quarta-feira, 8 de setembro de 2010

M258 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - XX


ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M234 a M244, M246, M248, M249, M250, M252, M253, M254 e M257. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M234, depois a M235… M236... M237… etc. 

Manuel Godinho Rebocho2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)Bissalanca/Guiné
1972 a 1974

O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.

Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M234 a M244, M246, M248, M249, M250, M252, M253 M254 e M257:
(continuação)

POSFÁCIO / DEPOIMENTOS
1. Abel dos Santos Quelhas Quintas
  • Cumpriu uma Comissão de Serviço, nos anos de 1972 – 1973, como Capitão Miliciano de Artilharia, Comandando uma Companhia Operacional, no Sul da Guiné.
Convidou-me o autor da obra “As Elites Militares e as Guerras d’África” para escrever um depoimento sob a forma de posfácio, dirigindo a atenção sobre as minhas experiências, como combatente na Guiné.
Não foi tarefa fácil por vários motivos, a saber:
1. Relembrar assuntos dolorosos que se encontravam enterrados havia alguns anos;
2. Escrever após o brilhantismo do autor;
3. Quebrar o mito de alguém que para a Companhia Independente de Cavalaria – CCAV 8350/72 – foi um grande herói e merecedor da estima e agradecimento dos componentes dessa companhia.
Como Capitão Miliciano a comandar esta Companhia, não quero deixar de dar a conhecer, em primeiro lugar, o nome dos meus grandes formadores como militar:
· O meu Comandante do Curso de Oficiais Milicianos, o então Capitão Passos Ramos, mais tarde assassinado na Guiné, no lamentável episódio do assassínio dos três Majores;
· Os respectivos instrutores;
· O meu Comandante do Curso de Promoção a Capitão, o então Major Pezarat Correia.
A estes homens muito devo da minha formação militar e, ao primeiro, também muito devo da minha formação como homem.
Escrevendo sobre a CCAV 8350 apraz-me dizer que a sua formação se efectuou em Estremoz, com a dedicação de todos e grande abnegação dos militares, pois foi incutido no seu espírito que, quanto melhor a preparação fora do teatro de guerra, melhores hipóteses teriam de sobreviver em condições de combate.
Felizmente essa finalidade foi atingida dado que todos nós interiorizámos essa realidade.
Chegados à Guiné havia ainda uma instrução a efectuar, a chamada Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO), que durava cerca de 30 dias, instrução essa que tinha, no meu entender, duas vertentes principais:
1. Adaptar os militares ao tipo de clima;
2. Preparar os militares para se movimentarem em terrenos tão difíceis.
A CCAV 8350 não teve essa oportunidade na totalidade, pois embora existissem companhias com o IAO completo, foi a nossa que avançou para Guileje com apenas cerca de 15 dias de IAO.
Razões que a razão desconhece.
Como nunca rejeitámos uma Guia de Marcha, lá nos fomos instalar em Guileje, fizemos a sobreposição e ficámos por “nossa conta e risco”.
Foi um trabalho muito duro o que se desenvolveu para tentarmos criar insegurança às deslocações do inimigo (IN), pois todos os dias haviam actividades operacionais o que pelo menos obrigava o IN a pensar duas vezes antes de se aproximar do nosso aquartelamento.
Tudo corria normalmente. Os patrulhamentos dentro de determinados parâmetros eram efectuados e a realidade é que estávamos perante uma paz inusitada naquela zona.
Foi então criado o Comando Operacional n.º 5 (COP 5), que ficou sedeado em Guileje, para cujo Comando foi nomeado o Major de Artilharia Alexandre da Costa Coutinho e Lima.
Desde logo a actividade operacional foi alterada, pois o Comando do COP 5 determinou que se tinha de reabrir uma “picada” para o Mejo, antigo aquartelamento já abandonado pelas nossas tropas.
Os meios operacionais disponíveis começaram a ser dispersos no trabalho da picada, na respectiva protecção dos homens empenhados nos trabalhos e ainda na actividade diária e de defesa que a Companhia necessitava de efectuar.
Como se pode depreender desta análise a actividade operacional que se vinha efectuando na zona, entre o Destacamento e a fronteira com a Guiné Conakry, começou a ser gravemente afectada, o que em meu entender veio permitir uma maior mobilidade do IN e ainda uma acção muito forte por parte deste, com implantação de minas no itinerário que estávamos a reabrir.
Pouco tempo antes de ser necessário fazer os grandes reabastecimentos a Guileje, pois iríamos ficar isolados na época das chuvas, fomos sujeitos a um fortíssimo bombardeamento que nos obrigou a pedir apoio aéreo para tentarmos acabar com ele. Essa acção foi desencadeada por um só FIAT que depois de lhe ter sido dado o rumo das saídas do bombardeamento desapareceu e acabou o ataque ao Aquartelamento.
Não ouvimos o rebentamento de nenhuma bomba lançada pelo avião, nem tivemos mais qualquer notícia dele. Quase ao final da tarde, apareceu-nos o Tenente-Coronel Brito que, aos comandos de um outro avião e via rádio, nos questionava sobre o avião que horas antes nos sobrevoara e não regressara à sua base. Soubemos depois que havia sido abatido.
No dia seguinte, o Piloto Tenente Pessoa, foi recuperado vivo tendo estado empenhados nesta acção os Pára-Quedistas que vieram do Norte e a nossa Companhia, entretanto reforçada com o Grupo do Marcelino da Mata.
Este acontecimento foi um rude golpe para a nossa Companhia, pois a partir daí as colunas de reabastecimento que sempre haviam tido apoio aéreo, deixaram de o ter.
Nessa altura fui passar 15 dias de férias à Metrópole. Quando regressei e cheguei a Guileje deparo com o seguinte cenário:
· As três peças de artilharia 11,4, que estavam devidamente reguladas, tinham saído de Guileje;
· Em seu lugar havia um obus 14, (com menor alcance) e cerca de 20 granadas. Este obus não estava regulado não tendo portanto interesse como material de artilharia, mas apenas como de defesa em tiro directo num eventual ataque ao aquartelamento;
· Em Gadamael existiam mais 2 obuses 14, destinados a Guileje, mas tanto quanto me informaram, um deles estava mesmo caído ao rio Cacine;
· Já anteriormente, atendendo a que a nossa Companhia tinha dois morteiros 10,7, tinham-nos retirado um;
· A necessidade urgente de transportar o material de artilharia, as respectivas munições e todos os reabastecimentos necessários à época de isolamento que íamos atravessar.
No meio de tudo isto fomos visitados pelo General Spínola, Comandante Chefe das Forças Armadas da Guiné, que nos alertou para um eventual aumento da actividade do IN com possíveis e fortes ataques a Guileje.
Nessa visita foi-nos garantido pelo General que, no entanto, a Força Aérea iria voar para Guileje sempre que necessário, para pelo menos serem efectuadas as evacuações de feridos.
O desengano veio rapidamente. Passados poucos dias, os feridos resultantes duma emboscada, tiveram de ser evacuados pelos nossos próprios meios e um militar morreu por não ter sido possível fazê-lo chegar atempadamente ao Hospital Militar.
Como se pode depreender, depois da palavra dada pelo Comandante Chefe ter falhado, era extremamente difícil manter a moral das tropas elevada.
Há ainda a acrescentar que a CCAV 8350 não tinha médico.
O IN deu então início a um bombardeamento contínuo e de forte intensidade sobre Guileje, só abrandando quando se fez fogo de morteiro 60, para as zonas próximas do aquartelamento obrigando o IN a resguardar-se, mas foi “sol de pouca dura”.
Entretanto o Major Coutinho e Lima que se tinha deslocado para Bissau “a pedir reforços”, coisa que o Comandante da Companhia sempre fizera através dos Pilotos dos Fiats que a partir de determinada altura recomeçaram a sobrevoar Guileje, mas agora acima dos 6.000 pés, foi obrigado a regressar a Guileje. Face ao cenário desolador que encontrou, de destruição e de baixo moral das tropas, deu ordem de retirada, o que foi efectuado sem quaisquer incidentes, pois o IN não conhecia o trilho por onde seguimos e ainda não se tinha colocado naquela zona.
Era uma companhia esfomeada, sequiosa e com uma moral muito em baixo, a que chegou e se instalou em Gadamael. Fomos depois recebidos duma forma brutal pelo Coronel Pára-Quedista Rafael Ferreira Durão, que havia sido nomeado Comandante do COP 5, substituindo o Major Coutinho e Lima, que fora preso.
Julgo que a prioridade seria recuperar estes homens para poderem terminar a sua comissão com o máximo de utilidade para as nossas Forças Armadas.
Desengane-se quem assim pensar pois as primeiras palavras foram para nos vilipendiar por termos abandonado Guileje e que nos deveriam mandar reocupar o aquartelamento. Nesse momento o Coronel estava a ser um sonhador. Quando acabou de sonhar, insultou-nos da forma seguinte:
Passámos de imediato a fazer patrulhamentos e a montar emboscadas nocturnas sendo o nome de código do Comandante da Companhia, Rato 0 e os Comandantes dos Grupos de Combate, Rato 1, 2, 3, e 4, segundo o enquadramento orgânico, respectivamente.
Como qualquer estratega militar, mesmo mediano, sabia que a CCAV 8350 não estava nas melhores condições físicas e psíquicas para continuar numa frente de combate quanto era aquela.
A actividade operacional foi-se desenvolvendo com grandes dificuldades físicas de todos nós, até ao momento em que caiu sobre o Aquartelamento de Gadamael o inferno que tinha caído sobre Guileje. Só que em Gadamael não existiam as condições de defesa das existentes em Guileje e então deu-se início a mais um ciclo de enormes dificuldades.
Em 30 de Maio fui ferido, ficando a Companhia entregue e sob o comando de um Alferes Miliciano. Só a abnegação, a determinação e a coragem do Furriel Miliciano Casimiro Carvalho tornaram possível que, tanto eu como alguns outros feridos, fossemos retirados para Cacine.
Casimiro Carvalho, debaixo de fogo de morteiros e penso que de canhões sem recuo, foi buscar um motor para um Sintex (pequeno barco) no qual pudemos sair para Cacine perseguidos por fogo de morteiro. O Furriel Carvalho tinha a especialidade de Operações Especiais e foi o elemento mais operacional da CCAV 8350. Este homem nunca virou a cara a qualquer dificuldade e foram muitas e enormes as que vieram a seguir.
Depois de muitas incertezas consegui chegar ao hospital a Bissau sendo no dia imediato evacuado para o hospital da Estrela em Lisboa onde fui recuperado em termos físicos, ficando embora com uma deficiência valorizada em 41% e com os problemas psíquicos que nunca mais me abandonaram.
Aqui fica o meu testemunho, a corroborar o que está defendido na obra de Manuel Rebocho.

(continua)

Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados

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