domingo, 12 de setembro de 2010

M260 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - XXII


ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M233 a M244, M246, M248, M249, M250, M252, M253, M254, M257, M258 e M259. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M234, depois a M235… M236... M237… etc.

Manuel Godinho Rebocho

2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)Bissalanca/Guiné

1972 a 1974


O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.

Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M233 a M244, M246, M248, M249, M250, M252, M253 M254, M257, M258 e M259:

(continuação)

POSFÁCIO / DEPOIMENTOS

3. José Pereira de Casimiro Carvalho
Cumpriu uma Comissão de Serviço, nos anos de 1972 – 1974, como Furriel Miliciano de Operações Especiais, Comandando uma Secção Operacional, no Sul da Guiné.

Numa análise global do trabalho efectuado pelo autor da obra “As Elites Militares e as Guerras D’África” e escudando-me na minha fraca aptidão literária, falando sim o cidadão comum, apraz-me dizer enquanto parte integrante do teatro de guerra que foi a Guiné, no qual fui “convidado” a intervir, que a verdade tarda… mas vem. Pois, após mais de trinta anos, durante os quais me senti como parte da história, que todos queriam esquecer, tal qual o Vietname para os americanos, o autor, qual grilo falante para o Pinóquio, veio relembrar fantasmas do passado, mas também fazer-me acreditar. Estes casos, normalmente, são avivados à posteriori, quando os intervenientes já não estão presentes, ou estão tão velhos que apenas querem que os deixem em paz.

Felizmente não é o caso, e ninguém espera medalhas nem louvores, mas tão só o reconhecimento do sacrifício e da dádiva que nós, os jovens de então, que tão estoicamente lutámos até ao sacrifício supremo, que é dar a vida pela nossa bandeira e pela nossa Pátria, tão vilipendiada hoje em dia.

Ora, quis o autor pôr factos a nu e acordar certas consciências, o que quase ninguém teve a ousadia de fazer nestas décadas que nos separam de uma realidade tão dolorosa como foi a Guerra de África. Factos estes tão desconhecidos, já que o Estado Novo não os deu a conhecer ao Povo Português.

Passando em revista lapsos da minha memória e do que se dizia à surdina, a minha companhia, que era de Cavalaria, a (CCAV 8350/72), teria como destino Bigene. Mas como se dizia então, alegadamente o comandante da companhia, que teria de ir para Guileje, tinha uns “conhecimentos” e a minha companhia foi então enviada para Guileje e a outra “Somos um caso sério” foi então para Bigene.

Passámos uns meses “porreiros” em Guileje, fazendo muitas patrulhas de perímetro alargado, direccionadas para a zona entre Guileje e a fronteira com a Guiné Conakry, e sempre em caminhos novos, como nos era indicado pelo Comandante da Companhia Capitão Miliciano Abel dos Santos Quelhas Quintas. Caminhos abertos à catanada e de difícil progressão. Eram patrulhas extenuantes e que nos desagradavam muito, embora hoje reconheça que foram bastante úteis para afastar o inimigo (IN) das cercanias do nosso aquartelamento.

Para complementar esta segurança e manter o IN afastado, o Capitão e o Alferes Miliciano que comandava o Pelotão de Artilharia faziam periodicamente tiro com as peças 11,4, sobre zonas predefinidas, complementadas com batimento de morteiradas tanto de morteiro 81, sob o meu comando, como de morteiro 10,7.

Pormenorizar, não consigo, mas lembro-me que em Março de 1973 Guileje sofreu um ataque com canhões sem recuo. Não sei se foi pedido apoio aéreo. O que é certo é que vimos, para nosso gáudio, um avião Fiat G91 a sobrevoar Guileje. O Capitão falou, via rádio, com o Piloto (Tenente Pessoa) a quem indicou o rumo do local de onde o IN nos estava a atacar.

Algum tempo depois soubemos que o avião tinha caído. Nem queríamos acreditar que um jacto da nossa Força Aérea houvesse caído. Impossível, para os nossos tenros vinte anos acreditar em tal coisa, mas era verdade.

Entretanto, mobilizaram-se as tropas, para procurar e recuperar o Piloto. Vieram os Pára-Quedistas – a nossa tropa de eleição – e o grupo do “Marcelino da Mata”, tão famoso e tão famigerado.

Quando este grupo se estava a preparar para a operação de resgate, verifiquei que eles ostentavam uma chapa que dizia “OS VINGADORES OPERAÇÕES ESPECIAIS”. Fiquei tão eufórico que me ofereci para fazer parte desse grupo, tendo a anuência do Marcelino da Mata, visto eu ser de Operações Especiais. O Capitão Comandante da minha Companhia não foi em “cantigas” e não autorizou, mesmo tendo o Marcelino garantido que me traria de volta, nem que fosse às costas. A operação realizou-se; eu fui com a minha tropa, os Pára-Quedistas foram também para lá, assim como o grupo de Marcelino.

Recordo-me que andámos muito. Vimos os danos que os nossos obuses faziam nas árvores, todas escavacadas, e soubemos que os Pára-Quedistas e o grupo do Marcelino tinham resgatado o piloto. Regressámos e, ao chegarmos, o Capitão estava a distribuir cerveja em garrafas grandes, a que chamávamos “Bazookas”. Eu peguei na minha e bebi sofregamente enquanto o Capitão Quintas dizia “…bebe devagar, Carvalho, ainda te faz mal”. Eu, sem água havia muito tempo, com sede, cansado, e próprio dos meus vinte anos, não liguei e... “pumba”... caí redondo.

Entretanto fui nomeado para comandar os reabastecimentos a Guileje, para o longo período das chuvas, durante o qual ficávamos isolados, completamente cercados de água. Estes abastecimentos eram desembarcados em Cacine, de onde eram transportados em pequenos barcos para Gadamael, e daqui em viatura para Guileje.

Por esta razão encontrava-me em Gadamael quando a minha Companhia abandonou Guileje. Em Gadamael, através da Estação de Rádio “Conakry”, ouvíamos a “Maria Turra”, programa de acção psicológica da Guerrilha, segundo a qual já tínhamos “levado” em Guileje, e íamos “levar” em Gadamael. Que profecia maldita… meu Deus!

Foram pedidas urnas ao Comando em Bissau e vieram muitas mais do que as supostamente necessárias. Alguns, morbidamente, marcámos com o nosso próprio nome a que queríamos para nós. Mais tarde verificámos que não chegaram!

Posteriormente, e depois de um forte bombardeamento, vi um camarada tombado. Peguei nele e debaixo de morteirada intensa levei-o às costas para a enfermaria. Só aí verifiquei que faltava meia cabeça e os miolos escorriam-me pelo ombro abaixo. Deixei-o então nessa enfermaria, onde eram depositados os corpos e regados com creolina por causa da pestilência dos cadáveres.

Numa dada altura, ouvimos mais uma vez as “saídas” das granadas de morteiros a serem disparados pelo IN e tínhamos entre 22 e 23 segundos para nos pormos “a salvo” até as mesmas caírem em cima de nós; e uma coisa que nos espantava era que se corríamos para o cais, as granadas caíam no cais, se corríamos para o parque auto, as granadas caíam no parque auto, … certinho; eu corri para uma vala (não havia abrigos).

Já lá, senti as costas molhadas. Pus a mão e veio banhada em sangue. Então gritei: “estou ferido”. Fui socorrido e mais tarde evacuado, por uma Patrulha da Marinha para Cacine onde fui tratado, sem necessidade de ir para Bissau, e onde me disseram: “a tua guerra acabou, ficas aqui a comandar a secção de limpeza”.

Em Cacine ouvia-se o “embrulhar” (ser bombardeado) do quartel de Gadamael, de onde chegavam os feridos, que eu ajudava a tirar dos barcos e levava ao colo, vindo um deles a falecer. Fiquei tão transtornado que me equipei, peguei na minha arma que trouxera de Gadamael, aproximei-me de um Oficial e disse-lhe “ou me manda para junto dos meus camaradas ou estouro tudo por aqui.” Esse oficial deu ordens, imediatamente, para que me transportassem de barco para Gadamael. Lá fui, sempre a olhar para as margens à espera de um ataque.

Cheguei a Gadamael, e que confusão! Era tão indescritível que só digo: não havia cadeia de comando, não havia comida, matavam-se patos pequenos dos nativos e cozinhavam-se nuns bidons, com muito piripiri à mistura, e bebia-se vinho que escorria dos barris de 200 litros, esventrados por estilhaços dos ataques do IN.

Lembro-me que após um dos muitos ataques a Gadamael, saiu um Bigrupo de Pára-Quedistas. Passados alguns momentos, ouviu-se um forte tiroteio e viam-se os RPG’s a estourar no ar, durante o que me pareceu uma eternidade. Era uma forte emboscada inimiga.

Regressaram os Pára-Quedistas com dezasseis feridos, um dos quais um Sargento com uma bala numa perna que, olhando para o material capturado ao IN, sorria. Fantástico! Que moral!

Lembro-me que, noutro momento, estávamos a ser atacados com canhões sem recuo e que apareceram os Fiats, picando como nos filmes. Largaram uma bomba e até no quartel de Gadamael os corações tremeram com o som do seu rebentamento – pudera! Os ataques dessa zona acabaram. A bomba havia atingido a base inimiga em “cheio”.

No seguimento dessa minha odisseia, lembro-me que quando éramos atacados o pessoal fugia para o mato, onde era mais seguro estar, e que um Oficial Miliciano formou, em 4 de Junho, uma patrulha “ad hoc” para sair para a zona do antigo aeroporto, onde se presumia haver forças do IN. Saiu uma “espantosa” Força de 16 ou 17 militares, incluindo eu, e da qual faziam parte dois “putos” que tinham vindo voluntários para a tropa. Como tinham chegado à Província havia pouco tempo, obviamente dispensei-os de saírem. Após nos termos afastado cerca de 1200 metros do Quartel caímos numa emboscada e morreu o Alferes Branco, o Cabo Neves, o Anselmo e o Hipólito, além de ferimentos no “pica” homem nativo que ia à frente a picar o chão para detectar minas. Aguentei o fogo com outro camarada e, quando se acabaram as munições fugimos para o quartel onde chegámos num estado psíquico e físico indescritível. Os Pára-Quedistas saíram em socorro dos meus camaradas e regressaram com os corpos, violentados duma forma que me abstenho de transcrever aqui. Eu infelizmente fui autorizado a ver os corpos em cima de uma Berliet.

Hoje sei o nome do que padeço, Stress pós traumático de guerra. E a minha família…

Aqui deixo uns retalhos da vida de um militar de Operações Especiais, no Sul da Guiné, durante os primeiros seis meses do ano de 1973, com os quais e a partir deles compreendo a obra de que tenho a honra de escrever parte do posfácio.

Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados

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