segunda-feira, 6 de outubro de 2008

M26 - RANGER desaparecido em combate em Moçambique

Enviado pelo Carlos Vardasca, que foi soldado condutor da Companhia de Caçadores 3309 (estacionada no Aquartelamento de Nangade), recebi em 04 de Maio de 2008, acompanhado de 1 foto e um mapa esquematizado, o texto que a seguir se transcreve:


RANGER desaparecido em combate em Moçambique

"O comunicado tinha acabado de chegar do Quartel General da Região Militar de Moçambique, situado na cidade de Porto Amélia (Pemba), e o seu destino era o Aquartelamento do Nhica do Rovuma no norte de Moçambique, onde estava estacionado o agrupamento de GEs 212 (1) comandado pelo Furriel Pinto (2) da Companhia de Caçadores 3309 e para ali destacado para aquela zona, Aquartelamento situado em Cabo Delgado a cerca de nove quilómetros da fronteira com a Tanzânia e das margens do rio Rovuma.

A circular, de categoria confidencial, dizia da necessidade de se fazer deslocar para junto da fronteira um grupo de Combate daquele destacamento para vigiar movimentações junto ao rio, dado que, e por informações recebidas e não confirmadas, poderiam existir populações moçambicanas a trabalhar na Tanzânia em machambas (3) comunais junto da povoação tanzaniana de Kytaia (4), cujos produtos alimentares serviam para abastecer os guerrilheiros da FRELIMO (5), que com bastante regularidade ali se abasteciam para reentrarem em Moçambique e efectuarem as suas operações contra o exército português.

Efectuados os preparativos para a operação que ficou denominada por Operação “BAGA 6” que teve a duração de 14 a 16 de Novembro de 1972, foi enviado um pequeno grupo para o local indicado comandado pelo Furriel Guimarães (6), recentemente chegado da Metrópole (7) em rendição individual. 



Chegados ao local junto ao rio Rovuma e devido ao adiantado da hora, o grupo de GEs 212 decidiu ali emboscar e iniciar as observações de qualquer movimentação que viesse a ocorrer do outro lado da fronteira no dia seguinte.

Em 15 de Novembro de 1972 e ainda o cacimbo flutuava por cima do capim, iniciaram-se as observações que deram origem aquela operação, com as águas do rio Rovuma em maré baixa, deixando emergir do seu leito vastos bancos de areia, permitindo alguns deles o acesso fácil ao outro lado da fronteira.

Talvez por inexperiência e desconhecimento da realidade ou por simples espírito de aventura, o Furriel Guimarães, depois de ser advertido pelos seus soldados africanos dos perigos em que ia incorrer, decidiu percorrer um dos bancos de areia que se estendia até à outra margem tendo mesmo pisado território tanzaniano.

Inesperadamente e perante a angústia dos companheiros que o avistavam ao longe embora naquele local as duas margens fossem relativamente perto, ouvem-se dois tiros de arma de precisão e o corpo do Guimarães tombou de imediato ficando inerte, prostrado sobre o areal. Fez-se um silêncio tremendamente ensurdecedor no seio do Grupo de Combate, tendo alguns dos seus elementos iniciado os preparativos para irem resgatar o corpo, sem se aperceberem dos perigos que decerto os esperava.

Outros, mais experientes e conhecedores das tácticas de guerrilha, advertiram que era perigoso ir lá alguém resgatar o corpo pois seriam alvo de uma emboscada e sujeitos a ficarem lá todos, dado que os autores dos disparos decerto que ainda se encontravam nas imediações aguardando por essa oportunidade.


Tendo em conta a gravidade da situação, o destacamento do Nhica do Rovuma e o Coordenador da operação e comandante dos GEs 212 Furriel Pinto foram informados via rádio, tendo sido enviado para o local um novo Grupo de Combate onde aquele militar já ia integrado, no sentido de coordenar e dar resolução à situação.

Foi decido então pedir apoio aéreo com a intervenção de helicópteros e de um bombardeiro T6 para dar protecção ao grupo que iria resgatar o corpo do Guimarães, apoio esse que foi rejeitado pelo Comando estacionado no Aquartelamento de Mueda, por se considerar uma operação perigosa e de elevado risco, mas também por implicar a violação do espaço fronteiriço de um pais vizinho que decerto seria denunciado pela Tanzânia e condenado a nível internacional.

Com o corpo permanecendo no mesmo lugar e sem possibilidades de o poderem resgatar, foi anoitecendo e o grupo de GEs permaneceu no local, emboscado de novo, com o objectivo de aguardar novas ordens para o prosseguimento da operação.

No dia seguinte, logo pela madrugada, um dos soldados que estava de sentinela acordou os restantes informando que o corpo do Guimarãres já não se encontrava no local onde tinha sido baleado. Os motivos de preocupação aumentaram sem se saber o que teria ocorrido, levantando-se entre os soldados várias hipóteses; a mais pessimista é de que teria sido levado pelos tanzanianos, o que, mais tarde se veio a comprovar (sendo certo que nunca mais se soube do seu paradeiro).

Já no aldeamento de Nhica do Rovuma e por ser frequente no seio daquelas forças de GEs alguém andar sempre munido de um rádio portátil e quando este foi sintonizado, ouviu-se um comunicado difundido por uma rádio tanzaniana que noticiava em dialecto Swahili:

" — As nossas forças fronteiriças abateram e capturaram um mercenário branco, de farda negra, armado de G3, que tentava penetrar no nosso espaço territorial”, alertando de seguida todos os postos de fronteira para uma iminente invasão de tropas portuguesas em face do ocorrido.

Com aquela informação oficial, ficou claro para todos, que o corpo do Furriel Guimarães tinha sido retirado do local por quem o abateu, sendo mais tarde sepultado em território tanzaniano, local que ainda hoje se desconhece mas provavelmente nas imediações da aldeia mais próxima do local, ou seja na aldeia tanzaniana de Kytaia.

Passados que são hoje 36 anos daquele acontecimento, aqui fica este testemunho (contrariando a versão oficial) que confirma a existência (para além de militares sepultados em cemitérios abandonados nas diversas frentes de batalha) de soldados do exército português desaparecidos em combate durante o conflito Colonial, que urge, por respeito pelos seus familiares que ainda hoje e debaixo de uma grande angústia reclamam o corpo do seu ente querido à muito desaparecido, mas também, para restituir a dignidade ao falecido Furriel Guimarães pelo exército português, dado que, sabendo das circunstâncias do ocorrido em 1972, não se dignou colocar o seu nome nas listagens dos falecidos em combate (8), ou ainda muito mais grave, não fazendo constar o seu nome no Panteão Nacional de homenagem aos combatentes falecidos na Guerra Colonial junto à Torre de Belém em Lisboa.

Findado aquele conflito de má memória para a juventude que nele participou e que agora, sem qualquer complexos se sucedem encontros de ex-combatentes com ex-guerrilheiros dos movimentos de libertação, seria de todo interessante que o Estado português e outras instituições; nomeadamente a Liga dos Combatentes, se interessassem por este assunto, devolvendo à pátria um dos seus filhos que jaz algures em território da Tanzânia mas em lugar incerto; devolver à sua mãe e restantes familiares a tranquilidade e o sossego merecido, assim como colocar o nome daquele ex-combatente junto aos restantes que o estado português muito dignamente homenageia e que também ele é justamente merecido.

Decerto que naquela aldeia tanzaniana de Kytaia, junto ao rio Rovuma, alguém (ex-guarda fronteiriço, ex-guerrilheiro da FRELIMO, responsáveis pela administração local da aldeia naquele tempo e membros da população local) se lembrará daquele acontecimento ocorrido em 15 de Novembro de 1972 e decerto se lembrará onde o corpo terá sido sepultado, localizá-lo, para uma possível exumação e o regresso à pátria dos seus restos mortais.

Quando falo sobre este assunto com o meu amigo ex-Furriel Miliciano Pinto da Companhia de Caçadores 3309, mas que na altura comandava os GEs 212 em Nhica do Rovuma a que pertencia o Furriel Guimarães, vejo nele as lágrimas inundarem-lhe o rosto quando se recorda daquele dia, ou quando refere que um dia quis pelo telefone contar à mãe do Guimarães (na altura professora na Escola Secundária de Fafe) o que verdadeiramente ocorreu e que o seu filho não era nenhum desertor mas sim um desaparecido em combate, mas que alguém, do outro lado da linha, funcionária da mesma escola que atende o telefone e se apercebe da noticia, desabafa:

“ — Não me diga que o filho da Srª Doutora vai aparecer!”

Notas:

1 - Grupos Especiais, essencialmente formados por militares africanos mas comandados por graduados oriundos das Companhias do exército vindas da Metrópole.

2 - Filipe Manuel Cardão Pinto, ex-Furriel Miliciano NM 14172170 da Companhia de Caçadores 3309 e comandante dos GES 212, estacionados no Aquartelamento de Nhica do Rovuma.

Foi graças ao seu depoimento que foi possível elaborar este documento.

3 - Terreno de cultivo.

4 - Aldeia situada no sul da Tanzânia junto ao rio Rovuma.
5 - Frente de Libertação de Moçambique.

6 - João Manuel de Castro Guimarães. Furriel Miliciano NM 12619071, natural da cidade de Fafe.

7 - Designação atribuída a Portugal no período colonial.

8 - O único documento onde o seu nome consta é num caderno intitulado “Os que não voltaram”, editado pelo jornal Expresso edição nº 1122, no dia 30 de Abril de 1994, mas sem fazer referência às causas da sua morte.

Carlos Vardasca
Ex-Soldado Condutor NM 15263570 da Companhia de Caçadores 3309
(estacionada no Aquartelamento de Nangade)

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