quarta-feira, 1 de setembro de 2010

M252 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - XVII


ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M233, M234 a M244, M246, M248, M249 e M250. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M234, depois a M235… M236... M237… etc.

Manuel Godinho Rebocho2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)Bissalanca/Guiné
1972 a 1974


O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.

Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M233 a M244, M246, M248, M249 e M250:
III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES


(continuação)

3.2.1.2.1.10 – A Guerra Clássica
Com a chegada do período das chuvas tudo serenou e o ano de 1973 terminou calmo, iniciando-se o ano de 1974 em idênticas condições. No início de Fevereiro de 1974 os Guerrilheiros, partindo das suas bases no Senegal, concentraram os seus ataques no Nordeste da Província. O PAIGC passou a ter todas as facilidades de movimentos nas duas repúblicas vizinhas da Guiné e preferia atacar os Destacamentos perto da fronteira, fazendo-o, sobretudo, à custa de grandes bombardeamentos e evitando o confronto directo com as nossas tropas. Mas esta atitude, contrariamente ao que se tem dito, favorecia a actuação das forças portuguesas: as tropas especiais ou de elite deixaram de estar dispersas pela Província e passaram a permanecer nas suas unidades, disponíveis para acorrerem às situações de emergência; a Força Aérea já reiniciara os voos e os bombardeamentos às bases de fogos dos Guerrilheiros. Gadamael não se repetiria.
Importa, aqui, tecer uma consideração: se é um facto que os Oficiais de carreira passaram todo o tempo da Guerra de África a queixarem-se de não terem preparação para a guerra de guerrilha, o que parece ser uma realidade, quando a guerra «caminhou» no sentido clássico ou convencional, permaneceram com idêntica atitude. Afinal, o problema parece não residir na falta de formação técnica, mas, eventualmente, na falta de vocação e preparação psicológica.
Logo que a guerrilha iniciou os flagelamentos a Copá e Canquelifá, a CCP 123 partiu de avião, a 3 de Fevereiro, para Nova Lamego e, daqui, em viatura para Canquelifá, enquanto a CCP 121 se dirigiu ao mesmo destino, mas de barco. A localização da base de fogos da guerrilha foi detectada e para lá seguiu a CCP 123, mas os Guerrilheiros tinham vigias bem colocadas, detectando o movimento levantaram as bases, que foram depois instalar exclusivamente em território senegalês. As únicas tropas que o PAIGC respeitava e a cujo confronto efectivamente fugia, eram os Pára-Quedistas.
Também, e mais uma vez, há lugar a uma consideração crítica sustentada pelos factos que sucessivamente observei e venho relatando: o Estado-Maior só se apercebeu do bombardeamento a Copá e a Canquelifá quando as granadas começaram a cair. Não parecia haver lugar à previsão, não se antecipava a nada — os Guerrilheiros, analfabetos, «davam cartas» na organização.
Não conseguindo instalar as suas bases em território nacional, a guerrilha só podia atacar Copá, que fica a 3,5 km da fronteira com o Senegal, mas só com mísseis Katiuska consegue atingir Canquelifá que fica a 11 km do Senegal e a 16 da Guiné Conakry. Como medida de adequação doutrinária, o Comando Chefe determinou o recuo do sistema e ordenou o abandono de Copá.

Destacamento de Copá, em Fevereiro de 1974. A evacuação do Pelotão que aqui estava colocado e o consequente fecho do destacamento correspondeu a uma nova doutrina de Bettencourt Rodrigues, o novo Comandante-chefe, que ao recuar o sistema, limitou a agressividade da Guerra e a capacidade de actuação da guerrilha.
Fotografia de Martins Miranda
No relatório da operação, comandada pelo Tenente-Coronel Pára-Quedistas António João Chumbito dos Anjos Ruivinho, que aqui fizera o seu baptismo de comando operacional na Guiné, pois havia substituído Araújo e Sá, no Comando do BCP 12, no dia 21 de Janeiro, consta o seguinte: “no dia 11 de Fevereiro a CCP 123, comandada pelo Alferes miliciano Fernando Pires Saraiva, parte de Nova Lamego, às 4 horas e 30 minutos, escoltando as viaturas que iam efectuar o transporte dos bens do destacamento de Copá.
Prevendo a duração da operação de recolha, bem como dificuldades no trajecto, as viaturas transportavam rações para 4 dias e 2.000 litros de água. Pelas 15 horas e 30 minutos a coluna atingiu Copá sem incidentes”.
Em Copá, onde já se encontrava a CCP 121, tudo se processou ordeiramente. As duas CCP’s dormiram nos arredores, mantendo segurança ao destacamento e ficando as viaturas estacionadas a 500 metros do mesmo. No dia seguinte, 12 de Fevereiro, a CCP 121 partiu de Copá às 3 horas e 40 minutos com destino a Bajocunda, cujo itinerário foi patrulhando e onde chegou às 8 horas e 30 minutos. Pelas 10 horas e 45 minutos, após as viaturas terem sido carregadas e destruído o material que não foi possível transportar, deu-se início à deslocação para Bajocunda, com escolta da CCP 123, onde se chegou pelas 18 horas, sem incidentes. Assim, de forma controlada e sem quaisquer dificuldades ou incidentes, se abandonara um Destacamento que poderia nunca ter sido aberto.
Durante os dois meses seguintes, manteve-se, pelo menos, uma CCP nas proximidades de Canquelifá, por ser o Destacamento sobre o qual os Guerrilheiros prometiam mais acções, que nunca chegaram a executar.
O Tenente-Coronel Ruivinho provou “saber do seu ofício” e estar à altura dos acontecimentos; não obstante, foi humilhado e saneado a seguir ao 25 de Abril de 1974 por um grupo de Capitães Pára-Quedistas. Não se descrevem aqui os termos dessa humilhação, por se relacionarem com a sua vida pessoal e por considerar tal facto vergonhoso, para além de sem qualquer relevância para a minha obra.
3.2.1.2.1.11 – O Novo Capitão — Maximino Cardoso Chaves
Em 18 de Fevereiro de 1974 tomou posse de Comandante da CCP 123, o Capitão Maximino Cardoso Chaves, substituindo Sousa Bernardes que terminara a sua comissão. Ao apresentar-me, segundo as regras militares, ao novo Capitão e após ter dito o nome, este disse-me: “ah, tu é que és o Rebocho?”. Fiquei com a impressão de que dificilmente nos iríamos entender, pois pareceu-me que o «tom» em que proferiu o meu nome significava uma promessa de disputa, premonitória de uma possível reedição do Capitão Costa Cordeiro. A próxima operação iria demonstrar o que valia o Capitão, medindo forças e esclarecendo dúvidas. Este pretendia conquistar a Companhia disputando a liderança informal ao Rebocho, o que significava colocar a «aposta» muito alta constituindo um gravíssimo erro de comando: em vez de se apoiar em quem sabia e tinha já a liderança, passava ao ataque. A atitude deste Capitão não só lhe impossibilitaria a liderança informal da Companhia, como lhe poderia vir a causar uma queda demasiadamente aparatosa. Não foi preciso esperar muito, a próxima operação, provou-o depressa.
Este Capitão, que se veio a revelar o oposto do anterior, o que foi pernicioso para a sua aceitação, tinha um perfil teimoso, pouco solidário, sem iniciativa técnica, que configurava a impossibilidade de nos virmos a entender. Segundo o Major-General Rafael Ferreira Durão, durante a Guerra de África, “um bom Sargento Pára-Quedista engolia um Capitão médio” (em entrevista), só que este nem isso era e eu era mais do que aquilo. O Tenente-Coronel Pára-Quedista Joaquim Manuel Trigo Mira Mensurado, então Segundo Comandante do BCP 12, classifica o Capitão Chaves de “progressista e petulante” (Mensurado, 1993: 106).
No dia 2 de Abril de 1974 a Companhia seguiu de avião para Nova Lamego e desta cidade em coluna-auto, para Piche. Na manhã seguinte seguimos de viatura até à povoação de Dunane, ponto a partir do qual seguimos em patrulhamento apeado, sempre a Este da picada para Canquelifá, em direcção ao ponto onde se presumia ter sido instalada a base de mísseis que tinham flagelado este Destacamento do Exército, num percurso de cerca de 15 km.
Seguindo a rotina anterior e essa situação o novo Capitão assumiu-a, a minha Secção iria à frente. Ao surgir a primeira bolanha, a Companhia suspendeu a marcha para contactos com o comando da zona. Como medida de segurança, instalou-se uma linha de militares na orla da mata, necessariamente os meus, porque vinham à frente. Antes do recomeço da marcha, o Capitão chamou-me e disse-me: “nosso Sargento (o Capitão Chaves não sabia o nome dos Sargentos), mande três homens seus atravessar a bolanha para o outro lado”, ordem, a todos os títulos inconsequente e reveladora de imaturidade.
Não tive dúvidas que a nossa marcha estava a ser controlada pela guerrilha, já passáramos por várias povoações, pelo que os Guerrilheiros já tinham antevisto o nosso destino. Se não nos tinham ainda afrontado, era porque não tinha chegado o momento em que se considerassem em posição de vantagem, situação essa que o Capitão, com esta ordem, estava a criar.
Se apenas três homens atravessassem a bolanha, que teria sensivelmente uns 500 metros, era absolutamente previsível que os Guerrilheiros os esperassem do outro lado, onde meros três homens não teriam qualquer hipótese. Procurei fazer ver isso ao Capitão, expliquei-lhe mesmo como se atravessavam as bolanhas, mas este, não aceitou nada, interrompendo a conversa e dizendo-me: “nosso Sargento, como Comandante de Companhia, ordeno-lhe que cumpra as minhas ordens”.
Ia pela segunda e última vez, durante a minha comissão na Guiné, levar as minhas capacidades ao limite do necessário. Os militares que estavam em linha, na orla da mata, assistiam à breve discussão em pânico, com o compreensível receio que a escolha incidisse sobre si próprios. Estes homens presenciavam, como eu, pela primeira vez, um acto em que o Comandante da força militar se resguarda de todo e qualquer risco, não hesitando em expor a vida dos seus homens, que assim lhe não mereciam qualquer valor, para não pôr em causa a sua. A atitude era ainda mais grave, porque vários daqueles militares sempre viram Sousa Bernardes, que este Capitão viera substituir, seguir sempre na frente dos combates.
Dirigi-me, em voz alta, aos homens da minha Secção, que estavam todos na orla da mata e disse-lhes: “dois voluntários para atravessarem a bolanha comigo”. Era o mínimo que eu podia fazer, se tinha que haver alguém a expor-se ao «sacrifício», era eu. Mas os «meus» rapazes também estiveram à altura: todos levantaram o braço, oferecendo-se. O Capitão seria, em gíria militar, «engolido» por um elemento de patente inferior e mesmo pelos Praças, revelando a sua total incapacidade. Escolhi dois dos homens que usavam metralhadoras, porque as armas que disparam granadas não poderiam ser utilizadas no tipo de combate que eu previa ir ser travado.
Montei uma pequena bateria de fogos constituída por morteiros, RPG’s 2 e 7 e Sneb’s, apontei uma mancha arbustiva do lado oposto da bolanha e disse aos meus camaradas: “nós vamos seguir na direcção daquela mancha arbustiva o que constitui um «convite» aos Guerrilheiros para nos emboscarem ali, mas quando estivermos a cerca de 50 metros, guinamos à esquerda e fazemos um semicírculo em volta dos arbustos. Os Guerrilheiros serão tentados a abrir fogo; nesse momento vocês disparam todos contra os arbustos”.
Chamei outro homem, a quem instrui para ficar em escuta rádio, dizendo ainda aos meus camaradas da bateria de fogos que só deviam cumprir as ordens que eu lhe desse, via rádio.
Em poucos minutos, no sistema de «passa palavra» todos os homens passaram a saber que a Companhia estava à deriva, e que a norma seria, quando chegassem os combates, cada um safasse-se por onde pudesse, que no Capitão ninguém confiava. Para Gaston Courtois, “um grupo medíocre pode tomar alento e ultrapassar-se ao sopro de um chefe de valor (mas) um grupo excelente pode estiolar e desfazer-se na esteira de um chefe medíocre cujas atitudes amolecem as boas vontades e matam o entusiasmo” (Courtois, 1968: 13). Idêntica interpretação é considerada num «ditado antigo» que nos diz: “para ganhar uma batalha, é melhor um exército de burros comandado por um leão do que um exército de leões comandado por um burro” (Canha, 1999: 2) (1).
O Capitão assistiu à montagem desta bateria de fogos e às instruções que dei aos militares, menos à de não cumprirem as suas ordens, visto tê-lo dito em voz baixa, mas não fez qualquer outra intervenção. Ficara petrificado quando percebeu que era eu um dos homens que atravessariam a bolanha. Passou-se a bolanha, sem incidentes. O semicírculo à volta dos arbustos inibiu os Guerrilheiros de abrirem fogo por eventualmente terem percebido que a manobra técnica estava preparada.
Quando, perto da noite, atingimos a bolanha seguinte, o Capitão chamou-me e disse-me: “Rebocho, atravesse a bolanha como quiser”. Pela primeira vez, desde que nos conhecíamos, o Capitão me tratava pelo meu nome, visto até àquele momento, ter-me tratado sempre por “nosso Sargento”, como de resto, tratava todos os outros. O comportamento deste Capitão relativamente aos Sargentos era de extrema distância, até que, com aquele incidente se acabou a arrogância.
A partir daquele dia, nunca mais o Capitão deu qualquer ordem sem que ouvisse primeiro os Sargentos, o que se tornou até excessivo.
Contudo, não se infira que fui eu quem descobriu a melhor técnica para atravessar as bolanhas, que se constituíam enquanto pontos extremamente críticos.
Quando cheguei à Guiné já se passavam estes obstáculos como eu o pretendi fazer e o fiz depois, havendo, caso a caso, alguns ajustamentos a realizar face a determinadas particularidades do terreno ou à proximidade prevista do inimigo e à criatividade de quem comandava a força. A única diferença é eu ter aprendido com os mais velhos. Era evidente, menos para o Capitão, que a experiência tinha muita importância, era fundamental que aprendêssemos uns com os outros. Havia, no entanto, e a prova estava à vista, quem pensasse que na Academia Militar se aprendia tudo o que era necessário para fazer a Guerra, o que não se coadunava com a realidade.
A formação orgânica das Tropas Pára-Quedistas em combate se, por um lado, obedecia à lei, por outro não era concordante nem com a doutrina nem com as características da Guerra, o que motivava, na maior parte dos casos, que a contribuição dos Oficiais em combate constituísse, muitas vezes, uma utilidade marginal nula e a sua presença na mata fosse indiferente para o desempenho das tropas e para o resultado final. No entanto, reprimiam os seus subordinados obrigando à criação de uma segunda cadeia de comando, que acabava por os enfrentar, o que não sendo curial, se configurava como a única alternativa para a obtenção da eficácia pretendida.
Abro aqui um parêntese, visto o parágrafo anterior ter podido suscitar uma dúvida: se a contribuição dos Oficiais em combate constituía uma utilidade marginal nula, por estarem sempre muito longe dos combates, então o que é que distinguia Sousa Bernardes? O facto de este estar sempre na frente de combate: era precisamente isto que o distinguia dos demais. E era por essa razão que ele integrava a hierarquia dos valores ou da liderança e era respeitado enquanto homem e enquanto líder, não carecendo da posição orgânica para se fazer respeitar, mas legitimando essa posição (2).
Fischer ajuda-nos a compreender esta e outras situações equivalentes, quando afirma: “Existem também dois tipos de autoridade distintos: aquela que, sendo derivada da categoria ou da posição hierárquica é, em princípio, imposta; e aquela que, sendo proveniente da posição do líder é, em princípio, aceite. A eficácia de uma autoridade existirá quando se verificar a conjugação destes dois níveis” (Fischer, 1994: 93 e 94). Com o auxílio de Fischer percebeu-se a situação e dissiparam-se as dúvidas.
Para Mira Vaz “Oficiais e Sargentos bem treinados, com experiência de combate, com um comportamento exemplar face ao perigo e capazes de se preocuparem tanto com o cumprimento da missão como com a integridade e o bem-estar físico e moral do grupo que comandam, transmitem aos subordinados uma sensação acrescida de segurança” (Vaz, 2000: 45). Assumo e concordo com a posição de Mira Vaz, cujo conhecimento lhe vem da experiência. Mira Vaz concorda com Fischer, embora explicando a situação pelo lado oposto. 


Um grupo de Pára-Quedistas, tomando uma refeição em Canquelifá, no mês de Abril de 1974.
Fotografia de Martins Miranda
Chegámos no dia seguinte, 4 de Abril, a Canquelifá. A área que nos foi reservada para defendermos estava virada ao ponto de onde vinham as flagelações, ficando ainda decidido, pelo Comandante da zona, que um dos nossos Pelotões estaria permanentemente em patrulha na área de onde se esperavam os ataques. Era uma ideia correcta e, desta forma, não haveria ataques a Canquelifá, mas as exigências físicas eram grandes. O Capitão não sabia que atitude tomar nesta situação e parecendo recear nova crítica ao seu comportamento, chamou os graduados e perguntou-nos quantas vezes deveria ele ir para o mato: se saísse com todos os Pelotões estaria permanentemente no mato, o que era impossível, se não saísse nunca, todos o criticariam.
Nenhum graduado lhe deu qualquer sugestão, pelo que entendi manifestar a minha opinião, muito simples e sempre a mesma: “o Capitão deve ir para o mato tantas vezes quanto os outros homens, para se aperceber das dificuldades porque passamos, para corrigir o que for possível e colocar superiormente o que for necessário, devendo ser de sua escolha os Pelotões que deve acompanhar”. Ninguém manifestou outra ideia, pelo que ficou assim decidido e assim foi executado. O Capitão Chaves acabava de aprender que na Guerra manda quem é capaz de a fazer e que são este tipo de homens que se tornam líderes, sendo sempre muito mais fácil apoiar-se neles do que combatê-los.
No dia 14 de Abril, pelas 6 horas e 30 minutos, a Companhia partiu de Canquelifá, onde foi rendida pela CCP 122, chegando a Nova Lamego nesse mesmo dia, pelas 18 horas. Durante os doze dias que durou a operação, a CCP 123 não teve qualquer acção de fogo, nem o Destacamento de Canquelifá nem nenhum outro da zona sofreu qualquer ataque. A Companhia que nos rendeu também não teve nenhuma acção de fogo, embora tivesse um morto, o 1.º Cabo Pára-Quedista João Manuel Aleixo Pinto, por acção duma mina de grande potência, pelas 7 horas e 45 minutos, do dia 19 de Abril, constituindo o último boina-verde a tombar na Guiné, ao serviço da Pátria, devido a uma acção militar.
Neste breve percurso em torno da CCP 123, procurei demonstrar com a maior exactidão e com autenticidade empírica, através de factos por mim vividos, a formação dos homens que integravam as unidades executantes da Guerra, particularmente através dos problemas de liderança e de comando das tropas.
A situação que se viveu nesta Companhia parece ter-se repetido em todas as outras: havia sempre um Sargento que liderava o grupo verdadeiramente executante. O maior ou menor conflito dependeu sempre das personalidades do Capitão e do Sargento que liderava cada operação ou grupo, sendo certo que a intensidade da Guerra também condicionou o relacionamento dos dois homens que ocupavam essas posições.
Compreende-se que nos momentos em que a guerra fosse pouco intensa, o Capitão podia prescindir do apoio dos Sargentos, bastando o seu poder coercivo para que as ordens fossem sendo mais ou menos executadas. No outro extremo, quando os combates fossem mais duros, e foi disso que sofreu a CCP 123, o Capitão não podia prescindir do apoio dos Sargentos e, particularmente, de quem liderasse efectivamente o grupo envolvido.
Esta liderança assumia ainda maior relevância porque os Soldados sempre apoiaram os Sargentos, o que se fundamentava na própria lógica do funcionamento da Instituição Militar. Os Oficiais posicionavam-se à distância, sempre o fizeram, enquanto os Sargentos tinham a sua origem em Soldado. As classes de Sargentos e de Praças eram assim, duas entidades próximas, enquanto a classe de Oficiais constituía uma entidade algo distante, ficando naturalmente isolada em momentos difíceis.
As dificuldades que foram sentidas no primeiro semestre de 1973 deveram-se a uma situação de circunstância, o aparecimento do míssil Strella, e a uma situação estrutural, a ausência de comando, devida, sobretudo, à escassez de Oficiais da Escola Militar nas zonas de combates mais profundos. Esta situação demonstra, inequivocamente, que Portugal conduziu mal o recrutamento das elites militares e que a formação doutrinária e psicológica que lhes foi ministrada resultou mais na constituição de um espírito de corpo, do que num espírito militar e nacional.
A Academia Militar produziu assim, um Corpo de Oficiais, mais dotado para a gestão e administração do Exército, do que para o comando de tropas operacionais (3).
O que se pode afirmar sobre os Oficiais que comandaram a CCP 123, é que todos eles possuíam conhecimentos técnicos suficientes para comandarem a Companhia. Tanto mais que os conhecimentos requeridos eram absolutamente primários. Os desconhecimentos iniciais iam-se corrigindo e aperfeiçoando com o tempo, o que confere um elevado índice valorativo à componente experiência. Mas, seguramente, a qualidade do desempenho não foi minimamente condicionada pela formação técnico-táctica, foi-o pouco pela experiência, tendo-o sobretudo sido pelas características pessoais dos combatentes.
Numa guerra de guerrilha, em que a surpresa é uma constante e a novidade está sempre a surgir, a capacidade do Comandante da força expressa-se sempre pelo desembaraço, criatividade, disponibilidade para exposição ao risco, capacidade de liderança e serenidade, para que possa articular todas as outras características. Só se obterá um corpo de elites militares com estas valências caso se siga um método de selecção rigoroso.
As elites hierárquicas que intervieram activamente na condução da Guerra tinham testado a sua vocação militar antes de ingressarem na EM. Sublinhe-se o que já demonstrei atrás, que após 1936, se tornou obrigatório a frequência do 1.º Ciclo do COM para o ingresso na EM e que a reforma de 1938 introduziu uma pequena alteração, permitindo que o candidato frequentasse o ciclo de Instrução da Companhia de Cadetes da Escola. Ambos os percursos iniciais tinham o mesmo objectivo: testar o candidato quanto à sua “vocação para o serviço militar”, eliminando-se quem não satisfizesse os requisitos vocacionais. Ora, este princípio foi afastado a partir da reforma de 1959, com a implantação da Academia Militar. Os débeis critérios de selectividade, senão mesmo a sua total ausência, permitiram que ingressassem nas fileiras do oficialato quem não tinha o mínimo de vocação ou de características para a vida militar, isto, já não falando para a guerra.
Quando estes homens começaram a surgir nas frentes de combate, com as patentes de Capitão, intensificaram-se as transferências do comando de tropas operacionais, para funções de administração (4). Só que tudo se agravou: não só se transferiram os que não tinham aptidão, como se tornou difícil justificar a presença daqueles que a detinham.
Com o prolongamento da Guerra e por causa do princípio anteriormente exposto, os Oficiais de carreira foram-se avolumando no “conforto das cidades” (Melo, 1988: 25) (5). Os seus lugares ao comando das Companhias de combate passaram a ser preenchidos por milicianos, que aprenderam com os seus camaradas de carreira e iniciaram reivindicações a que se julgavam com direito. O mínimo que se poderá dizer, nestas situações, é que estará sempre vencido o exército cujos Oficiais de carreira fujam das zonas de combate, onde deixam à sua sorte Milicianos e Soldados. Pelo mesmo motivo, o próprio Spínola perdeu a capacidade de comando: não foi capaz de colocar Oficiais em tempo oportuno, nem no sector de Guidaje nem no de Cacine, como claramente provei quando me referi aos violentos combates que se registaram nestas zonas, nos meados de 1973.
Neste sentido e porque os Oficiais formados nos anos 60 fugiram dos locais de combate, o Exército desmoronou-se; a cadeia de comando partiu-se; o Exército deixou-se vencer; a Academia Militar falhou na selecção e formação psicológica das futuras elites militares que, sem solução à vista e vendo-se ameaçadas pelos milicianos, que mais não eram do que as suas muletas, correram à procura da “democracia salvadora”, para a qual ainda tinham menos vocação do que para a vida militar.
Um total equívoco é a classificação que posso atribuir, tendo por base o que venho explicitando, à formação base ministrada na Academia Militar aos futuros Oficiais combatentes, os quais, por esse motivo, o não foram na realidade.

NOTAS do texto:
(1) O documento citado constitui o resumo de um trabalho de Donald Krause, segundo a própria afirma no texto.
(2) A posição dos Comandantes de Companhia nas colunas era um assunto tão falado e tão importante, que se afirmava no interior das Tropas Pára-Quedistas que apenas 6 Capitães destas Tropas ocupavam posições na frente. E adiantava-se mesmo a seguinte afirmação: O Capitão Valente dos Santos era sempre o 5.º homem da coluna, o Capitão Sousa Bernardes era sempre o 7.º e o Capitão Almeida Martins era sempre o 10.º. Os outros 3 Capitães não foram meus contemporâneos na Guerra de África, pelo que já não possuo elementos bastantes.
(3) Esta afirmação pode ser confirmada pala conjugação dos elementos contidos na Lista de Antiguidade dos Oficiais do Exército, referente a 1 de Janeiro de 1974, onde se constata que 51,7 % dos Capitães e Subalternos, das Armas Combatentes estavam “adidos”, ou seja, fora da estrutura do Exército, com os elementos contidos no livro do EME (2002), onde se demonstra que dos 160 Capitães que comandaram as 102 Companhias que estavam em sector, na Guiné, em Janeiro de 1974, apenas 19 eram oriundos da Academia Militar, sendo os restantes milicianos. Consultei, igualmente, os documentos que hão-de constituir os livros, correspondentes a este, para Angola e Moçambique, os quais ainda não estão editados, onde se pode obter idêntica conclusão.
(4) Como se comprova na documentação citada na nota anterior.
(5) O termo “conforto” e com o mesmo sentido, foi também utilizado por (Almeida, 1978: 54)

(continua)


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