domingo, 5 de setembro de 2010

M257 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - XIX

ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M233 a M244, M246, M248, M249, M250, M252 e M253. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M234, depois a M235… M236... M237… etc.

Manuel Godinho Rebocho
2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)
Bissalanca/Guiné
1972 a 1974

O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.

Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M233 a M244, M246, M248, M249, M250, M252 e M253:

III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES
(continuação)
3.3 – A Milicianização da Guerra

Da conjugação dos elementos constantes no livro do Estado-Maior do Exército (EME, 2002), com os elementos constantes nos processos sobre as histórias das unidades que estiveram em África, existentes no AHM, pode concluir-se que das 102 Companhias de Quadrícula, que estavam em Sector na Guiné, em Janeiro de 1974, apenas 11 tiveram algum comando de Oficiais oriundos da Academia Militar, mas só durante 9 meses, em média. Durante o restante tempo, em que permaneceram em sector, tanto estas Companhias como todas as outras, foram comandadas por Oficiais milicianos.
Todavia, e não obstante esta factualidade, neste mesmo período existiam nas patentes de combate (Capitães, Tenentes e Alferes), 880 Oficiais das Armas Combatentes (Infantaria, Artilharia e Cavalaria) originários da Academia Militar, entre os quais 759 Capitães.
Temos assim, que o Exército se milicianizou em toda a sua estrutura de combate (1) com todas as consequências que uma tal derivação doutrinária teria forçosamente que provocar.
Obtida esta verificação procurei apreciar o desempenho de algumas Companhias, cujo comando foi exercido por Oficiais milicianos, que estiveram estacionadas no sul da Guiné, mantendo assim semelhanças ambientais com as outras unidades de quadrícula e especiais já estudadas. Com este objectivo recorri à consulta dos respectivos processos históricos e à entrevista de Oficiais milicianos envolvidos. Quando as circunstâncias o permitiram e fui para tal convidado, compareci nas comemorações que estas unidades realizam, por norma anualmente. Foi o caso da Companhia de Cavalaria n.º 8350/72, mobilizada no Regimento de Cavalaria n.º 3 em Estremoz, a qual ficou para a história militar como a unidade que personalizou o abandono de Guileje e o drama de Gadamael, no extremo sul da Guiné, nos meses de Maio e Junho de 1973.

Das longas horas de gravação rádio que efectuei (2) com diversos elementos desta unidade, particularmente com o seu Comandante (3), conjugadas com o meu próprio conhecimento dos factos, dos procedimentos e das situações foi possível descrever o desempenho desta “unidade de milicianos” nos seguintes termos.
3.3.1 – A Companhia de Cavalaria 8350/72
A Companhia chegou à Guiné no dia 25 de Outubro de 1972, tendo assumido responsabilidades no subsector de Guileje, no dia 22 de Novembro do mesmo ano, cuja acção foi orientada para a abertura do itinerário Guileje-Mejo e para a interdição da zona de fronteira. Porém, e segundo o então Comandante desta Companhia, só após a criação do Comando Operacional n.º 5, em 22 de Janeiro de 1973, se deram início às operações de abertura do itinerário Guileje-Mejo, o que em boa verdade não se compreende. Mejo era um antigo Destacamento abandonado havia muitos anos, o itinerário estava minado e não se previa qualquer circulação das nossas tropas por esse itinerário.
O Comandante da Companhia 8350, Capitão miliciano de Artilharia, estabeleceu e estruturou, com o apoio do Alferes miliciano que comandava o Pelotão de Artilharia, um sistema de apoio às tropas, que patrulhavam a zona de fronteira, de extrema eficácia. Este sistema consistia no bombardeamento antecipado dos itinerários que as suas tropas iriam percorrer, o que permitia, segundo os vários graduados que entrevistei, uma segurança e tranquilidade muito acentuada. Sobre este assunto escreveu o Furriel miliciano de Operações Especiais, José Casimiro Pereira de Carvalho, em carta (4) dirigida a sua mãe e datada de 17-02-73: “Saímos às seis da manhã e chegámos às 14, estivemos quase na República da Guiné. Antes de ali chegarmos fomos protegidos com 20 tiros de Peças de Artilharia 11,4 cm. Cada granada pesa 25 kg”.
A grande precisão e eficácia dos bombardeamentos da nossa Artilharia, a cargo e à responsabilidade de um Alferes miliciano, impedia qualquer veleidade do inimigo em se aproximar ou atacar, com alguma eficácia, o Aquartelamento de Guileje. Houve mesmo homens desta Companhia que me afirmaram que a vida no Destacamento era passada com alguma tranquilidade. Em carta de 21-03-73, para a mãe, afirmava o Furriel Carvalho: “mando-lhe uma foto, de quando eu vinha de dar uma volta com a pressão de ar e com dois pardais à cintura”. O pequeno testemunho, que aqui transcrevo, revela efectivamente o quando a zona de Guileje estava limpa da pressão da Guerrilha.
O relato não deixa quaisquer dúvidas de que os Oficiais milicianos não tinham menos preparação técnica, para a Guerra que enfrentámos, do que os Oficiais do QP. Vejamos mesmo o seguinte comentário, do Furriel Carvalho, na carta citada anteriormente: “ficaram vários turras feridos numa mina que pusemos, perto do território deles, e que eles levaram, (os turras mortos e feridos) é claro, mas fica sempre sangue e bocados de carne, botas e roupa. Isto é chamá-los a pôr mais minas contra nós, mas os Altos Comandos assim mandam.”
A afirmação proferida por um Furriel miliciano que, conjugada com outros relatos e elementos que me foram facultados, demonstram que quem iniciou as hostilidades no extremo sul da Guiné foi o Estado-Maior português e não a Guerrilha, cuja resposta um Furriel previu e o Estado-Maior não. Estávamos a 21 de Março de 1973. Quatro dias depois, a 25 do mesmo mês, a Guerrilha iniciou os grandes ataques a Guileje.
Foi a resposta, que o Estado-Maior não previu, nem soube contrariar, logo, não pode afirmar qualquer capacidade formativa sobre os Oficiais milicianos, os quais provaram estar bem “acima deles”, ou, por outras palavras, os aspectos técnicos desta Guerra eram tão primários que todos os conheciam, as diferenças estavam nas capacidades de cada homem, que pouco ou nada tinham a ver com o quadro a que cada um pertencia.
– A 1.ª Companhia do Batalhão de Artilharia 6521/72
A Companhia chegou à Guiné no dia 27 de Setembro de 1972, sendo colocada em Cadique no dia 21 de Janeiro de 1973 a fim de reforçar a segurança e protecção dos trabalhos de construção da estrada Cadique-Jemberém. Em 20 de Abril de 1973 seguiu para Jemberém, tendo sofrido 18 ataques e flagelações até 4 de Setembro de 1973, data em que foi substituída (EME, 2002: 243).
O comando do Batalhão, a que esta Companhia pertencia, foi colocado no Pelundo, em cujas proximidades ficaram estacionadas as outras duas Companhias que o integravam. Sabendo que a zona do Pelundo era, já na altura, uma zona relativamente pacificada, fica ao analista uma certa interrogação sobre o que teria motivado a desagregação desta Companhia, que foi colocada, no muito provavelmente, segundo pior local do sul da Guiné, já que estou a considerar que o pior era Guileje. Este facto sugere-me que a Companhia era possuidora de alto valor e merecedora de confiança do Comando Chefe. Eu próprio a conheci de perto, uma vez que a minha Companhia esteve dois meses em Cadique em simultâneo com ela.
Durante estes dois meses a segurança de proximidade aos trabalhos da estrada foram alternadamente garantidos por esta Companhia e pela Companhia de Pára-Quedistas. A Companhia de Artilharia, em funções de Infantaria, somente não se deslocava para as proximidades das bases dos Guerrilheiros – também seria pedir demais – tarefa que ficou sempre à responsabilidade dos Pára-Quedistas. Mais tarde, nos meados de Maio de 1973, quando os Guerrilheiros cercaram Jemberém, impedindo o seu abastecimento, e a CCP 123 se deslocou para as suas proximidades, foi colocado neste destacamento o bigrupo constituído pelos 2.º e 4.º pelotões, comandado pelo Tenente Sousa Bernardes e integrando o 2.º Sargento Pára-Quedista Joaquim Manuel Delgadinho Rodrigues, que na altura comandava o seu pelotão, o qual, tanto na altura, como em entrevista no âmbito da presente investigação, me referiu o elevado comportamento desta unidade de tropa normal que era comandada pelo Capitão Miliciano de Cavalaria Casimiro Gomes.
Esta verificação demonstra-nos que todos os Capitães que actuaram como operacionais na Guerra de África dispunham dos conhecimentos suficientes às suas funções e ao desempenho que deles se esperava e requeria. As diferenças, e grandes, que as houve, estiveram e foram sempre dependentes das capacidades dos homens e não nem nunca do quadro a que pertenciam nem do tipo de formação que tinham adquirido.

– A 3.ª Companhia do Batalhão de Caçadores 4514/72
A Companhia chegou à Guiné no dia 9 de Abril de 1973, sendo colocada em Nova Lamego. A partir de 10 de Junho de 1973, foi atribuída em reforço do COP 3, instalando-se em Guidaje, até finais de Agosto desse ano, por naquela área se ter acentuado a pressão inimiga. Em 4 de Setembro foi deslocada para Jemberém, onde se manteve até 23 de Maio de 1974 (EME, 2002: 175). Como nos sugerem as datas e a documentação nos confirma, esta Companhia rendeu em Jemberém a 1.ª Companhia do Batalhão de Artilharia 6521/72.
Mais uma vez, complementarmente a tantas outras, se comprova terem existido na Guerra de África excelentes Oficiais milicianos, garantindo-nos que a formação não era limitadora de nada nem diferenciadora de coisa alguma. Antes, tudo dependia das capacidades psicofisiológicas dos diversos actores.
Esta Companhia foi teoricamente comandada por dois Capitães, dos quais apenas um a comandou efectivamente, mas apenas durante 15 dias, durante todo o tempo restante, que na prática foi toda a comissão, foi comandada pelo Alferes miliciano António Augusto Soeiro Delgadinho. Esta verificação, de significativa importância, demonstra-nos que não só os Capitães milicianos demonstraram capacidade para comandar as Companhias, mas também alguns Alferes milicianos provaram deter essa capacidade.
A afirmação é tanto mais relevante, se tivermos em consideração que Jemberém foi seguramente o aquartelamento que, em toda a Guiné, apresentava piores condições de defesa, já que estava situado no Cantanhez e não foram edificados quaisquer abrigos, nem mesmo estruturada qualquer organização defensiva.
Neste aquartelamento, limitado por uns arames mal colocados, onde algumas tendas de campanha serviam de bar, de arrecadação e de enfermaria, os militares viviam em buracos no chão com umas folhas de zinco a protegê-los das chuvas e do sol, folhas de zinco essas, que não chegaram pata todos. O efectivo militar deste destacamento era constituído por duas Companhias e um Pelotão de Artilharia, o que justificava plenamente o Comando de um Major do QP. Porém, o Comando estava entregue a um Capitão miliciano apoiado por cinco Alferes, também milicianos.
Uma verdadeira “debandada”, é a designação que considero apropriada para designar a conduta dos Oficiais do QP.
Em e-mail que me enviou, no dia 13 de Julho de 2005, como que para sintetizar toda a nossa longa entrevista, afirmava o então Alferes miliciano, Comandante da 3.ª Companhia do Batalhão de Caçadores 4514/72, António Augusto Soeiro Delgadinho: “não posso deixar de comentar como foi possível acontecerem situações como aquelas que os nossos governantes da altura nos fizeram.
Temos a consciência que nenhuma guerra se faz só com os profissionais; os milicianos também têm que fazer parte dela; mas falo da Guiné que foi o que conheci, nós, milicianos e soldados, fomos pura e simplesmente despejados para zonas, das quais não conhecíamos nada, nem sabíamos o que é que íamos fazer.
Ter um Comandante de Batalhão, que não sei se comunicámos mais de 20 vezes, que nunca teve a coragem de nos visitar, que nunca nos apoiou em nada, sendo ele profissional, foi no mínimo uma irresponsabilidade total.
Pessoalmente, só tenho a agradecer a todos aqueles militares e milicianos que me acompanharam nesta tarefa e que juntos conseguimos manter a moral em alta e superar toda esta situação impensável e denegrida que nos obrigaram a afazer.”
As palavras que me escreveu o cidadão António Augusto Soeiro Delgadinho, sugerem uma pergunta e desde logo uma resposta: qual a diferença entre os Oficiais do QP e os Oficiais milicianos? Os valores que individualmente perseguiam detinham e a estabilidade no emprego. Nada mais.

NOTAS do texto:

(1) Tenho aqui em consideração que os Pelotões foram sempre comandados por Oficiais milicianos.

(2) Nestas gravações de entrevistas e na condução das mesmas fui apoiado pelo Capitão Pára-Quedista na reforma Joaquim Manuel Delgadinho Rodrigues, o mesmo que quando 2.º Sargento orientou os “seus homens” na resposta e contenção de um forte ataque da Guerrilha, em Gadamael, em Junho de 1973, mesmo depois de terem sido abandonados pelos restantes homens da Companhia que cumpriram as ordens de retirada, proferidas pelo Comandante de Companhia. Retirada essa que os homens de Delgadinho não podiam cumprir devido à violência do ataque e ao perigo que corriam se o fizessem.
(3) Capitão Miliciano de Artilharia Abel dos Santos Quelhas Quintas, então com 32 anos de idade.
(4) O Furriel Carvalho escrevia todos os dias a sua mãe e relatava tudo o que acontecia na unidade com extremo pormenor. Estas cartas, que ainda guarda, podem constituir-se como um diário de grande fidelidade. Foram estas cartas que José Carvalho me facultou e suportam as minhas afirmações.

(continua)
Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados

sábado, 4 de setembro de 2010

M256 - RANGERS DE PORTUGAL - C.T.O.E. - LAMEGO - Uma Unidade de Elite do Exército Português e do Mundo 4

RANGERS DE PORTUGAL

C.T.O.E. - Centro de Tropas de Operações Especiais
LAMEGO


Uma Unidade de Elite do Exército Português e do Mundo
2010
50º ANIVERSÁRIO
2010 - O ANO DOS RANGERS DE PORTUGAL
Com a devida vénia e o melhor agradecimento ao "Jornal do Exército" (uma das publicações mais antigas do género em todo o mundo), publicamos a seguir um lúcido e fantástico artigo, a 10 páginas, da autoria do RANGER Alferes RC Helder da Silva Serrão, que saiu na citada revista do último trimestre.
NOTA: A leitura das páginas pode ser efectuada a partir da ampliação (zoom), clicando 1 vez sobre cada uma delas.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

M255 – RANGER Ricardo Sousa do 2º Curso de 1972


RANGER Ricardo Sousa

Mais um RANGER se apresenta nesta galeria virtual, o Ricardo Pereira de Sousa que completou o seu curso em Penude no 2º turno de 1972. 



Foi mobilizado como Alferes Miliciano para a 3ª CART do BART 6522 (3ª Companhia de Artilharia do Batalhão de Artilharia nº 6522), com destino à Guiné (Sedengal, 1972/74). 

O RANGER Sousa é o 5º elemento do 2º curso de 1972 a ser aqui apresentado, juntando-se ao António Inverno, Casimiro Carvalho, Rosa Rodrigues e Martins. 


O RANGER Ricardo Sousa em Penude

M254 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - XVIII



ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M234 a M244, M246, M248, M249, M250 e M252. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M234, depois a M235… M236... M237… etc.

Manuel Godinho Rebocho
2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)
Bissalanca/Guiné1972 a 1974
O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.


Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M234 a M244, M246, M248, M249, M250 e M252:
III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES
(continuação)


3.2.2 – Tropas Nativas
A partir de 1970 a organização da Guerra de África, nos três teatros de operações, evoluiu substancialmente: foi determinada a formação de 160 Capitães milicianos por ano, com base em instruendos do COM e incentivou-se a “africanização” com a criação de tropas de elite nativas.
Estas tropas, algumas de muito valor, eram comandadas por nativos graduados em Oficial, Oficiais milicianos e Sargentos graduados em Oficial. A descrição, ligeira e muito suave, revela a existência de duas realidades:
Os Oficiais de carreira estavam abandonando total e completamente as zonas e as funções de guerra (1);
Os nativos, os Oficiais milicianos e os Sargentos revelavam, na sua maioria, possuir formação técnico-táctica suficiente para o desempenho das funções de Comandantes de Pelotões e de Companhias de Tropas de Elite Nativas. Se eram capazes de comandar, porque comandaram tropas nativas, muito melhor, porque muito mais fácil, teriam comandado tropas de reforço, isto é, tropas idas da Metrópole.
Esta verificação, incontornável, demonstra o quanto, em meu entender, a formação das elites militares que executaram a Guerra, esteve errada. Privilegiou-se a componente literária, que não tinha no combate qualquer relevância, e desprezou-se a componente dos valores e das capacidades que eram, aí, determinantes. Em suma, a fractura na formação, que teria este resultado, deu-se em 1959, quando foi anulada a componente «motivação» para ingresso na EM.
– Comandos Africanos — Guiné
Os Comandos Africanos dos quais se formaram três Companhias constituíram a melhor tropa nativa que actuou na Guiné. Passo a descrever e a avalizar cada uma delas:
Primeira Companhia de Comandos Africanos
Esta Companhia foi organizada a partir de 9 de Julho de 1969, exclusivamente com pessoal da Guiné e formada com base em anteriores Grupos de Comandos existentes junto dos Batalhões, tendo iniciado a sua instrução em 6 de Fevereiro de 1970. Foi-lhe fixada sede em Fá Mandinga, com a missão de intervenção e reserva do Comando Chefe. Desempenhou funções de reforço em vários sectores, tendo tomado parte em operações nos mais variados pontos da Província. As missões que desempenhou foram de complexidade e perigosidade idêntica às missões desempenhadas pelos Pára-Quedistas, junto dos quais operou e efectuou bons desempenhos (EME, B, VII Vol., Tomo II, 1988: 648 e 649).
A Primeira Companhia de Comandos foi sucessivamente comandada pelos seguintes nativos graduados:
Capitão graduado Comando (Cmd) João Bacar Jaló, que anteriormente era milícia no Ilhéu de Infanda (2).
Tenente graduado Cmd Abdulai Queta Jamanca
Tenente graduado Cmd Cicri Marques Vieira
Capitão graduado Cmd Zacarias Saiegh


b) Segunda Companhia de Comandos Africanos
A Segunda Companhia de Comandos Africanos foi organizada e instruída em Fá Mandinga, a partir de 15 de Abril de 1971, exclusivamente com pessoal africano natural da Guiné e foi formada com base em anteriores grupos de Comandos existentes junto dos Batalhões e com graduados vindos da Companhia anterior.
A actividade operacional desenvolvida por esta Companhia era em tudo semelhante à da Companhia anterior. Comandaram esta Companhia, os seguintes cidadãos nativos:
Tenente graduado Cmd Mamadu Saliu Bari
Tenente graduado Cmd Adriano Sisseco


Tenente graduado Cmd Armando Carolino Barbosa (EME, B, VII Vol. Tomo II, 1988: 650 e 651).
c) Terceira Companhia de Comandos Africanos
A Terceira Companhia de Comandos Africanos foi organizada e instruída em Fá Mandinga, a partir de 14 de Abril de 1972, sendo constituída exclusivamente com pessoal africano natural da Guiné, recrutado nas subunidades africanas da organização territorial e das subunidades de milícias e com graduados vindos das anteriores Companhias.
A sua actividade operacional foi em tudo idêntica à das outras Companhias de Comandos Africanos. Os seus Comandantes foram sucessivamente, os seguintes cidadãos nativos:
Alferes graduado Cmd António Jalibá Gomes
Tenente graduado Cmd Bacar Djassi
Alferes graduado Cmd Aliú Fada Candé
Alferes graduado Cmd Malan Balde (EME, B, VII Vol., Tomo II, 1988: 652).
Como se vê, todos os homens que comandaram estas Companhias e, consequentemente, os que comandaram os Pelotões e as Secções, eram nativos sem qualquer formação literária ou académica, e todos eles tiveram desempenhos de elevada qualidade. Os Comandos Africanos constituíram assim, uma inequívoca demonstração, de que o valor combativo do militar operacional reside nas suas capacidades pessoais, na experiência, que melhora continuamente o desempenho e menos na formação técnico-táctica.
O conceito de experiência fica bem demonstrado quando verificamos que os graduados da Segunda Companhia vieram da Primeira, já com experiência, e os graduados da Terceira Companhia vieram das outras duas, igualmente já com experiência anterior. O Comando-Chefe não arriscou lançar uma Companhia com graduados novos, muito embora todos os homens já tivessem experiência de combate, o que demonstra a preocupação que constituía esta componente de formação.
– Grupos Especiais - Moçambique
O estudo sobre os GE utiliza como exemplo representativo de todos eles, os grupos que existiram no Distrito de Niassa, em Moçambique, uma vez que estas tropas seguiam todas o mesmo sistema de recrutamento, de formação, de organização e de funcionamento. A escolha deste Distrito não foi aleatória, ficando a dever-se à possibilidade única de recolha de informação, uma vez que residem em Beja dois antigos Oficiais milicianos ligados a estes grupos, que se disponibilizaram a ceder-me a informação de que dispunham.
A recolha da informação foi efectuada através de entrevista (3), ao longo de várias sessões, com Salvador Leonardo Grilo da Silva, um jovem natural do concelho de Portel, no Distrito de Évora, que em 1966, com 22 anos, e possuindo como habilitações literárias o então 7.º ano dos liceus, assentou praça em Mafra, na EPI, no COM. Terminado o curso e promovido a Aspirante foi colocado em Chaves, onde cumpriu o seu serviço militar normal, tendo passado à disponibilidade no dia 1 de Abril de 1969.
Em Julho de 1972, o cidadão Salvador, então com 28 anos, casado, com vida constituída e dois filhos, foi notificado para reintegrar o Exército, o que aconteceu em Outubro desse ano. Ingressou de imediato no Curso Para Capitão, com a duração de quatro meses, na EPI, para o que fora promovido a Tenente. Neste curso, segundo me conta, com algumas graças a propósito, teve como monitores Tenentes de carreira que nunca tinham ido a África e por colegas de curso vários Tenentes milicianos, com graus académicos elevados (havia quem tivesse doutoramento), que confrontavam os Tenentes de carreira com a ingenuidade de algumas das ideias e acções que lhes queriam transmitir.
Terminado o curso, Salvador Silva foi mobilizado em Junho de 1973 para Moçambique, tendo sido colocado em Vila Cabral, capital do Distrito de Niassa, como Comandante Regional dos GE. A função integrava-se no Estado-Maior do Sector, com a denominação de «Chefe de Secção de Aldeamentos e GE», cujas funções consistiam na gerência e controle da autodefesa dos aldeamentos, com o apoio logístico das Companhias de quadrícula que estavam colocadas junto a esses aldeamentos.
Para o desempenho dessas funções, o então já Capitão Salvador tinha competências disciplinares equivalentes a Tenente-Coronel, Comandante de Batalhão, mas com vencimento e honras militares de Capitão “trabalho sim, direitos não” como fez questão de vincar. Para trabalhar com tropas nativas, mesmo que especiais, era posição a que Oficial de carreira não descia. O comando era de Tenente-Coronel, mas como exigia frequentes deslocações ao mato atribuiu-se a um Capitão miliciano.
Os GE existentes no Distrito de Niassa, em número de sete, eram grupos de combate, de recrutamento voluntário na população nativa e, em alguns casos, integrados pela «recuperação» de dissidentes ou antigos Guerrilheiros que, tendo sido feitos prisioneiros, se haviam «reconvertido».
Os grupos assim constituídos eram enquadrados por Oficiais e Sargentos milicianos do recrutamento normal, que eram voluntários para aquelas funções ou seja, por Oficiais e Sargentos milicianos, em Serviço em Moçambique, que se ofereciam para funções de Comando nos GE. Embora o comando destes grupos fosse geralmente exercido por milicianos do recrutamento normal, situações houve, em que foram graduados e, por isso, exerceram funções de comando, membros do próprio grupo. As graduações eram concedidas aos homens que se distinguiam na sua actividade militar e cívica ou seja, àqueles que tinham revelado liderança no grupo. A função de comando conferia-lhe, adicionalmente, não só uma posição social acrescida, como um considerável aumento salarial, o que proporcionava um incentivo a todos os Soldados no sentido da sua aplicação operacional — objectivo último e único da sua existência.
As informações sobre o GE n.º 101, aquartelado em Nova Coimbra, um dos sete formados e existentes no Distrito de Niassa, foram-me prestadas, em entrevista (4), por Narciso António Pires Gaitinha, então Alferes miliciano de Operações Especiais, o qual Comandava o grupo em 25 de Abril de 1974, pelo que foi o seu último Comandante. Gaitinha de proveniência social na classe média baixa, iniciou a sua actividade militar no Curso de Sargentos Milicianos, no fim do qual foi «repescado» para o COM. Formou Batalhão em Chaves, com destino a Moçambique, sendo-lhe atribuídas as funções de Adjunto do Comandante da 2.ª Companhia de Caçadores.
Em Moçambique já como Alferes miliciano ofereceu-se para os GE e, em Abril de 1973 foi-lhe atribuído o Comando do grupo n.º 101. O meu entrevistado faz questão de notar que, quando chegou ao grupo, este era comandado por um Furriel miliciano em fim de comissão, Manuel Almeida, actualmente a viver na cidade do Porto, a partir de onde, via telefone, apoiou a entrevista, sobre factos de que Pires Gaitinha já não se recordava na perfeição. Manuel Almeida esclareceu, que a sua presença ao Comando do grupo se ficou a dever a ferimentos em combate do Comandante do mesmo, um cidadão natural da Província, graduado em Sargento Ajudante, de nome Biguane, então com 56 anos.
A constatação inevitável e que me acompanha desde o início do capítulo, é a de que também estas tropas viveram numa situação em que os Comandos tinham patentes hierárquicas substancialmente inferiores à formação normal de tropas com funções desta natureza. Estamos perante grupos de tropas especiais comandados por Oficiais milicianos, Furriéis milicianos e Praças graduadas e, todos eles, com pouca formação e sem experiência, tanto de comando como de combate, pelo menos no início. O que me é dado conhecer com estes grupos, adiciona-se ao conhecimento entretanto já acumulado, segundo o qual as capacidades destes homens para a função de comando de unidades de combate se deviam às suas características psicofisiológicas, com um pouco de formação e sempre aperfeiçoadas com a experiência, que iam adquirindo com o tempo, pois, como me foi dado saber, o comando não era entregue a estes homens sem que antes participassem em algumas operações sob o comando de militares mais antigos, digamos que havia uma sobreposição que permitia uma ambientação e treino antes de exercerem o comando efectivo.
Organicamente, o Grupo era formado por 63 homens, de idades compreendidas entre os 18 e os 35 anos, divididos em 3 Secções de combate comandadas por um Furriel miliciano ou Furriel graduado e em cada Secção havia 4 equipas de combate constituídas por 5 homens, um deles, graduado em Cabo. Tal como os rádios de transmissões, o armamento destes grupos era igual ao do Exército. Além dos 63 homens, formavam ainda o Grupo o respectivo Comandante e um Furriel miliciano com funções administrativas.
O número de graduados do Grupo foi variando em função do tempo de comissão de cada um. No início de 1974 as Secções de combate eram comandadas por Cabos graduados em Furriéis, naturais da região, de nomes Estivine, Evaristo e Botomane, os quais viviam no aquartelamento do Grupo com as suas famílias.
As operações eram executadas segundo as ordens de operações recebidas do Comando de GE estacionado em Vila Cabral, realizando-se mensalmente duas ou três operações, dependendo da sua duração, a qual se situava sempre entre 4 e 8 dias. Em regra, todas as operações eram realizadas ao nível de Secção de combate, saindo para o mato entre 35 a 45 homens (duas Secções de combate); os restantes ficavam a descansar e a cuidar da segurança do aquartelamento.
O Comando das operações estava a cargo do Alferes ou de um dos Furriéis designado pontualmente, pois não se considerava qualquer grau de hierarquia entre eles.
O Comando das operações, como me foi descrito pelo meu entrevistado, merece uma cuidada e objectiva referência; como fica inequivocamente demonstrado, havia operações executadas por estas tropas especiais comandadas por homens que tinham por formação base apenas a que tinham recebido numa Escola de Cabos, pois os Furriéis, como já referi, eram Cabos graduados.
A acrescer a esta situação, de que não nos podemos alhear, o grupo actuava numa zona de conflito aceso.
Não se pode sustentar as capacidades operacionais ou de combate destes Cabos graduados na sua formação técnica, porque a não a possuíam. A menos que queiramos inverter tudo o que até hoje se disse, ou seja, que as tropas de quadrícula tinham uma preparação técnica muito baixa. É que estes Cabos nem sequer eram originários de tropas especiais que pudessem ter uma melhor formação, sendo originários de tropas normais.
Não tenho dúvidas de que os referidos Cabos graduados eram líderes no seu meio, por isso se ofereceram e por isso foram escolhidos e graduados. Estes exemplos revelam-nos, inequivocamente, que as capacidades de combate não têm a sua proveniência na formação técnico-táctica, embora esta formação as melhor e a proveniência destas capacidades está essencialmente nas características psicofisiológicas do homem, neste caso combatente.
A verificação da prevalência do valor humano face à formação técnica, que já conhecia, revela de forma inequívoca que, se por um lado os Altos Comandos Militares portugueses conduziram bem a Guerra, do ponto de vista estratégico, falharam de forma impressionante e primária ou grosseira, na gestão e formação do pessoal, que constituiu a base do Exército durante a Guerra de África e é o nosso único meio para o futuro.
3.2.2.3 – Grupos Especiais Pára-Quedistas - Moçambique As informações sobre os GEP foram-me proporcionadas pelo Capitão Pára-Quedista, oriundo de Sargento, Joaquim Pereira, que com o posto de Tenente foi Segundo Comandante dos GEP; pelo Tenente-Coronel, oriundo de Sargento, António Gomes de Almeida, e pelo Sr. Fernando dos Santos Martins, os quais, como Segundos Sargentos Pára-Quedistas integraram o comando dos GEP.
O que se pode concluir e resumir, das três longas entrevistas, é que os GEP mais não foram do que uma variante dos GE. Quer isto dizer, que a um GE já constituído ou a constituir, foi-lhe ministrado um curso de Pára-Quedismo, transformando-se então em GEP.
Estes grupos nunca iniciaram qualquer operação através de lançamento em Pára-quedas. A sua utilização operacional seguiu muito de perto a praticada pelos Pára-Quedistas metropolitanos, com os quais rodavam em Destacamentos do Exército. A colocação de helicóptero foi frequentemente a forma utilizada, no que seguiam a metodologia dos Pára-Quedistas metropolitanos.
A sua formação orgânica e hierárquica era muito semelhante aos GE, com os postos da hierarquia ocupados pelas mais diversas graduações: Oficiais milicianos, Sargentos do quadro ou milicianos e Cabos Pára-Quedistas, todos graduados nas patentes convenientes, as quais vêm reforçar e de certo modo provar que o recrutamento seguido em Portugal para os postos operacionais do oficialato se traduziu num gravíssimo “erro” do poder político e militar de então.


NOTAS do texto:


(1) Como se prova na documentação citada na nota 160 da página 402.


(2) Segundo o Major-General Canha da Silva, que o conheceu, quando comandou a Companhia de Cufar, em entrevista, no dia 10/02/2002, no âmbito da presente investigação.
(3) A entrevista decorreu ao longo dos três últimos meses de 2001, no âmbito da presente investigação.
(4) A entrevista decorreu ao longo dos três últimos meses de 2001, no âmbito da presente investigação.


(continua)


Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados

M253 – RANGER António Barbosa do 4º Curso de 1972

António Barbosa

4º Curso de 1972



Guiné 1973 a 1974

Mais um RANGER se apresenta nesta galeria virtual, o António Barbosa que foi Alferes Miliciano no 1º Pelotão da 2.ª CART do BART 6523 (Companhia de Artilharia do Batalhão de Artilharia nº 6523).
Cumpriu a sua comissão militar na Guiné – em Cabuca -, nos anos de 1973 a 1974.
É natural de Santarém e enviou-nos algumas fotografias do seu álbum de memórias.


Miniguião do BART 6523

O grupo de combate do RANGER Barbosa

Uma Kalashnikov AK-47 capturada ao inimigo


quarta-feira, 1 de setembro de 2010

M252 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - XVII


ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M233, M234 a M244, M246, M248, M249 e M250. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M234, depois a M235… M236... M237… etc.

Manuel Godinho Rebocho2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)Bissalanca/Guiné
1972 a 1974


O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.

Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M233 a M244, M246, M248, M249 e M250:
III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES


(continuação)

3.2.1.2.1.10 – A Guerra Clássica
Com a chegada do período das chuvas tudo serenou e o ano de 1973 terminou calmo, iniciando-se o ano de 1974 em idênticas condições. No início de Fevereiro de 1974 os Guerrilheiros, partindo das suas bases no Senegal, concentraram os seus ataques no Nordeste da Província. O PAIGC passou a ter todas as facilidades de movimentos nas duas repúblicas vizinhas da Guiné e preferia atacar os Destacamentos perto da fronteira, fazendo-o, sobretudo, à custa de grandes bombardeamentos e evitando o confronto directo com as nossas tropas. Mas esta atitude, contrariamente ao que se tem dito, favorecia a actuação das forças portuguesas: as tropas especiais ou de elite deixaram de estar dispersas pela Província e passaram a permanecer nas suas unidades, disponíveis para acorrerem às situações de emergência; a Força Aérea já reiniciara os voos e os bombardeamentos às bases de fogos dos Guerrilheiros. Gadamael não se repetiria.
Importa, aqui, tecer uma consideração: se é um facto que os Oficiais de carreira passaram todo o tempo da Guerra de África a queixarem-se de não terem preparação para a guerra de guerrilha, o que parece ser uma realidade, quando a guerra «caminhou» no sentido clássico ou convencional, permaneceram com idêntica atitude. Afinal, o problema parece não residir na falta de formação técnica, mas, eventualmente, na falta de vocação e preparação psicológica.
Logo que a guerrilha iniciou os flagelamentos a Copá e Canquelifá, a CCP 123 partiu de avião, a 3 de Fevereiro, para Nova Lamego e, daqui, em viatura para Canquelifá, enquanto a CCP 121 se dirigiu ao mesmo destino, mas de barco. A localização da base de fogos da guerrilha foi detectada e para lá seguiu a CCP 123, mas os Guerrilheiros tinham vigias bem colocadas, detectando o movimento levantaram as bases, que foram depois instalar exclusivamente em território senegalês. As únicas tropas que o PAIGC respeitava e a cujo confronto efectivamente fugia, eram os Pára-Quedistas.
Também, e mais uma vez, há lugar a uma consideração crítica sustentada pelos factos que sucessivamente observei e venho relatando: o Estado-Maior só se apercebeu do bombardeamento a Copá e a Canquelifá quando as granadas começaram a cair. Não parecia haver lugar à previsão, não se antecipava a nada — os Guerrilheiros, analfabetos, «davam cartas» na organização.
Não conseguindo instalar as suas bases em território nacional, a guerrilha só podia atacar Copá, que fica a 3,5 km da fronteira com o Senegal, mas só com mísseis Katiuska consegue atingir Canquelifá que fica a 11 km do Senegal e a 16 da Guiné Conakry. Como medida de adequação doutrinária, o Comando Chefe determinou o recuo do sistema e ordenou o abandono de Copá.

Destacamento de Copá, em Fevereiro de 1974. A evacuação do Pelotão que aqui estava colocado e o consequente fecho do destacamento correspondeu a uma nova doutrina de Bettencourt Rodrigues, o novo Comandante-chefe, que ao recuar o sistema, limitou a agressividade da Guerra e a capacidade de actuação da guerrilha.
Fotografia de Martins Miranda
No relatório da operação, comandada pelo Tenente-Coronel Pára-Quedistas António João Chumbito dos Anjos Ruivinho, que aqui fizera o seu baptismo de comando operacional na Guiné, pois havia substituído Araújo e Sá, no Comando do BCP 12, no dia 21 de Janeiro, consta o seguinte: “no dia 11 de Fevereiro a CCP 123, comandada pelo Alferes miliciano Fernando Pires Saraiva, parte de Nova Lamego, às 4 horas e 30 minutos, escoltando as viaturas que iam efectuar o transporte dos bens do destacamento de Copá.
Prevendo a duração da operação de recolha, bem como dificuldades no trajecto, as viaturas transportavam rações para 4 dias e 2.000 litros de água. Pelas 15 horas e 30 minutos a coluna atingiu Copá sem incidentes”.
Em Copá, onde já se encontrava a CCP 121, tudo se processou ordeiramente. As duas CCP’s dormiram nos arredores, mantendo segurança ao destacamento e ficando as viaturas estacionadas a 500 metros do mesmo. No dia seguinte, 12 de Fevereiro, a CCP 121 partiu de Copá às 3 horas e 40 minutos com destino a Bajocunda, cujo itinerário foi patrulhando e onde chegou às 8 horas e 30 minutos. Pelas 10 horas e 45 minutos, após as viaturas terem sido carregadas e destruído o material que não foi possível transportar, deu-se início à deslocação para Bajocunda, com escolta da CCP 123, onde se chegou pelas 18 horas, sem incidentes. Assim, de forma controlada e sem quaisquer dificuldades ou incidentes, se abandonara um Destacamento que poderia nunca ter sido aberto.
Durante os dois meses seguintes, manteve-se, pelo menos, uma CCP nas proximidades de Canquelifá, por ser o Destacamento sobre o qual os Guerrilheiros prometiam mais acções, que nunca chegaram a executar.
O Tenente-Coronel Ruivinho provou “saber do seu ofício” e estar à altura dos acontecimentos; não obstante, foi humilhado e saneado a seguir ao 25 de Abril de 1974 por um grupo de Capitães Pára-Quedistas. Não se descrevem aqui os termos dessa humilhação, por se relacionarem com a sua vida pessoal e por considerar tal facto vergonhoso, para além de sem qualquer relevância para a minha obra.
3.2.1.2.1.11 – O Novo Capitão — Maximino Cardoso Chaves
Em 18 de Fevereiro de 1974 tomou posse de Comandante da CCP 123, o Capitão Maximino Cardoso Chaves, substituindo Sousa Bernardes que terminara a sua comissão. Ao apresentar-me, segundo as regras militares, ao novo Capitão e após ter dito o nome, este disse-me: “ah, tu é que és o Rebocho?”. Fiquei com a impressão de que dificilmente nos iríamos entender, pois pareceu-me que o «tom» em que proferiu o meu nome significava uma promessa de disputa, premonitória de uma possível reedição do Capitão Costa Cordeiro. A próxima operação iria demonstrar o que valia o Capitão, medindo forças e esclarecendo dúvidas. Este pretendia conquistar a Companhia disputando a liderança informal ao Rebocho, o que significava colocar a «aposta» muito alta constituindo um gravíssimo erro de comando: em vez de se apoiar em quem sabia e tinha já a liderança, passava ao ataque. A atitude deste Capitão não só lhe impossibilitaria a liderança informal da Companhia, como lhe poderia vir a causar uma queda demasiadamente aparatosa. Não foi preciso esperar muito, a próxima operação, provou-o depressa.
Este Capitão, que se veio a revelar o oposto do anterior, o que foi pernicioso para a sua aceitação, tinha um perfil teimoso, pouco solidário, sem iniciativa técnica, que configurava a impossibilidade de nos virmos a entender. Segundo o Major-General Rafael Ferreira Durão, durante a Guerra de África, “um bom Sargento Pára-Quedista engolia um Capitão médio” (em entrevista), só que este nem isso era e eu era mais do que aquilo. O Tenente-Coronel Pára-Quedista Joaquim Manuel Trigo Mira Mensurado, então Segundo Comandante do BCP 12, classifica o Capitão Chaves de “progressista e petulante” (Mensurado, 1993: 106).
No dia 2 de Abril de 1974 a Companhia seguiu de avião para Nova Lamego e desta cidade em coluna-auto, para Piche. Na manhã seguinte seguimos de viatura até à povoação de Dunane, ponto a partir do qual seguimos em patrulhamento apeado, sempre a Este da picada para Canquelifá, em direcção ao ponto onde se presumia ter sido instalada a base de mísseis que tinham flagelado este Destacamento do Exército, num percurso de cerca de 15 km.
Seguindo a rotina anterior e essa situação o novo Capitão assumiu-a, a minha Secção iria à frente. Ao surgir a primeira bolanha, a Companhia suspendeu a marcha para contactos com o comando da zona. Como medida de segurança, instalou-se uma linha de militares na orla da mata, necessariamente os meus, porque vinham à frente. Antes do recomeço da marcha, o Capitão chamou-me e disse-me: “nosso Sargento (o Capitão Chaves não sabia o nome dos Sargentos), mande três homens seus atravessar a bolanha para o outro lado”, ordem, a todos os títulos inconsequente e reveladora de imaturidade.
Não tive dúvidas que a nossa marcha estava a ser controlada pela guerrilha, já passáramos por várias povoações, pelo que os Guerrilheiros já tinham antevisto o nosso destino. Se não nos tinham ainda afrontado, era porque não tinha chegado o momento em que se considerassem em posição de vantagem, situação essa que o Capitão, com esta ordem, estava a criar.
Se apenas três homens atravessassem a bolanha, que teria sensivelmente uns 500 metros, era absolutamente previsível que os Guerrilheiros os esperassem do outro lado, onde meros três homens não teriam qualquer hipótese. Procurei fazer ver isso ao Capitão, expliquei-lhe mesmo como se atravessavam as bolanhas, mas este, não aceitou nada, interrompendo a conversa e dizendo-me: “nosso Sargento, como Comandante de Companhia, ordeno-lhe que cumpra as minhas ordens”.
Ia pela segunda e última vez, durante a minha comissão na Guiné, levar as minhas capacidades ao limite do necessário. Os militares que estavam em linha, na orla da mata, assistiam à breve discussão em pânico, com o compreensível receio que a escolha incidisse sobre si próprios. Estes homens presenciavam, como eu, pela primeira vez, um acto em que o Comandante da força militar se resguarda de todo e qualquer risco, não hesitando em expor a vida dos seus homens, que assim lhe não mereciam qualquer valor, para não pôr em causa a sua. A atitude era ainda mais grave, porque vários daqueles militares sempre viram Sousa Bernardes, que este Capitão viera substituir, seguir sempre na frente dos combates.
Dirigi-me, em voz alta, aos homens da minha Secção, que estavam todos na orla da mata e disse-lhes: “dois voluntários para atravessarem a bolanha comigo”. Era o mínimo que eu podia fazer, se tinha que haver alguém a expor-se ao «sacrifício», era eu. Mas os «meus» rapazes também estiveram à altura: todos levantaram o braço, oferecendo-se. O Capitão seria, em gíria militar, «engolido» por um elemento de patente inferior e mesmo pelos Praças, revelando a sua total incapacidade. Escolhi dois dos homens que usavam metralhadoras, porque as armas que disparam granadas não poderiam ser utilizadas no tipo de combate que eu previa ir ser travado.
Montei uma pequena bateria de fogos constituída por morteiros, RPG’s 2 e 7 e Sneb’s, apontei uma mancha arbustiva do lado oposto da bolanha e disse aos meus camaradas: “nós vamos seguir na direcção daquela mancha arbustiva o que constitui um «convite» aos Guerrilheiros para nos emboscarem ali, mas quando estivermos a cerca de 50 metros, guinamos à esquerda e fazemos um semicírculo em volta dos arbustos. Os Guerrilheiros serão tentados a abrir fogo; nesse momento vocês disparam todos contra os arbustos”.
Chamei outro homem, a quem instrui para ficar em escuta rádio, dizendo ainda aos meus camaradas da bateria de fogos que só deviam cumprir as ordens que eu lhe desse, via rádio.
Em poucos minutos, no sistema de «passa palavra» todos os homens passaram a saber que a Companhia estava à deriva, e que a norma seria, quando chegassem os combates, cada um safasse-se por onde pudesse, que no Capitão ninguém confiava. Para Gaston Courtois, “um grupo medíocre pode tomar alento e ultrapassar-se ao sopro de um chefe de valor (mas) um grupo excelente pode estiolar e desfazer-se na esteira de um chefe medíocre cujas atitudes amolecem as boas vontades e matam o entusiasmo” (Courtois, 1968: 13). Idêntica interpretação é considerada num «ditado antigo» que nos diz: “para ganhar uma batalha, é melhor um exército de burros comandado por um leão do que um exército de leões comandado por um burro” (Canha, 1999: 2) (1).
O Capitão assistiu à montagem desta bateria de fogos e às instruções que dei aos militares, menos à de não cumprirem as suas ordens, visto tê-lo dito em voz baixa, mas não fez qualquer outra intervenção. Ficara petrificado quando percebeu que era eu um dos homens que atravessariam a bolanha. Passou-se a bolanha, sem incidentes. O semicírculo à volta dos arbustos inibiu os Guerrilheiros de abrirem fogo por eventualmente terem percebido que a manobra técnica estava preparada.
Quando, perto da noite, atingimos a bolanha seguinte, o Capitão chamou-me e disse-me: “Rebocho, atravesse a bolanha como quiser”. Pela primeira vez, desde que nos conhecíamos, o Capitão me tratava pelo meu nome, visto até àquele momento, ter-me tratado sempre por “nosso Sargento”, como de resto, tratava todos os outros. O comportamento deste Capitão relativamente aos Sargentos era de extrema distância, até que, com aquele incidente se acabou a arrogância.
A partir daquele dia, nunca mais o Capitão deu qualquer ordem sem que ouvisse primeiro os Sargentos, o que se tornou até excessivo.
Contudo, não se infira que fui eu quem descobriu a melhor técnica para atravessar as bolanhas, que se constituíam enquanto pontos extremamente críticos.
Quando cheguei à Guiné já se passavam estes obstáculos como eu o pretendi fazer e o fiz depois, havendo, caso a caso, alguns ajustamentos a realizar face a determinadas particularidades do terreno ou à proximidade prevista do inimigo e à criatividade de quem comandava a força. A única diferença é eu ter aprendido com os mais velhos. Era evidente, menos para o Capitão, que a experiência tinha muita importância, era fundamental que aprendêssemos uns com os outros. Havia, no entanto, e a prova estava à vista, quem pensasse que na Academia Militar se aprendia tudo o que era necessário para fazer a Guerra, o que não se coadunava com a realidade.
A formação orgânica das Tropas Pára-Quedistas em combate se, por um lado, obedecia à lei, por outro não era concordante nem com a doutrina nem com as características da Guerra, o que motivava, na maior parte dos casos, que a contribuição dos Oficiais em combate constituísse, muitas vezes, uma utilidade marginal nula e a sua presença na mata fosse indiferente para o desempenho das tropas e para o resultado final. No entanto, reprimiam os seus subordinados obrigando à criação de uma segunda cadeia de comando, que acabava por os enfrentar, o que não sendo curial, se configurava como a única alternativa para a obtenção da eficácia pretendida.
Abro aqui um parêntese, visto o parágrafo anterior ter podido suscitar uma dúvida: se a contribuição dos Oficiais em combate constituía uma utilidade marginal nula, por estarem sempre muito longe dos combates, então o que é que distinguia Sousa Bernardes? O facto de este estar sempre na frente de combate: era precisamente isto que o distinguia dos demais. E era por essa razão que ele integrava a hierarquia dos valores ou da liderança e era respeitado enquanto homem e enquanto líder, não carecendo da posição orgânica para se fazer respeitar, mas legitimando essa posição (2).
Fischer ajuda-nos a compreender esta e outras situações equivalentes, quando afirma: “Existem também dois tipos de autoridade distintos: aquela que, sendo derivada da categoria ou da posição hierárquica é, em princípio, imposta; e aquela que, sendo proveniente da posição do líder é, em princípio, aceite. A eficácia de uma autoridade existirá quando se verificar a conjugação destes dois níveis” (Fischer, 1994: 93 e 94). Com o auxílio de Fischer percebeu-se a situação e dissiparam-se as dúvidas.
Para Mira Vaz “Oficiais e Sargentos bem treinados, com experiência de combate, com um comportamento exemplar face ao perigo e capazes de se preocuparem tanto com o cumprimento da missão como com a integridade e o bem-estar físico e moral do grupo que comandam, transmitem aos subordinados uma sensação acrescida de segurança” (Vaz, 2000: 45). Assumo e concordo com a posição de Mira Vaz, cujo conhecimento lhe vem da experiência. Mira Vaz concorda com Fischer, embora explicando a situação pelo lado oposto. 


Um grupo de Pára-Quedistas, tomando uma refeição em Canquelifá, no mês de Abril de 1974.
Fotografia de Martins Miranda
Chegámos no dia seguinte, 4 de Abril, a Canquelifá. A área que nos foi reservada para defendermos estava virada ao ponto de onde vinham as flagelações, ficando ainda decidido, pelo Comandante da zona, que um dos nossos Pelotões estaria permanentemente em patrulha na área de onde se esperavam os ataques. Era uma ideia correcta e, desta forma, não haveria ataques a Canquelifá, mas as exigências físicas eram grandes. O Capitão não sabia que atitude tomar nesta situação e parecendo recear nova crítica ao seu comportamento, chamou os graduados e perguntou-nos quantas vezes deveria ele ir para o mato: se saísse com todos os Pelotões estaria permanentemente no mato, o que era impossível, se não saísse nunca, todos o criticariam.
Nenhum graduado lhe deu qualquer sugestão, pelo que entendi manifestar a minha opinião, muito simples e sempre a mesma: “o Capitão deve ir para o mato tantas vezes quanto os outros homens, para se aperceber das dificuldades porque passamos, para corrigir o que for possível e colocar superiormente o que for necessário, devendo ser de sua escolha os Pelotões que deve acompanhar”. Ninguém manifestou outra ideia, pelo que ficou assim decidido e assim foi executado. O Capitão Chaves acabava de aprender que na Guerra manda quem é capaz de a fazer e que são este tipo de homens que se tornam líderes, sendo sempre muito mais fácil apoiar-se neles do que combatê-los.
No dia 14 de Abril, pelas 6 horas e 30 minutos, a Companhia partiu de Canquelifá, onde foi rendida pela CCP 122, chegando a Nova Lamego nesse mesmo dia, pelas 18 horas. Durante os doze dias que durou a operação, a CCP 123 não teve qualquer acção de fogo, nem o Destacamento de Canquelifá nem nenhum outro da zona sofreu qualquer ataque. A Companhia que nos rendeu também não teve nenhuma acção de fogo, embora tivesse um morto, o 1.º Cabo Pára-Quedista João Manuel Aleixo Pinto, por acção duma mina de grande potência, pelas 7 horas e 45 minutos, do dia 19 de Abril, constituindo o último boina-verde a tombar na Guiné, ao serviço da Pátria, devido a uma acção militar.
Neste breve percurso em torno da CCP 123, procurei demonstrar com a maior exactidão e com autenticidade empírica, através de factos por mim vividos, a formação dos homens que integravam as unidades executantes da Guerra, particularmente através dos problemas de liderança e de comando das tropas.
A situação que se viveu nesta Companhia parece ter-se repetido em todas as outras: havia sempre um Sargento que liderava o grupo verdadeiramente executante. O maior ou menor conflito dependeu sempre das personalidades do Capitão e do Sargento que liderava cada operação ou grupo, sendo certo que a intensidade da Guerra também condicionou o relacionamento dos dois homens que ocupavam essas posições.
Compreende-se que nos momentos em que a guerra fosse pouco intensa, o Capitão podia prescindir do apoio dos Sargentos, bastando o seu poder coercivo para que as ordens fossem sendo mais ou menos executadas. No outro extremo, quando os combates fossem mais duros, e foi disso que sofreu a CCP 123, o Capitão não podia prescindir do apoio dos Sargentos e, particularmente, de quem liderasse efectivamente o grupo envolvido.
Esta liderança assumia ainda maior relevância porque os Soldados sempre apoiaram os Sargentos, o que se fundamentava na própria lógica do funcionamento da Instituição Militar. Os Oficiais posicionavam-se à distância, sempre o fizeram, enquanto os Sargentos tinham a sua origem em Soldado. As classes de Sargentos e de Praças eram assim, duas entidades próximas, enquanto a classe de Oficiais constituía uma entidade algo distante, ficando naturalmente isolada em momentos difíceis.
As dificuldades que foram sentidas no primeiro semestre de 1973 deveram-se a uma situação de circunstância, o aparecimento do míssil Strella, e a uma situação estrutural, a ausência de comando, devida, sobretudo, à escassez de Oficiais da Escola Militar nas zonas de combates mais profundos. Esta situação demonstra, inequivocamente, que Portugal conduziu mal o recrutamento das elites militares e que a formação doutrinária e psicológica que lhes foi ministrada resultou mais na constituição de um espírito de corpo, do que num espírito militar e nacional.
A Academia Militar produziu assim, um Corpo de Oficiais, mais dotado para a gestão e administração do Exército, do que para o comando de tropas operacionais (3).
O que se pode afirmar sobre os Oficiais que comandaram a CCP 123, é que todos eles possuíam conhecimentos técnicos suficientes para comandarem a Companhia. Tanto mais que os conhecimentos requeridos eram absolutamente primários. Os desconhecimentos iniciais iam-se corrigindo e aperfeiçoando com o tempo, o que confere um elevado índice valorativo à componente experiência. Mas, seguramente, a qualidade do desempenho não foi minimamente condicionada pela formação técnico-táctica, foi-o pouco pela experiência, tendo-o sobretudo sido pelas características pessoais dos combatentes.
Numa guerra de guerrilha, em que a surpresa é uma constante e a novidade está sempre a surgir, a capacidade do Comandante da força expressa-se sempre pelo desembaraço, criatividade, disponibilidade para exposição ao risco, capacidade de liderança e serenidade, para que possa articular todas as outras características. Só se obterá um corpo de elites militares com estas valências caso se siga um método de selecção rigoroso.
As elites hierárquicas que intervieram activamente na condução da Guerra tinham testado a sua vocação militar antes de ingressarem na EM. Sublinhe-se o que já demonstrei atrás, que após 1936, se tornou obrigatório a frequência do 1.º Ciclo do COM para o ingresso na EM e que a reforma de 1938 introduziu uma pequena alteração, permitindo que o candidato frequentasse o ciclo de Instrução da Companhia de Cadetes da Escola. Ambos os percursos iniciais tinham o mesmo objectivo: testar o candidato quanto à sua “vocação para o serviço militar”, eliminando-se quem não satisfizesse os requisitos vocacionais. Ora, este princípio foi afastado a partir da reforma de 1959, com a implantação da Academia Militar. Os débeis critérios de selectividade, senão mesmo a sua total ausência, permitiram que ingressassem nas fileiras do oficialato quem não tinha o mínimo de vocação ou de características para a vida militar, isto, já não falando para a guerra.
Quando estes homens começaram a surgir nas frentes de combate, com as patentes de Capitão, intensificaram-se as transferências do comando de tropas operacionais, para funções de administração (4). Só que tudo se agravou: não só se transferiram os que não tinham aptidão, como se tornou difícil justificar a presença daqueles que a detinham.
Com o prolongamento da Guerra e por causa do princípio anteriormente exposto, os Oficiais de carreira foram-se avolumando no “conforto das cidades” (Melo, 1988: 25) (5). Os seus lugares ao comando das Companhias de combate passaram a ser preenchidos por milicianos, que aprenderam com os seus camaradas de carreira e iniciaram reivindicações a que se julgavam com direito. O mínimo que se poderá dizer, nestas situações, é que estará sempre vencido o exército cujos Oficiais de carreira fujam das zonas de combate, onde deixam à sua sorte Milicianos e Soldados. Pelo mesmo motivo, o próprio Spínola perdeu a capacidade de comando: não foi capaz de colocar Oficiais em tempo oportuno, nem no sector de Guidaje nem no de Cacine, como claramente provei quando me referi aos violentos combates que se registaram nestas zonas, nos meados de 1973.
Neste sentido e porque os Oficiais formados nos anos 60 fugiram dos locais de combate, o Exército desmoronou-se; a cadeia de comando partiu-se; o Exército deixou-se vencer; a Academia Militar falhou na selecção e formação psicológica das futuras elites militares que, sem solução à vista e vendo-se ameaçadas pelos milicianos, que mais não eram do que as suas muletas, correram à procura da “democracia salvadora”, para a qual ainda tinham menos vocação do que para a vida militar.
Um total equívoco é a classificação que posso atribuir, tendo por base o que venho explicitando, à formação base ministrada na Academia Militar aos futuros Oficiais combatentes, os quais, por esse motivo, o não foram na realidade.

NOTAS do texto:
(1) O documento citado constitui o resumo de um trabalho de Donald Krause, segundo a própria afirma no texto.
(2) A posição dos Comandantes de Companhia nas colunas era um assunto tão falado e tão importante, que se afirmava no interior das Tropas Pára-Quedistas que apenas 6 Capitães destas Tropas ocupavam posições na frente. E adiantava-se mesmo a seguinte afirmação: O Capitão Valente dos Santos era sempre o 5.º homem da coluna, o Capitão Sousa Bernardes era sempre o 7.º e o Capitão Almeida Martins era sempre o 10.º. Os outros 3 Capitães não foram meus contemporâneos na Guerra de África, pelo que já não possuo elementos bastantes.
(3) Esta afirmação pode ser confirmada pala conjugação dos elementos contidos na Lista de Antiguidade dos Oficiais do Exército, referente a 1 de Janeiro de 1974, onde se constata que 51,7 % dos Capitães e Subalternos, das Armas Combatentes estavam “adidos”, ou seja, fora da estrutura do Exército, com os elementos contidos no livro do EME (2002), onde se demonstra que dos 160 Capitães que comandaram as 102 Companhias que estavam em sector, na Guiné, em Janeiro de 1974, apenas 19 eram oriundos da Academia Militar, sendo os restantes milicianos. Consultei, igualmente, os documentos que hão-de constituir os livros, correspondentes a este, para Angola e Moçambique, os quais ainda não estão editados, onde se pode obter idêntica conclusão.
(4) Como se comprova na documentação citada na nota anterior.
(5) O termo “conforto” e com o mesmo sentido, foi também utilizado por (Almeida, 1978: 54)

(continua)


Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados