sexta-feira, 3 de setembro de 2010

M254 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - XVIII



ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M234 a M244, M246, M248, M249, M250 e M252. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M234, depois a M235… M236... M237… etc.

Manuel Godinho Rebocho
2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)
Bissalanca/Guiné1972 a 1974
O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.


Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M234 a M244, M246, M248, M249, M250 e M252:
III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES
(continuação)


3.2.2 – Tropas Nativas
A partir de 1970 a organização da Guerra de África, nos três teatros de operações, evoluiu substancialmente: foi determinada a formação de 160 Capitães milicianos por ano, com base em instruendos do COM e incentivou-se a “africanização” com a criação de tropas de elite nativas.
Estas tropas, algumas de muito valor, eram comandadas por nativos graduados em Oficial, Oficiais milicianos e Sargentos graduados em Oficial. A descrição, ligeira e muito suave, revela a existência de duas realidades:
Os Oficiais de carreira estavam abandonando total e completamente as zonas e as funções de guerra (1);
Os nativos, os Oficiais milicianos e os Sargentos revelavam, na sua maioria, possuir formação técnico-táctica suficiente para o desempenho das funções de Comandantes de Pelotões e de Companhias de Tropas de Elite Nativas. Se eram capazes de comandar, porque comandaram tropas nativas, muito melhor, porque muito mais fácil, teriam comandado tropas de reforço, isto é, tropas idas da Metrópole.
Esta verificação, incontornável, demonstra o quanto, em meu entender, a formação das elites militares que executaram a Guerra, esteve errada. Privilegiou-se a componente literária, que não tinha no combate qualquer relevância, e desprezou-se a componente dos valores e das capacidades que eram, aí, determinantes. Em suma, a fractura na formação, que teria este resultado, deu-se em 1959, quando foi anulada a componente «motivação» para ingresso na EM.
– Comandos Africanos — Guiné
Os Comandos Africanos dos quais se formaram três Companhias constituíram a melhor tropa nativa que actuou na Guiné. Passo a descrever e a avalizar cada uma delas:
Primeira Companhia de Comandos Africanos
Esta Companhia foi organizada a partir de 9 de Julho de 1969, exclusivamente com pessoal da Guiné e formada com base em anteriores Grupos de Comandos existentes junto dos Batalhões, tendo iniciado a sua instrução em 6 de Fevereiro de 1970. Foi-lhe fixada sede em Fá Mandinga, com a missão de intervenção e reserva do Comando Chefe. Desempenhou funções de reforço em vários sectores, tendo tomado parte em operações nos mais variados pontos da Província. As missões que desempenhou foram de complexidade e perigosidade idêntica às missões desempenhadas pelos Pára-Quedistas, junto dos quais operou e efectuou bons desempenhos (EME, B, VII Vol., Tomo II, 1988: 648 e 649).
A Primeira Companhia de Comandos foi sucessivamente comandada pelos seguintes nativos graduados:
Capitão graduado Comando (Cmd) João Bacar Jaló, que anteriormente era milícia no Ilhéu de Infanda (2).
Tenente graduado Cmd Abdulai Queta Jamanca
Tenente graduado Cmd Cicri Marques Vieira
Capitão graduado Cmd Zacarias Saiegh


b) Segunda Companhia de Comandos Africanos
A Segunda Companhia de Comandos Africanos foi organizada e instruída em Fá Mandinga, a partir de 15 de Abril de 1971, exclusivamente com pessoal africano natural da Guiné e foi formada com base em anteriores grupos de Comandos existentes junto dos Batalhões e com graduados vindos da Companhia anterior.
A actividade operacional desenvolvida por esta Companhia era em tudo semelhante à da Companhia anterior. Comandaram esta Companhia, os seguintes cidadãos nativos:
Tenente graduado Cmd Mamadu Saliu Bari
Tenente graduado Cmd Adriano Sisseco


Tenente graduado Cmd Armando Carolino Barbosa (EME, B, VII Vol. Tomo II, 1988: 650 e 651).
c) Terceira Companhia de Comandos Africanos
A Terceira Companhia de Comandos Africanos foi organizada e instruída em Fá Mandinga, a partir de 14 de Abril de 1972, sendo constituída exclusivamente com pessoal africano natural da Guiné, recrutado nas subunidades africanas da organização territorial e das subunidades de milícias e com graduados vindos das anteriores Companhias.
A sua actividade operacional foi em tudo idêntica à das outras Companhias de Comandos Africanos. Os seus Comandantes foram sucessivamente, os seguintes cidadãos nativos:
Alferes graduado Cmd António Jalibá Gomes
Tenente graduado Cmd Bacar Djassi
Alferes graduado Cmd Aliú Fada Candé
Alferes graduado Cmd Malan Balde (EME, B, VII Vol., Tomo II, 1988: 652).
Como se vê, todos os homens que comandaram estas Companhias e, consequentemente, os que comandaram os Pelotões e as Secções, eram nativos sem qualquer formação literária ou académica, e todos eles tiveram desempenhos de elevada qualidade. Os Comandos Africanos constituíram assim, uma inequívoca demonstração, de que o valor combativo do militar operacional reside nas suas capacidades pessoais, na experiência, que melhora continuamente o desempenho e menos na formação técnico-táctica.
O conceito de experiência fica bem demonstrado quando verificamos que os graduados da Segunda Companhia vieram da Primeira, já com experiência, e os graduados da Terceira Companhia vieram das outras duas, igualmente já com experiência anterior. O Comando-Chefe não arriscou lançar uma Companhia com graduados novos, muito embora todos os homens já tivessem experiência de combate, o que demonstra a preocupação que constituía esta componente de formação.
– Grupos Especiais - Moçambique
O estudo sobre os GE utiliza como exemplo representativo de todos eles, os grupos que existiram no Distrito de Niassa, em Moçambique, uma vez que estas tropas seguiam todas o mesmo sistema de recrutamento, de formação, de organização e de funcionamento. A escolha deste Distrito não foi aleatória, ficando a dever-se à possibilidade única de recolha de informação, uma vez que residem em Beja dois antigos Oficiais milicianos ligados a estes grupos, que se disponibilizaram a ceder-me a informação de que dispunham.
A recolha da informação foi efectuada através de entrevista (3), ao longo de várias sessões, com Salvador Leonardo Grilo da Silva, um jovem natural do concelho de Portel, no Distrito de Évora, que em 1966, com 22 anos, e possuindo como habilitações literárias o então 7.º ano dos liceus, assentou praça em Mafra, na EPI, no COM. Terminado o curso e promovido a Aspirante foi colocado em Chaves, onde cumpriu o seu serviço militar normal, tendo passado à disponibilidade no dia 1 de Abril de 1969.
Em Julho de 1972, o cidadão Salvador, então com 28 anos, casado, com vida constituída e dois filhos, foi notificado para reintegrar o Exército, o que aconteceu em Outubro desse ano. Ingressou de imediato no Curso Para Capitão, com a duração de quatro meses, na EPI, para o que fora promovido a Tenente. Neste curso, segundo me conta, com algumas graças a propósito, teve como monitores Tenentes de carreira que nunca tinham ido a África e por colegas de curso vários Tenentes milicianos, com graus académicos elevados (havia quem tivesse doutoramento), que confrontavam os Tenentes de carreira com a ingenuidade de algumas das ideias e acções que lhes queriam transmitir.
Terminado o curso, Salvador Silva foi mobilizado em Junho de 1973 para Moçambique, tendo sido colocado em Vila Cabral, capital do Distrito de Niassa, como Comandante Regional dos GE. A função integrava-se no Estado-Maior do Sector, com a denominação de «Chefe de Secção de Aldeamentos e GE», cujas funções consistiam na gerência e controle da autodefesa dos aldeamentos, com o apoio logístico das Companhias de quadrícula que estavam colocadas junto a esses aldeamentos.
Para o desempenho dessas funções, o então já Capitão Salvador tinha competências disciplinares equivalentes a Tenente-Coronel, Comandante de Batalhão, mas com vencimento e honras militares de Capitão “trabalho sim, direitos não” como fez questão de vincar. Para trabalhar com tropas nativas, mesmo que especiais, era posição a que Oficial de carreira não descia. O comando era de Tenente-Coronel, mas como exigia frequentes deslocações ao mato atribuiu-se a um Capitão miliciano.
Os GE existentes no Distrito de Niassa, em número de sete, eram grupos de combate, de recrutamento voluntário na população nativa e, em alguns casos, integrados pela «recuperação» de dissidentes ou antigos Guerrilheiros que, tendo sido feitos prisioneiros, se haviam «reconvertido».
Os grupos assim constituídos eram enquadrados por Oficiais e Sargentos milicianos do recrutamento normal, que eram voluntários para aquelas funções ou seja, por Oficiais e Sargentos milicianos, em Serviço em Moçambique, que se ofereciam para funções de Comando nos GE. Embora o comando destes grupos fosse geralmente exercido por milicianos do recrutamento normal, situações houve, em que foram graduados e, por isso, exerceram funções de comando, membros do próprio grupo. As graduações eram concedidas aos homens que se distinguiam na sua actividade militar e cívica ou seja, àqueles que tinham revelado liderança no grupo. A função de comando conferia-lhe, adicionalmente, não só uma posição social acrescida, como um considerável aumento salarial, o que proporcionava um incentivo a todos os Soldados no sentido da sua aplicação operacional — objectivo último e único da sua existência.
As informações sobre o GE n.º 101, aquartelado em Nova Coimbra, um dos sete formados e existentes no Distrito de Niassa, foram-me prestadas, em entrevista (4), por Narciso António Pires Gaitinha, então Alferes miliciano de Operações Especiais, o qual Comandava o grupo em 25 de Abril de 1974, pelo que foi o seu último Comandante. Gaitinha de proveniência social na classe média baixa, iniciou a sua actividade militar no Curso de Sargentos Milicianos, no fim do qual foi «repescado» para o COM. Formou Batalhão em Chaves, com destino a Moçambique, sendo-lhe atribuídas as funções de Adjunto do Comandante da 2.ª Companhia de Caçadores.
Em Moçambique já como Alferes miliciano ofereceu-se para os GE e, em Abril de 1973 foi-lhe atribuído o Comando do grupo n.º 101. O meu entrevistado faz questão de notar que, quando chegou ao grupo, este era comandado por um Furriel miliciano em fim de comissão, Manuel Almeida, actualmente a viver na cidade do Porto, a partir de onde, via telefone, apoiou a entrevista, sobre factos de que Pires Gaitinha já não se recordava na perfeição. Manuel Almeida esclareceu, que a sua presença ao Comando do grupo se ficou a dever a ferimentos em combate do Comandante do mesmo, um cidadão natural da Província, graduado em Sargento Ajudante, de nome Biguane, então com 56 anos.
A constatação inevitável e que me acompanha desde o início do capítulo, é a de que também estas tropas viveram numa situação em que os Comandos tinham patentes hierárquicas substancialmente inferiores à formação normal de tropas com funções desta natureza. Estamos perante grupos de tropas especiais comandados por Oficiais milicianos, Furriéis milicianos e Praças graduadas e, todos eles, com pouca formação e sem experiência, tanto de comando como de combate, pelo menos no início. O que me é dado conhecer com estes grupos, adiciona-se ao conhecimento entretanto já acumulado, segundo o qual as capacidades destes homens para a função de comando de unidades de combate se deviam às suas características psicofisiológicas, com um pouco de formação e sempre aperfeiçoadas com a experiência, que iam adquirindo com o tempo, pois, como me foi dado saber, o comando não era entregue a estes homens sem que antes participassem em algumas operações sob o comando de militares mais antigos, digamos que havia uma sobreposição que permitia uma ambientação e treino antes de exercerem o comando efectivo.
Organicamente, o Grupo era formado por 63 homens, de idades compreendidas entre os 18 e os 35 anos, divididos em 3 Secções de combate comandadas por um Furriel miliciano ou Furriel graduado e em cada Secção havia 4 equipas de combate constituídas por 5 homens, um deles, graduado em Cabo. Tal como os rádios de transmissões, o armamento destes grupos era igual ao do Exército. Além dos 63 homens, formavam ainda o Grupo o respectivo Comandante e um Furriel miliciano com funções administrativas.
O número de graduados do Grupo foi variando em função do tempo de comissão de cada um. No início de 1974 as Secções de combate eram comandadas por Cabos graduados em Furriéis, naturais da região, de nomes Estivine, Evaristo e Botomane, os quais viviam no aquartelamento do Grupo com as suas famílias.
As operações eram executadas segundo as ordens de operações recebidas do Comando de GE estacionado em Vila Cabral, realizando-se mensalmente duas ou três operações, dependendo da sua duração, a qual se situava sempre entre 4 e 8 dias. Em regra, todas as operações eram realizadas ao nível de Secção de combate, saindo para o mato entre 35 a 45 homens (duas Secções de combate); os restantes ficavam a descansar e a cuidar da segurança do aquartelamento.
O Comando das operações estava a cargo do Alferes ou de um dos Furriéis designado pontualmente, pois não se considerava qualquer grau de hierarquia entre eles.
O Comando das operações, como me foi descrito pelo meu entrevistado, merece uma cuidada e objectiva referência; como fica inequivocamente demonstrado, havia operações executadas por estas tropas especiais comandadas por homens que tinham por formação base apenas a que tinham recebido numa Escola de Cabos, pois os Furriéis, como já referi, eram Cabos graduados.
A acrescer a esta situação, de que não nos podemos alhear, o grupo actuava numa zona de conflito aceso.
Não se pode sustentar as capacidades operacionais ou de combate destes Cabos graduados na sua formação técnica, porque a não a possuíam. A menos que queiramos inverter tudo o que até hoje se disse, ou seja, que as tropas de quadrícula tinham uma preparação técnica muito baixa. É que estes Cabos nem sequer eram originários de tropas especiais que pudessem ter uma melhor formação, sendo originários de tropas normais.
Não tenho dúvidas de que os referidos Cabos graduados eram líderes no seu meio, por isso se ofereceram e por isso foram escolhidos e graduados. Estes exemplos revelam-nos, inequivocamente, que as capacidades de combate não têm a sua proveniência na formação técnico-táctica, embora esta formação as melhor e a proveniência destas capacidades está essencialmente nas características psicofisiológicas do homem, neste caso combatente.
A verificação da prevalência do valor humano face à formação técnica, que já conhecia, revela de forma inequívoca que, se por um lado os Altos Comandos Militares portugueses conduziram bem a Guerra, do ponto de vista estratégico, falharam de forma impressionante e primária ou grosseira, na gestão e formação do pessoal, que constituiu a base do Exército durante a Guerra de África e é o nosso único meio para o futuro.
3.2.2.3 – Grupos Especiais Pára-Quedistas - Moçambique As informações sobre os GEP foram-me proporcionadas pelo Capitão Pára-Quedista, oriundo de Sargento, Joaquim Pereira, que com o posto de Tenente foi Segundo Comandante dos GEP; pelo Tenente-Coronel, oriundo de Sargento, António Gomes de Almeida, e pelo Sr. Fernando dos Santos Martins, os quais, como Segundos Sargentos Pára-Quedistas integraram o comando dos GEP.
O que se pode concluir e resumir, das três longas entrevistas, é que os GEP mais não foram do que uma variante dos GE. Quer isto dizer, que a um GE já constituído ou a constituir, foi-lhe ministrado um curso de Pára-Quedismo, transformando-se então em GEP.
Estes grupos nunca iniciaram qualquer operação através de lançamento em Pára-quedas. A sua utilização operacional seguiu muito de perto a praticada pelos Pára-Quedistas metropolitanos, com os quais rodavam em Destacamentos do Exército. A colocação de helicóptero foi frequentemente a forma utilizada, no que seguiam a metodologia dos Pára-Quedistas metropolitanos.
A sua formação orgânica e hierárquica era muito semelhante aos GE, com os postos da hierarquia ocupados pelas mais diversas graduações: Oficiais milicianos, Sargentos do quadro ou milicianos e Cabos Pára-Quedistas, todos graduados nas patentes convenientes, as quais vêm reforçar e de certo modo provar que o recrutamento seguido em Portugal para os postos operacionais do oficialato se traduziu num gravíssimo “erro” do poder político e militar de então.


NOTAS do texto:


(1) Como se prova na documentação citada na nota 160 da página 402.


(2) Segundo o Major-General Canha da Silva, que o conheceu, quando comandou a Companhia de Cufar, em entrevista, no dia 10/02/2002, no âmbito da presente investigação.
(3) A entrevista decorreu ao longo dos três últimos meses de 2001, no âmbito da presente investigação.
(4) A entrevista decorreu ao longo dos três últimos meses de 2001, no âmbito da presente investigação.


(continua)


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