domingo, 5 de setembro de 2010

M257 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - XIX

ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M233 a M244, M246, M248, M249, M250, M252 e M253. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M234, depois a M235… M236... M237… etc.

Manuel Godinho Rebocho
2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)
Bissalanca/Guiné
1972 a 1974

O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.

Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M233 a M244, M246, M248, M249, M250, M252 e M253:

III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES
(continuação)
3.3 – A Milicianização da Guerra

Da conjugação dos elementos constantes no livro do Estado-Maior do Exército (EME, 2002), com os elementos constantes nos processos sobre as histórias das unidades que estiveram em África, existentes no AHM, pode concluir-se que das 102 Companhias de Quadrícula, que estavam em Sector na Guiné, em Janeiro de 1974, apenas 11 tiveram algum comando de Oficiais oriundos da Academia Militar, mas só durante 9 meses, em média. Durante o restante tempo, em que permaneceram em sector, tanto estas Companhias como todas as outras, foram comandadas por Oficiais milicianos.
Todavia, e não obstante esta factualidade, neste mesmo período existiam nas patentes de combate (Capitães, Tenentes e Alferes), 880 Oficiais das Armas Combatentes (Infantaria, Artilharia e Cavalaria) originários da Academia Militar, entre os quais 759 Capitães.
Temos assim, que o Exército se milicianizou em toda a sua estrutura de combate (1) com todas as consequências que uma tal derivação doutrinária teria forçosamente que provocar.
Obtida esta verificação procurei apreciar o desempenho de algumas Companhias, cujo comando foi exercido por Oficiais milicianos, que estiveram estacionadas no sul da Guiné, mantendo assim semelhanças ambientais com as outras unidades de quadrícula e especiais já estudadas. Com este objectivo recorri à consulta dos respectivos processos históricos e à entrevista de Oficiais milicianos envolvidos. Quando as circunstâncias o permitiram e fui para tal convidado, compareci nas comemorações que estas unidades realizam, por norma anualmente. Foi o caso da Companhia de Cavalaria n.º 8350/72, mobilizada no Regimento de Cavalaria n.º 3 em Estremoz, a qual ficou para a história militar como a unidade que personalizou o abandono de Guileje e o drama de Gadamael, no extremo sul da Guiné, nos meses de Maio e Junho de 1973.

Das longas horas de gravação rádio que efectuei (2) com diversos elementos desta unidade, particularmente com o seu Comandante (3), conjugadas com o meu próprio conhecimento dos factos, dos procedimentos e das situações foi possível descrever o desempenho desta “unidade de milicianos” nos seguintes termos.
3.3.1 – A Companhia de Cavalaria 8350/72
A Companhia chegou à Guiné no dia 25 de Outubro de 1972, tendo assumido responsabilidades no subsector de Guileje, no dia 22 de Novembro do mesmo ano, cuja acção foi orientada para a abertura do itinerário Guileje-Mejo e para a interdição da zona de fronteira. Porém, e segundo o então Comandante desta Companhia, só após a criação do Comando Operacional n.º 5, em 22 de Janeiro de 1973, se deram início às operações de abertura do itinerário Guileje-Mejo, o que em boa verdade não se compreende. Mejo era um antigo Destacamento abandonado havia muitos anos, o itinerário estava minado e não se previa qualquer circulação das nossas tropas por esse itinerário.
O Comandante da Companhia 8350, Capitão miliciano de Artilharia, estabeleceu e estruturou, com o apoio do Alferes miliciano que comandava o Pelotão de Artilharia, um sistema de apoio às tropas, que patrulhavam a zona de fronteira, de extrema eficácia. Este sistema consistia no bombardeamento antecipado dos itinerários que as suas tropas iriam percorrer, o que permitia, segundo os vários graduados que entrevistei, uma segurança e tranquilidade muito acentuada. Sobre este assunto escreveu o Furriel miliciano de Operações Especiais, José Casimiro Pereira de Carvalho, em carta (4) dirigida a sua mãe e datada de 17-02-73: “Saímos às seis da manhã e chegámos às 14, estivemos quase na República da Guiné. Antes de ali chegarmos fomos protegidos com 20 tiros de Peças de Artilharia 11,4 cm. Cada granada pesa 25 kg”.
A grande precisão e eficácia dos bombardeamentos da nossa Artilharia, a cargo e à responsabilidade de um Alferes miliciano, impedia qualquer veleidade do inimigo em se aproximar ou atacar, com alguma eficácia, o Aquartelamento de Guileje. Houve mesmo homens desta Companhia que me afirmaram que a vida no Destacamento era passada com alguma tranquilidade. Em carta de 21-03-73, para a mãe, afirmava o Furriel Carvalho: “mando-lhe uma foto, de quando eu vinha de dar uma volta com a pressão de ar e com dois pardais à cintura”. O pequeno testemunho, que aqui transcrevo, revela efectivamente o quando a zona de Guileje estava limpa da pressão da Guerrilha.
O relato não deixa quaisquer dúvidas de que os Oficiais milicianos não tinham menos preparação técnica, para a Guerra que enfrentámos, do que os Oficiais do QP. Vejamos mesmo o seguinte comentário, do Furriel Carvalho, na carta citada anteriormente: “ficaram vários turras feridos numa mina que pusemos, perto do território deles, e que eles levaram, (os turras mortos e feridos) é claro, mas fica sempre sangue e bocados de carne, botas e roupa. Isto é chamá-los a pôr mais minas contra nós, mas os Altos Comandos assim mandam.”
A afirmação proferida por um Furriel miliciano que, conjugada com outros relatos e elementos que me foram facultados, demonstram que quem iniciou as hostilidades no extremo sul da Guiné foi o Estado-Maior português e não a Guerrilha, cuja resposta um Furriel previu e o Estado-Maior não. Estávamos a 21 de Março de 1973. Quatro dias depois, a 25 do mesmo mês, a Guerrilha iniciou os grandes ataques a Guileje.
Foi a resposta, que o Estado-Maior não previu, nem soube contrariar, logo, não pode afirmar qualquer capacidade formativa sobre os Oficiais milicianos, os quais provaram estar bem “acima deles”, ou, por outras palavras, os aspectos técnicos desta Guerra eram tão primários que todos os conheciam, as diferenças estavam nas capacidades de cada homem, que pouco ou nada tinham a ver com o quadro a que cada um pertencia.
– A 1.ª Companhia do Batalhão de Artilharia 6521/72
A Companhia chegou à Guiné no dia 27 de Setembro de 1972, sendo colocada em Cadique no dia 21 de Janeiro de 1973 a fim de reforçar a segurança e protecção dos trabalhos de construção da estrada Cadique-Jemberém. Em 20 de Abril de 1973 seguiu para Jemberém, tendo sofrido 18 ataques e flagelações até 4 de Setembro de 1973, data em que foi substituída (EME, 2002: 243).
O comando do Batalhão, a que esta Companhia pertencia, foi colocado no Pelundo, em cujas proximidades ficaram estacionadas as outras duas Companhias que o integravam. Sabendo que a zona do Pelundo era, já na altura, uma zona relativamente pacificada, fica ao analista uma certa interrogação sobre o que teria motivado a desagregação desta Companhia, que foi colocada, no muito provavelmente, segundo pior local do sul da Guiné, já que estou a considerar que o pior era Guileje. Este facto sugere-me que a Companhia era possuidora de alto valor e merecedora de confiança do Comando Chefe. Eu próprio a conheci de perto, uma vez que a minha Companhia esteve dois meses em Cadique em simultâneo com ela.
Durante estes dois meses a segurança de proximidade aos trabalhos da estrada foram alternadamente garantidos por esta Companhia e pela Companhia de Pára-Quedistas. A Companhia de Artilharia, em funções de Infantaria, somente não se deslocava para as proximidades das bases dos Guerrilheiros – também seria pedir demais – tarefa que ficou sempre à responsabilidade dos Pára-Quedistas. Mais tarde, nos meados de Maio de 1973, quando os Guerrilheiros cercaram Jemberém, impedindo o seu abastecimento, e a CCP 123 se deslocou para as suas proximidades, foi colocado neste destacamento o bigrupo constituído pelos 2.º e 4.º pelotões, comandado pelo Tenente Sousa Bernardes e integrando o 2.º Sargento Pára-Quedista Joaquim Manuel Delgadinho Rodrigues, que na altura comandava o seu pelotão, o qual, tanto na altura, como em entrevista no âmbito da presente investigação, me referiu o elevado comportamento desta unidade de tropa normal que era comandada pelo Capitão Miliciano de Cavalaria Casimiro Gomes.
Esta verificação demonstra-nos que todos os Capitães que actuaram como operacionais na Guerra de África dispunham dos conhecimentos suficientes às suas funções e ao desempenho que deles se esperava e requeria. As diferenças, e grandes, que as houve, estiveram e foram sempre dependentes das capacidades dos homens e não nem nunca do quadro a que pertenciam nem do tipo de formação que tinham adquirido.

– A 3.ª Companhia do Batalhão de Caçadores 4514/72
A Companhia chegou à Guiné no dia 9 de Abril de 1973, sendo colocada em Nova Lamego. A partir de 10 de Junho de 1973, foi atribuída em reforço do COP 3, instalando-se em Guidaje, até finais de Agosto desse ano, por naquela área se ter acentuado a pressão inimiga. Em 4 de Setembro foi deslocada para Jemberém, onde se manteve até 23 de Maio de 1974 (EME, 2002: 175). Como nos sugerem as datas e a documentação nos confirma, esta Companhia rendeu em Jemberém a 1.ª Companhia do Batalhão de Artilharia 6521/72.
Mais uma vez, complementarmente a tantas outras, se comprova terem existido na Guerra de África excelentes Oficiais milicianos, garantindo-nos que a formação não era limitadora de nada nem diferenciadora de coisa alguma. Antes, tudo dependia das capacidades psicofisiológicas dos diversos actores.
Esta Companhia foi teoricamente comandada por dois Capitães, dos quais apenas um a comandou efectivamente, mas apenas durante 15 dias, durante todo o tempo restante, que na prática foi toda a comissão, foi comandada pelo Alferes miliciano António Augusto Soeiro Delgadinho. Esta verificação, de significativa importância, demonstra-nos que não só os Capitães milicianos demonstraram capacidade para comandar as Companhias, mas também alguns Alferes milicianos provaram deter essa capacidade.
A afirmação é tanto mais relevante, se tivermos em consideração que Jemberém foi seguramente o aquartelamento que, em toda a Guiné, apresentava piores condições de defesa, já que estava situado no Cantanhez e não foram edificados quaisquer abrigos, nem mesmo estruturada qualquer organização defensiva.
Neste aquartelamento, limitado por uns arames mal colocados, onde algumas tendas de campanha serviam de bar, de arrecadação e de enfermaria, os militares viviam em buracos no chão com umas folhas de zinco a protegê-los das chuvas e do sol, folhas de zinco essas, que não chegaram pata todos. O efectivo militar deste destacamento era constituído por duas Companhias e um Pelotão de Artilharia, o que justificava plenamente o Comando de um Major do QP. Porém, o Comando estava entregue a um Capitão miliciano apoiado por cinco Alferes, também milicianos.
Uma verdadeira “debandada”, é a designação que considero apropriada para designar a conduta dos Oficiais do QP.
Em e-mail que me enviou, no dia 13 de Julho de 2005, como que para sintetizar toda a nossa longa entrevista, afirmava o então Alferes miliciano, Comandante da 3.ª Companhia do Batalhão de Caçadores 4514/72, António Augusto Soeiro Delgadinho: “não posso deixar de comentar como foi possível acontecerem situações como aquelas que os nossos governantes da altura nos fizeram.
Temos a consciência que nenhuma guerra se faz só com os profissionais; os milicianos também têm que fazer parte dela; mas falo da Guiné que foi o que conheci, nós, milicianos e soldados, fomos pura e simplesmente despejados para zonas, das quais não conhecíamos nada, nem sabíamos o que é que íamos fazer.
Ter um Comandante de Batalhão, que não sei se comunicámos mais de 20 vezes, que nunca teve a coragem de nos visitar, que nunca nos apoiou em nada, sendo ele profissional, foi no mínimo uma irresponsabilidade total.
Pessoalmente, só tenho a agradecer a todos aqueles militares e milicianos que me acompanharam nesta tarefa e que juntos conseguimos manter a moral em alta e superar toda esta situação impensável e denegrida que nos obrigaram a afazer.”
As palavras que me escreveu o cidadão António Augusto Soeiro Delgadinho, sugerem uma pergunta e desde logo uma resposta: qual a diferença entre os Oficiais do QP e os Oficiais milicianos? Os valores que individualmente perseguiam detinham e a estabilidade no emprego. Nada mais.

NOTAS do texto:

(1) Tenho aqui em consideração que os Pelotões foram sempre comandados por Oficiais milicianos.

(2) Nestas gravações de entrevistas e na condução das mesmas fui apoiado pelo Capitão Pára-Quedista na reforma Joaquim Manuel Delgadinho Rodrigues, o mesmo que quando 2.º Sargento orientou os “seus homens” na resposta e contenção de um forte ataque da Guerrilha, em Gadamael, em Junho de 1973, mesmo depois de terem sido abandonados pelos restantes homens da Companhia que cumpriram as ordens de retirada, proferidas pelo Comandante de Companhia. Retirada essa que os homens de Delgadinho não podiam cumprir devido à violência do ataque e ao perigo que corriam se o fizessem.
(3) Capitão Miliciano de Artilharia Abel dos Santos Quelhas Quintas, então com 32 anos de idade.
(4) O Furriel Carvalho escrevia todos os dias a sua mãe e relatava tudo o que acontecia na unidade com extremo pormenor. Estas cartas, que ainda guarda, podem constituir-se como um diário de grande fidelidade. Foram estas cartas que José Carvalho me facultou e suportam as minhas afirmações.

(continua)
Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados

Sem comentários: