domingo, 7 de novembro de 2010

M277 – Como era ser RANGER entre 1960 e 1974, pelo RANGER José Gonçalves

Como era ser RANGER entre 1960 e 1974, pelo RANGER José Gonçalves

Hoje apresenta-se mais um RANGER do 2º Curso de 1973, neste blogue, que cumpriu a sua comissão militar na Guiné – Gadamael e Cufar -, como Alferes Miliciano, na Companhia de Caçadores 4152/73.
Com a sua autorização publicamos a seguinte mensagem, que pode ser também vista no mais completo blogue sobre a catarse da frente de guerra da Guiné (http://coisasdomr.blogspot.com), que os portugueses travaram entre 1962 e 1974, em África:O que era ser ranger entre 1960 e 1974?
Amigos e Camaradas de armas,Ultimamente tenho estado a pensar nas condições e formação militar que a nossa tropa tinha para enfrentar, um inimigo com uma experiência profunda do terreno, armamento melhor e uma experiência que em alguns casos era superior a 10 anos de combate, assim como uma cultura e formação de guerreiro.
Acho que já aqui foi escrito que, para certas tribos na Guiné, um homem, para ser homem, tinha que beber por um crânio humano.
Como todos nós sabemos, os nossos soldados, na sua maioria, eram agricultores, pedreiros, pastores, etc. e iam para a guerra com cerca de 6 meses de treino e os oficiais e sargentos milicianos com cerca de um ano de instrução e uma idade muito perto dos 20 anos.
Na minha opinião este treino era absolutamente inadequado, principalmente quando era administrado por pessoas que não tinham vontade, capacidade nem conhecimentos para o fazer como era o caso dos milicianos.
Muitos dos oficiais milicianos eram recrutados no curso de sargentos milicianos e não tinham idade e, ou, maturidade suficiente para assumirem as responsabilidades de comando. 

Vejamos: um alferes miliciano, que era responsável por administrar uma recruta e depois a especialidade aos soldados que eventualmente iam consigo para a guerra, aprendia o “ofício” de militar instrutor e comandante em 6 meses (dos quais 3 eram para a sua própria introdução no Exército e os outros 3 para frequentar um curso intensivo - a especialidade), no meu caso “Operações Especiais”. 

A maior parte dos milicianos não tinha convicção para esta guerra e o seu principal objectivo era sobreviver, ele e aqueles que serviam sob o seu comando. 

Isto era totalmente demonstrado pela dedicação que a grande maioria dos milicianos dava à formação dos praças, que eventualmente iam arriscar a vida na Guerra do Ultramar. 

A formação militar era insuficiente e inadequada!Isto era sabido pelos escalões do nosso Exército e um dos remendos que tentaram fazer, foi colocar pessoal de operações especiais na formação de companhias para que, estes milicianos melhor treinados mas muito longe de profissionais, conseguissem uma melhor formação operacional nas suas companhias. 

Esta filosofia era-nos transmitida em Lamego, mas eu penso que era uma “táctica” muito mal pensada, pois os Rangers nunca foram aceites e não queriam, nem se podiam impor, aos seus demais camaradas e aos capitães milicianos que, na sua maioria, não tinham conhecimento de tal estratégia ou ignoravam-na por completo. Na minha opinião não havia metodologia implementada para esta integração.
Os 10 Mandamentos RANGER lidos todos os dias em Penude, na formatura matinal
Então o que era um Ranger nos anos da guerra?Um Ranger, era um miliciano recrutado nas fileiras dos milicianos (após prestação de testes às suas capacidades físicas e psicológicas), para serem chefes militares de elite, preparados e treinados para isso, e que no fim de cursos duríssimos e altamente exigentes (a nível de equipa, grupo de combate e companhia de instrução no C.I.O.E.), eram distribuídos pelas diversas unidades de tropa normal. 

Esta política, na minha opinião pessoal, não fazia absolutamente sentido nenhum a não ser que houvesse uma estratégia perfeitamente definida e melhor delineada, para que os conhecimentos que os Rangers adquiriam (apesar de eu os achar inadequados), fossem disseminados por todos os militares que compunham uma companhia. 

Isto estava muito longe do que acontecia na realidade, pois quando da formação das companhias, aos Rangers eram-lhe atribuídos uma equipa (no caso de um 1º Cabo Miliciano) ou um pelotão (no caso de um Aspirante Miliciano), para serem treinados para a guerra. Os outros pelotões e equipas eram treinados pelos outros milicianos que não tiveram o treino de Ranger. 

Por outro lado muitos dos Rangers que foram integrados nas companhias “de tropa macaca como alguns lhe chamavam”, com as suas melhores formações físicas e psicológicas incutidas na sua especialidade, impunham treino rigoroso e muito exigente a homens mal alimentados que, como é óbvio, os debilitava nas suas melhores aptidões físicas e pior animados nas suas capacidades mentais. 

Cometeram-se muitos disparates que, por vezes, resultaram em ferimentos graves nos soldados que estavam sob os seus comandos. 

Como devem saber, porque acho que aqui já foi referido, o treino dos Rangers era realizado, na sua quase totalidade, com bala real, mas havia muita preocupação por parte do pessoal instrutor e monitor, altamente competente em minimizar a eventualidade de provocação de acidentes. 

Vários Rangers, acabada a especialidade e integrados nas unidades a que eram destinados, decidiam incutir o mesmo treino que lhes foi ministrado em Penude, aos soldados que lhes foram destinados, mas sem as condições (alimentação, equipamento, armamento, munições e outros sistemas de suporte), que lhes permitissem que estes treinos obtivessem os sucessos desejados. 

Em diversos casos estes métodos foram completamente desastrosos devido, essencialmente, às faltas de capacidade de transmissão das técnicas e conhecimentos adquiridos, pelo lado dos instrutores e, por outro lado, à falta de poder de assimilação dos instruendos.Grande quantidade dos soldados que eram incorporados nunca se convenceram que iam lutar feroz e mortalmente contra outros homens, numa guerra (ainda por cima de guerrilha), perigosa e traiçoeira, que os poderia mutilar ou que lhes poderia ser fatal. 

Eu tive militares que foram comigo para a Guiné, que não consegui no seu período de instrução que dessem uma simples cambalhota. Ao forçá-los a fazerem isso, caíam mal e, num caso específico, um deles inclusivamente partiu a clavícula. 

Pensei na altura que talvez 50% ou 60% tivessem reunidas as capacidades mínimas (físicas e psicológicas), para enfrentar a guerra.Mas era óbvio que isso, para o poder político e militar, não era importante e o que se pretendia era carne para canhão e formar os tais dispositivos de quadrícula (linha dianteira da guerra espalhada por todo o lado na Guiné).
Era assim que se formava a “tropa macaca portuguesa”, que aguentou 3 frentes de guerra durante 14 anos, apesar de todas as vicissitudes, como treino insuficiente, fraco armamento, péssimas acomodações, transportes deficientes e uma alimentação de bradar aos céus.
Na Guiné 


Quero só acrescentar um acontecimento que se passou numa das poucas vezes que fui em patrulha, antes do 25 de Abril, e que me foi relatado por um dos oficiais do PAIGC, em Gadamael-Porto, durante uma das nossas conversas.
Qual não foi o meu espanto, quando um chefe do PAIGC nos perguntou, se nos lembrávamos de uma patrulha que tínhamos feito no dia X, pelas tantas horas, na região de Unsiré e Gadamael fronteira.
Respondemos que sim e perguntamos porque nos fazia essa pergunta.Mais espantado fiquei, quando ele nos disse que, nesse dia, tínhamos passado por uma emboscada montada por eles nessa zona.Perguntamos logo porque não abriram fogo e a resposta foi algo que ainda hoje me regozijo: “NÃO ABRIMOS FOGO PORQUE PENSAMOS QUE ERAM COMANDOS”.
Como oficial que fui, quero dizer a terminar que nunca mais quero ir para uma guerra, nem comandar ninguém, mas se tivesse que ir de novo hoje só aceitaria desde que me acompanhassem os mesmos militares portugueses desse tempo, porque demonstraram capacidades invulgares de enorme de sacrifício, tolerância e adaptação às circunstâncias mais adversas.
Espero que este texto gere novos “postes” sobre este assunto, pois considero-o como um dos pontos fundamentais, para compreendermos como conseguimos aguentar uma guerra daquelas durante tanto tempo.
Guiné > Cufar > 07SET1974 > Cerimónia da entrega do aquartelamento ao PAIGC
Cumprimentos para todos,
RANGER Gonçalves

1 comentário:

Milheirão disse...

Olá, Gonçalves. Sou o Milheirão. Lembras-te de mim? Fui eu e não o Lobo que ficou ligeiramente ferido nos olhos com o "acidente" do canhão sem recuo. Foi um prazer "reencontrar-te". Abraço grande. Tenho fotos em que estamos juntos. Tu, o Dias, o Lobo e eu Se quiseres contactar-me, o meu e-mail é casmil@sapo.pt