blogue, com as referências: M359, M360, M361, M362, M367, M368, M369, M370 e M373.

Nesta oportunidade fala-nos das, por vezes, terríveis, mortíferas e devastadoras emboscadas, não só pelos prejuízos causados com a destruição de materiais e equipamentos, mas, bem pior, pelos feridos e mortos que resultavam, entre os nossos militares, destas traiçoeiras acções de guerrilha e que nos inspiravam naturais e compreensivos sentimentos de revolta e vingança.

Não ocultamos os nomes das vítimas por que achamos que as Famílias e os Amigos têm o direito de saber como morreram os seus ente queridos. Caso algum familiar próximo pretenda que o nome do seu querido seja retirado desta mensagem, basta ligar para o nº 965 059 516 e a ordem será cumprida de imediato.


Introdução

Um pouco de História

Em 4 de Fevereiro de 1961, tinha acontecido o assalto, em Luanda, à esquadra da Policia Móvel na Estrada de Catete e os ataques à Casa de Reclusão Militar, e à Cadeia Civil, que alguns historiadores atribuem ao MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), porém há quem atribua o início da guerra aos acontecimentos de 6 de Janeiro, desse mesmo ano, com a revolta e a greve dos agricultores de algodão na Baixa de Cassange, Distrito de Malange, que se recusaram a plantar o algodão para a empresa Cotonang e a pagar a taxa anual ao Estado Português, revolta esta que foi reprimida pelas 3ª e 4ª Companhia de Caçadores Especiais.

A FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), antiga UPA (União dos Povos de Angola), foi o movimento de libertação africano que iniciou a guerra no Norte de Angola na região dos Dembos, distrito do Quanza Norte, com o massacre em 15 de Março de 1961 da população branca e dos Bailundos (etnia do sul de Angola), que trabalhavam nas fazendas de Café.

IV Parte
As emboscadas

Das várias emboscadas e flagelações a colunas auto da minha Companhia (CCaç 2600/Bat. Caç. 2887), duas perduram na minha memória, como se fosse hoje. Talvez pela intensidade do fogo IN, pela sua duração, pela hora a que foram efectuadas, ou pelas baixas que nos causaram, o que é certo é que me marcaram até hoje.

A primeira, ainda éramos "Maçaricos" com apenas 3 meses de mato, foi a FNLA a "apalpar-nos" (como se dizia na gíria militar de então), para ver como reagiamos debaixo de fogo. Assim, montaram uma emboscada numa das zonas mais conhecidas nos Dembos, uma picada cujo traçado sinuoso e perigoso, comportava as célebres “7 curvas”.

Neste local, no sentido Quicabo – Balacende, existia um morro descendente com 7 curvas, tendo como perfil, do lado direito um tapume com cerca de 3 metros, depois a picada e do lado esquerdo uma ravina.

A coluna era constituída por 6 viaturas - 2 Berliets Tramagal e 4 Unimogs a gasóleo (conhecidos por "burros de mato”) - e dois G.C. (grupos de combate). O 3º, o meu, e o 4º do Alf. Mil. Alves, que depois de escoltar um MVL (Movimento de Viaturas Logísticas), numa deslocação da fazenda Beira Baixa para o Caxito, regressava ao aquartelamento de Balacende.

Eram três da tarde e estava um dia muito quente, com a temperatura acima dos 40 graus centígrados, talvez o dia mais quente desde que estávamos em Angola. Eu seguia na 4ª viatura (Berliet Tramagal), quando a meio da descida o IN desencadeou um intenso fogo, vindo de frente, com as balas a morderem a picada levantado pequenas nuvens de pó, e do lado do tapume, passando estas balas por cima das nossas cabeças.

Instintivamente, ainda as viaturas não tinham parado, saltamos para o chão e abrigamo-nos na valeta do lado direito da picada, colando-nos ao tapume. Assim ficámos, parcialmente abrigados do fogo que vinha de frente, e totalmente do fogo vindo do lado direito, que passava por cima da picada.

O IN aproveitando as curvas da picada tinha montado a emboscada em "L", sendo o traço pequeno do "L" o fogo que vinha de frente e o traço grande do "L" o fogo que vinha do lado do tapume.

Após termos "aterrado" na valeta da picada e tendo referenciado o local donde partia o fogo de frente, iniciamos a resposta com fogo de G3 sobre aquela posição do IN, verificando que o apontador da metralhadora MG-42 montada na minha viatura, também tinha saltado, devido ao intenso fogo do IN, berrei-lhe para ir para o seu posto e fazer fogo sobre a posição dos guerrilheiros.

Saltei então para a picada, fazendo fogo para a posição inimiga e cobrindo deste modo a sua deslocação para a viatura.

Perante esta minha atitude, o soldado venceu todas as suas hesitações e subiu para a viatura, pondo a MG a "cantar". 

Estivemos assim debaixo de fogo cerca de 15 minutos, até que me decidi, depois de conferenciar com o apontador do morteiro 60, iniciar o fogo com esta arma.

Só tomei esta decisão depois de verificar que a emboscada estava para durar, pois o tiro de morteiro naquela situação era perigoso, pois as primeiras viaturas estavam próximas do tapume donde o IN fazia fogo de frente. Um tiro de morteiro que saísse curto podia atingir as NT.

As primeiras morteiradas forma mais compridas, pelo que as fomos encurtando, mas não foi necessário atirar mais de 4 granadas para o IN calar-se e desaparecer.

Depois de uns minutos de espera, voltamos a arrancar com as viaturas, enquanto nos deslocávamos apeados ao seu lado.

No final da descida do morro verificamos se havia feridos e perda de material.

Na altura pareceu-nos um milagre já que não havia qualquer ferido - nem uma beliscadura -, nem material em falta. A única "baixa" foram uns ovos partidos que o Fur. Mil. Alimentação tinha comprado no Caxito e que transportava cuidadosamente numa caixa de papelão.

Chegados ao aquartelamento, depois de relatar o acontecido ao nosso Capitão Baptista e deste ter comunicado, via rádio, ao Comando de Batalhão, ainda antes do jantar, chamei o apontador da MG-42 e, no sossego de um recanto da messe, dei-lhe uma "suave" reprimenda pelo seu comportamento na emboscada, terminando a perguntar-lhe se ele queria deixar de ser o apontador da metralhadora. Ele, talvez receando a reacção dos restantes camaradas, respondeu que não queria abandonar aquele posto e que a situação passada não voltaria a acontecer.

Dei-lhe o meu aval e de facto assim foi, pois durante o resto da comissão teve comportamento exemplar, revelando-se um óptimo apontador de ML (metralhadora ligeira), quer nas colunas auto, quer nas operações a pé.

Ao amanhecer do dia seguinte fomos fazer um reconhecimento ao local da emboscada e verificamos que o IN tinha feito umas pequenas "covas" com parapeitos de terra, próprios para fazer tiro deitado, e, pelo número de "covas", deduzimos que na posição de fogo de frente (traço pequeno do "L") estariam 10 guerrilheiros e no tapume do lado direito (traço grande do "L") estariam mais 14.

Atendendo ao número e tipo de invólucros concluímos que o IN não tinha poupado as munições e que as armas utilizadas seriam Kalashnikovs ou G3s, PPSH e Mausers, daí a intensidade e cadência do fogo IN.

A segunda emboscada, teve lugar a 18 de Fevereiro de 1970, na picada fazenda Beira Baixa – Balacende (uma via muito sinuosa, cavada em morros, mal cuidada e com o capim a invadi-la e, talvez por isso, uma das preferidas pela FNLA para montar emboscadas).

Tínhamos escoltado uma equipa de topógrafos da JAEA (Junta Autónoma Estradas de Angola), na picada Balacende - fazenda do Onzo (localizada entre a fazenda Beira Baixa e Nanbuangongo).

Chegados à fazenda do Onzo, onde estava aquartelada uma Companhia de Caçadores, "entregamos" a equipa da JAEA, bebemos um Whisky, demos dois dedos de conversa com os Camaradas aí estacionados e, pelas 21 horas, fizemo-nos á picada de regresso a Balacende.

Contrariamente a outras Unidades, nós não tínhamos reservas em andar na picada de noite, pois preferíamos ir dormir a "casa" do que ficar noutros aquartelamentos (apesar de sermos sempre bem recebidos).

Por outro lado se não demorássemos a regressar, o IN não tinha tempo de montar emboscadas. Desta vez não foi isso que aconteceu pois o IN já estava á nossa espera, até nos tinha visto passar para cima (depois recordei-me que tinha visto várias pegadas na picada).

Como viemos a saber (através da DGS do Caxito) o IN tinha sido avisado por um elemento nativo da equipa da JAEA do dia e hora em que íamos levá-los ao Onzo.

Essa informação foi passada durante os trabalhos dos topógrafos quando os seis elementos nativos da equipa capinavam junto á orla da mata, encontraram um bilhete a perguntar quando deixavam Balacende e para onde iam. Essa pergunta foi respondida uns dias antes da nossa ida ao Onzo, através de outro bilhete.

Assim, quando nos encontrávamos a cerca de 12 Kms das "Portas da Guerra" o IN desencadeou forte tiroteio num local muito sinuoso, com muitas curvas, um tapume do lado esquerdo e uma ravina com capim e mata do lado direito, isolando entre duas curvas a 4ª viatura - um Unimog “burro de mato” -, onde seguia o Alf. Mil. Diogo.

Lembro-me perfeitamente que seguia na 1ª viatura, uma Berliet Tramagal, junto do condutor e, como o capim me batia no corpo, cheguei-me para junto do condutor (o banco da cabine da Berliet tinha 3 lugares).

Ao ouvir o primeiro tiro saltei logo da berliet, secundado por todo o pessoal, tendo verificado que a frente da coluna não era alvo dos tiros, chamei o 1º Cabo Coutinho e, com a sua secção, corremos ao longo da coluna até que, depois de passarmos a 3ª viatura e dobrarmos a curva que se seguia, deparamos com um cenário dantesco; a 10/15 metros estava o Unimog, alvo da emboscada, com corpos espalhados pelos dois lados.

Estava uma noite de luar, que iluminava a picada de terra amarelada e que nos permitia ver com alguma facilidade. Vislumbramos então 4 vultos, meio agachados na berma da picada do lado da ravina e, sem hesitações, abrimos fogo e vimos cair logo um corpo, desaparecendo no capim os outros três.

Aproximamo-nos do Unimog e o Alf. Mil. Diogo logo me disse que tínhamos mortos e que ele tinha sido atingido no pé. Dos 8 elementos que seguiam no veículo, 2 estavam mortos, outros dois gravemente feridos, três feridos ligeiros e só o condutor estava ileso.

A emboscada foi iniciada com um tiro de aviso dado do tapume que atingiu, ainda sentado, o 1º Cabo Adelino Santos que teve morte imediata.

Seguiram-se várias rajadas que apanharam no ar o soldado Luís Fernandes, que chegou ao solo já morto. Os outros dois soldados que seguiam no banco do Unimog voltados para a ravina, foram atingidos à queima-roupa, ficando gravemente feridos.

Com a minha intervenção e da secção do 1º Cabo Coutinho, tínhamos impedido que os guerrilheiros fossem á picada junto dos corpos mortos e feridos das NT, e levassem as suas armas.

Ouvindo restolhar no capim, arremessei duas granadas ofensivas e organizei um dispositivo de segurança. Tendo chegado ao pé de mim o Furriel Louro e o Furriel Paixão, do 2º Pelotão (Alferes Diogo), logo lhes atribui as missões de colocarem rapidamente os mortos no Unimog atingido e os feridos na 1ª viatura (Berliet Tramagal) e de recolherem todo o material deixado na picada (armas, carregadores, facas de mato, cantis, etc.).

Logo que estas ordens foram cumpridas mandei a coluna arrancar, devagar, com os faróis apagados e as viaturas mais próximas (coluna mais fechada) e avançamos com o pessoal apeado. Percorridos cerca de 300 metros, mandei o pessoal “montar” e arrancamos novamente a toda a velocidade.

Chegados a Balacende os feridos foram transportados para a enfermaria e os mortos para a pequena Capela. O quartel estava em alvoroço toda a gente queria saber o que se passara, formaram-se pequenos grupos de soldados que junto da enfermaria pretendiam saber do estado físico dos seus camaradas feridos, que gritavam de dor. A pergunta mais ouvida era: “Eles safam-se?”.

Entretanto eu tinha sido chamado à presença do Capitão Baptista, que se encontrava na messe, para lhe relatar pormenorizadamente o sucedido. Acabado o meu relato verbal o capitão precipitou-se para a sala de transmissões, para, via rádio, informar o Comando do Batalhão do sucedido.

Tendo ficado sozinho na messe, respirei fundo e dei 2 gritos bem do fundo da alma, como a querer expulsar os demónios que pareciam habitar no meu corpo. Já mais calmo, dirigi-me á Capela onde cinco soldados preparavam os corpos dos nossos Camaradas mortos para serem transladados para a Metrópole. Chegado junto dos falecidos vi que o 1º Cabo Adelino Santos tinha apenas um pequeno orifício no peito, junto do coração, mas voltado o corpo, nas costas tinha um buracão onde cabiam dois punhos fechados (o tiro tinha sido de uma Mauser usando bala com ponta cortada). O Soldado Luís Fernandes tinha o peito cheio de pequenos orifícios (tinha sido atingido com 1 ou 2 rajadas de balas em pleno peito).

Saí da Capela e dirigi-me á Messe dos Sargentos onde se encontravam os Furriéis Louro e Paixão. Ao primeiro pedi que reunisse junto da caserna o nosso G.C. e ao segundo pedi que reunisse todos os pertences dos mortos para serem enviados às famílias.

Quando me dirigia para a Caserna do meu G.C. pensava em que palavras de apoio e coragem lhes ia dizer, mas ao chegar junto deles, formados em semi-circulo, ao ver os seus rostos duros, fechados, transpirando ira e clamando por vingança, apenas lhes disse “estejam descansados que os camaradas mortos serão vingados e ai daquele que cair vivo nas nossas mãos”.

Aconselhei-os a descansarem pois pela manhã partiríamos a fim de efectuarmos o reconhecimento do local da emboscada. Pelas 2 horas chegou a coluna de Quicabo com o Ten. Cor. Manuel Monteiro - Comandante do Batalhão -, que trazia duas urnas.

Depois de fazer o ponto da situação com o Alf. Médico Aragão Machado, o comandante acompanhado do Cap. Baptista dirigiu-se para a messe onde mais uma vez relatei tintim por tintim, tudo o que se tinha passado.

Pelas 8 horas poisaram ali dois helicópteros “Alouettes III”, para evacuarem todos os feridos e, logo de seguida, partiu uma coluna auto a 2 pelotões para reconhecimento do local da emboscada.

Chegados ao local da emboscada e montado um dispositivo de segurança, verificamos logo que a picada tinha várias poças de sangue que nos apressamos a cobrir com terra, mas uma, a que estava ao pé da berma da picada junto do capim, fizemos questão de não a cobrir e continuou à mostra (era o sangue do guerrilheiro abatido).

No tapume havia duas “camas de capim” e invólucros de 7,9 mm, que deduzimos ser de uma espingarda Mauser. No lado da ravina, mesmo junto da berma da picada, percebia-se bem os lugares onde o IN tinha estado deitado a fazer fogo e seguindo o trilho de fuga a uns 10 metros da picada encontramos 8 “camas de capim”.

Continuamos a seguir o trilho, agora já em mata densa, por mais meia hora até encontrar uma clareia, onde era detectamos uma grande poça de sangue. Ficamos com a certeza de que pelo menos tínhamos feito, pelo menos, mais um ferido. Regressados ao quartel, pelas 12 horas, eu, depois de um duche retemperador, deitei-me e finalmente consegui adormecer.

A vingança era certa e não tardaria!

Fotografias: © Eduardo Lopes (2011). Direitos reservados.

Fotografia do Unimog: © J. J. Grilo (2011). Direitos reservados.

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

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