RANGER Eduardo Lopes
1º Curso de 1969

III – Parte
A Primeira operação

A duração prevista era de 3 dias - um dia e meio para chegar ao objectivo,
umas horas para reconhecer a zona, destruir as cubatas e lavras e outro dia e
meio para o regresso (ainda os helicópteros eram uma miragem).
O objectivo localizava-se no Quifusse, que juntamente com o Canacassala
ainda eram dois santuários da FNLA. Estas duas zonas ficavam bem no coração dos
Dembos, região do Norte de Angola, muito fértil em rios e linhas de água, numerosas
montanhas que tornavam o terreno muito acidentado e cortado por vales profundos
cobertos por densa vegetação, muitas vezes quase impenetrável. É óbvio que,
nestas condições, a progressão das Nossas Tropas (NT) para atingirem esses santuários
inimigos (IN) se tornava num autêntico calvário de cansaço e sacrifício humano.
A transposição destes demorados, cansativos e penosos obstáculos foi ultrapassada
com o aparecimento das operações heli-transportadas. Primeiro com os Alouettes
III (cada um transportava uma equipa composta por 5 homens). Cada
"leva" de homens para o objectivo era composta por uma esquadrilha de
5 Alouettes, que nas suas deslocações eram protegidos por um heli-canhão (Alouette
com um canhão de 20 mm virado para bombordo) cujo nome de código, em
transmissões, era "Lobo Mau", ou com a protecção de uma avioneta Dornier
- DO 27 – equipada com rocketes montados sob as asas.
Mais tarde, a partir de Março de 1971, entraram em acção os helicópteros
SA330 Puma, que transportavam 20 homens devidamente equipados. Estas aeronaves
tinham a vantagem de transportar mais pessoal, mas apresentava um inconveniente:
a dificuldade em aterrar em locais de mata mais fechada.
Assim, normalmente aterrava nas "lavras". A minha companhia foi
das primeiras a utilizar este helicóptero e, da primeira vez que nele fomos
transportados, ainda seguiram connosco 2 técnicos franceses da fábrica Puma.
Bem mas voltemos à operação para o Quifusse. Eram 21h00 e as luzes do arame
apagaram-se - para a saída não ser detectada -, e nós saímos do quartel em
bicha do pirilau atravessando a picada e a pista e tomando o rumo do Quifusse.
A intenção era passar os morros que marcavam a entrada na zona do Quifusse
já noite adiantada, pois tínhamos a informação de que aí existiam vigias, que
se nos detectassem disparavam um tiro de alarme, para avisar as populações e
estas se refugiarem num local pré determinado.
Assim, quando pelas 04h00 do dia seguinte, avistamos os referidos morros,
saímos do trilho e, em silêncio absoluto, colámo-nos à orla da mata que
bordejava o morro da direita, entrando no Quifusse. Sempre à espera de ouvir o
tiro que deitaria abaixo as expectativas de êxito da operação.
À medida que avançávamos mais nos convencíamos que tínhamos entrado no
Quifusse sem ser detectados, e assim foi.
Ao fim da manhã do segundo dia de operação, caminhávamos em fila indiana,
com o meu pelotão na frente, num trilho bem batido, cheio de pegadas que nos
pareciam recentes, quando ao começar a descer o pequeno morro por onde seguíamos
o homem da frente mandou parar e agachar, passando palavra para eu - que seguia
na 4ª ou 5ª posição - chegasse à frente.
Ao chegar junto do soldado mais avançado, este limitou-se a apontar em
frente e ao seguir com os olhos aquela direcção fiquei de boca aberta, pois no
morro em frente desciam por um trilho dezenas de miúdos com cerca de 14/16 anos
despreocupadamente, com grande á vontade, encontrando-se já alguns no vale que
separava os dois morros a beber água de um ribeiro.
Passada a surpresa voltei atrás e junto do Capitão Batista e o Alferes
Alves, e sugeri que me deslocasse com uma equipa para o ribeiro, na tentativa
de apanhar alguns dos rapazes "á mão", enquanto o resto do pessoal
descia o morro e emboscava no trilho, que no vale seguia paralelo ao pequeno
ribeiro.
Perante a concordância do capitão segui com a equipa do 1º Cabo Moutinho,
com todas as precauções, agachados - como tinha aprendido na instrução em Penude,
no C.I.O.E. -, em fila um a um.
Chegados perto dos miúdos, que de joelhos bebiam água no ribeiro, passamos
para fila em linha e assim caminhamos mais alguns metros, até que ficamos em
frente dos putos, apenas separados pela linha de água.
Para nosso espanto eles continuavam tranquilamente a beber água, sem darem
pela nossa presença, até que na minha ingenuidade de "maçarico"
gritei: "Entreguem-se que não vos fazemos mal!".
Os miúdos que bebiam água e os que estavam atrás, levantaram a cabeça e
ficaram petrificados a olhar para nós. Passaram-se 2 segundos, que me pareceram
uma eternidade, e perante este cenário, que parecia a imagem parada de um filme,
senti a necessidade de fazer alguma coisa e assim comecei a dizer: "Vou
contar... ", mas nem tive tempo de acabar a frase, os rapazes como gazelas,
aos saltos enormes, desapareceram todos no meio do capim.
Ali, nada mais havia a fazer, pelo que voltei para o ponto de reunião.
Dirigíamo-nos para o referido ponto, quando rebentou um intenso tiroteio, com
balas a assobiar por cima da equipa, que de imediato se colou ao chão, rastejando
na direcção de onde tínhamos partido.
Assim como começou, terminou o tiroteio.
Chegados ao ponto de encontro, já lá estava o capitão e o resto do pessoal,
que traziam dois miúdos com cerca de 12 anos pela mão.
O capitão informou-me que quando se deslocavam no trilho, junto ao ribeiro,
foram alvo de tiros a que tinham respondido com intenso fogo de G3, e que os miúdos,
apesar do nosso fogo, tinham avançado para eles apenas com facas (tipo facas de
mato) e que as NT tinham feito alguns mortos.
Viemos depois a saber que os miúdos eram acompanhados pelo Comandante da
Zona, que estava armado com uma pistola, pelo Comissário Político, também
armado com uma pistola, pelo professor e pastor desarmado, e por dois guerrilheiros
com uma arma de repetição e uma PPSH e que tinham sido eles a abrir fogo sobre
as NT.
O resultado desta acção foi dois miúdos "aprisionados" e 12 miúdos
mortos. Chegados ao quartel, o Adão e o Lopes - assim se chamavam os miúdos -,
ao verem os Unimog’s em movimento libertaram-se das mãos dos soldados, que os
conduziam, e atiraram-se para o capim (nunca tinham visto uma viatura
motorizada).
O Adão e o Lopes ficaram connosco durante um ano, dormiam e comiam na messe
dos Sargentos e todos os graduados contribuíam para lhes comprar roupa, calçado,
refrigerantes e outra guloseimas com que os apaparicávamos.
Como já sabiam ler e escrever preparamo-los para fazerem a 4ª classe.
Talvez não estivéssemos de consciência tranquila, o certo é que enquanto
estiveram connosco nada lhes faltou.
Ao fim de um ano e por ordem do Comando do Batalhão, o Adão e o Lopes foram
entregues a uma Instituição Católica do Caxito.
Sempre que nos deslocávamos ao Caxito íamos visitá-los, levando-lhes sempre
algumas prendas e dinheiro.
Quando rodamos para a Fazenda Tentativa continuamos a interessar-nos pelo
seu futuro e quando regressamos à Metrópole, estavam eles para ir para o
Seminário de Luanda para continuar os seus estudos.
O Adão e o Lopes, tínhamos
acabado de chegar da operação. Eles tinha levado uns pensos na enfermaria a umas
feridas nas pernas e ainda estavam assustados.
Eu e o Adão
O Lopes, Eu, o Adão e o nosso inseparável pastor alemão
ALGUNS INSTANTÂNEOS DA OPERAÇÃO HELITRANSPORTADA
ALGUNS INSTANTÂNEOS DA OPERAÇÃO HELITRANSPORTADA
A chegada do primeiro Puma
A esquadrilha de helis na pista e o pessoal tomando contacto com aquelas impresssionantes máquinas
As equipas seleccionando o seu helicóptero
Partindo um a um rumo ao objectivo
A esquadrilha em pleno voo
A aproximação ao solo e a preparação para a saída o mais rápida possível, não fosse haver inimigos nas redondezas
A chegada ao terreno e a saída em corrida rumo a uma máscara. Nunca se sabe o que nos espera numa aterragem
A chegada ao terreno e a saída em corrida rumo a uma máscara. Nunca se sabe o que nos espera numa aterragem
Fotografias: © Eduardo Lopes (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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