Com a devida vénia e agradecimento, transcrevemos na íntegra
o artigo publicado no passado dia 10 Julho de 2010, jornal Diário de Notícias,
com o título "Grande Reportagem. Operações Especiais. Os soldados da
noite, da autoria do jornalista ABEL COELHO DE MORAIS.
Grande Reportagem
Operações especiais
Os soldados da noite
por ABEL COELHO DE MORAIS
10 Julho 2010
Fotografia © Leonel de Castro
Popularmente conhecidos como os 'rangers' de Lamego, os
militares do Centro de Treino de Operações Especiais (CTOE) - unidade criada em
1960 - são preparados para missões de alto risco e grande complexidade,
actuando sempre a coberto da noite: a melhor das camuflagens, como costumam
dizer.
Num curso de seis meses, mais um ano a ano e meio de
exercícios contínuos, os efectivos do CTOE têm, primeiro, de se conhecer a si
próprios e testarem os seus limites, antes de vencerem os desafios das missões
que lhes são entregues. O DN esteve com os oficiais, sargentos e praças que
devem permanecer anónimos e ser capazes de chegarem invisíveis à beira do
inimigo.
"Segunda-feira era o pior dia da semana. O terror era
grande na formatura da manhã quando os instrutores chamavam os nomes dos que
tinham sido eliminados. Alguns começavam a chorar quando era dito o nome deles.
Era o pior momento para nós.
Depois disto, o que aparecesse pela frente era
preferível." Rui, 45 anos, hoje sargento-ajudante, recorda as primeiras
semanas do curso de Operações Especiais feito em 1986 como praça. Tudo o que
então lhes aparecia pela frente era intenso esforço físico, escasso descanso,
muita fome, muito frio - constantes num curso em que "tudo o que se vive e
se passa aqui dentro nos marca muito".
O mesmo curso que Rogério, de 23 anos, iniciou este ano
depois de "um amigo que está no exército normal" lhe ter falado dos
"rangers de Lamego" ou Centro de Tropas de Operações Especiais
(CTOE), designação actual da unidade criada em Abril de 1960 como Centro de
Instrução de Operações Especiais (CIOE).
Rogério informou-se e decidiu "aproveitar a
oportunidade antes que ela fugisse". Depois de 12 semanas de recruta
normal, o curso principiou de manhã bem cedo com uma prova de ginástica de
aptidão militar. "Foi uma sensação de angústia, desorientação. Houve
camaradas que desistiram logo", conta este finalista de engenharia informática,
para quem "passar o dia todo atrás de uma secretária" era "muito
complicado".
"Dorme-se sempre com a mochila, e pode não acontecer
nada... ou acontecer", afirma Rui C., de 27 anos, hoje tenente e instrutor
no aquartelamento de Penude, uma das três instalações por onde está sediado em
Lamego e seus arredores o CTOE, que assumiu esta designação em Julho de 2006.
Em Penude ministra-se o essencial da formação; no
aquartelamento da Cruz Alta encontra-se o destacamento operacional, enquanto o
comando está sediado no antigo Convento de Santa Cruz, no centro da cidade.
Testar os limites
O inesperado e a pressão são constantes. De dia e de noite.
"Fui forçado a aprender a comer muito depressa", recorda Rogério, uma
refeição inteira em menos de cinco minutos. Noutros momentos do curso, Rogério
não recebe mais do que uma bolacha ou uma peça de fruta para o dia inteiro. Mas
os exercícios nunca param.
Assim como não há regras sobre a alimentação "nunca há
certeza sobre o tempo de descanso". A finalidade é testar os "limites
físicos e psíquicos, a que nunca tínhamos sido levados antes - e ultrapassá-los",
salienta um outro instruendo, Daniel, de 25 anos, natural de Lamego, que
frequenta o curso de Operações Especiais para oficiais e sargentos do Quadro
Permanente. Curso este ainda mais exigente: "Aqui testa-se a capacidade de
comando, obtêm-se ferramentas de liderança; por isso tem de ser mais complexo e
exigente", ainda que "exista uma melhor preparação devido à nossa
experiência militar", diz Daniel, recentemente saído da Academia Militar.
"Há muitos jovens que chegam aqui a pensar que as Operações
especiais são uma espécie de desporto radical. Isto é radical, mas não é nenhum
desporto", sublinha Rui, que tomou a decisão de fazer o curso aos 20 anos.
Um curso que seu pai, militar de carreira, fizera nos anos 60 na sua primeira
fórmula. "Muitos vêm só para ver como é. Mas quem vem com uma ideia
definida vai até ao fim", defende Carlos, de 48 anos, sargento-chefe.
Este é o segredo para cumprir o curso com sucesso. "Não
se consegue ser de Operações especiais se não se quiser ser do princípio até ao
fim", sustenta o coronel Sepúlveda Velloso, de 49 anos. Para o comandante
do CTOE desde 2008, é "característica das Operações especiais e de todas
as forças de elite testar os limites do indivíduo, para saber com o que se pode
contar das suas potencialidades individuais". Como o poder de decisão que
se testa ao lançar-se à água do alto de uma ponte numa noite escura.
Mas não é apenas isto. "É tipicamente nosso fazer ver
ao indivíduo quais as suas potencialidades, ele deve conhecer-se a si próprio
para ganhar a autoconfiança que lhe permita, quando vai para uma missão,
identificar situações idênticas que já viveu e não se desviar da tarefa a
cumprir." Por isso se testa também a capacidade de o militar sobreviver
apenas com os recursos da natureza, edificar abrigos e esconderijos, nadar,
correr, marchar e voltar a nadar, a correr e marchar - seis, doze ou 24 horas
consecutivas.
O militar de Operações especiais "não pode deixar que
as paixões ou as emoções afectem o seu desempenho", conclui o coronel
Velloso na síntese sobre um curso em que as taxas de sucesso e fracasso falam
por si. Números para os últimos dois anos mostram que a média de insucesso ou
desistência não ultrapassa os 5% para os oficiais e sargentos do Quadro
Permanente; em contrapartida, no curso de praças e de oficiais e sargentos
milicianos situa-se entre os 50% e os 60%. "O instrutor Rui C. defende que
esta disparidade resulta da "ausência de qualquer experiência a nível
militar".
Longa preparação
Todos vivem nas mesmas condições, confrontados regularmente
com elevadas exigências. "Se o instruendo passar por todas as fases em que
é testado, quando chega ao campo de batalha tudo se torna mais fácil",
sublinha o Sargento-Chefe Carlos, que recorda uma máxima dos seus tempos de instrução:
"Quanto mais o suor no campo de treino, menos o sangue no campo de
batalha."
Uma máxima que ganha toda a actualidade nos teatros de
operações onde os efectivos de Operações especiais são empregues: do
Afeganistão à Bósnia e ao Kosovo, de Timor-Leste à Guiné-Bissau. Por isso, além
dos seis meses do curso, segue-se um ano a ano e meio de intensos exercícios em
cenários idênticos aos de situações de conflito real até o militar estar
preparado para o terreno (ver texto nas págs. seguintes).
Carlos afirma que esta longa preparação é absolutamente
indispensável por duas razões. A primeira é que "os teatros de operação
são cada vez mais sofisticados e complexos" e, claro, "o inimigo
nunca deve ser subestimado". A segunda relaciona-se com as pessoas: "A
juventude é mais frágil hoje do que no tempo da minha instrução", desde há
"uns 15 anos que o facto começou a tornar-se evidente". Algo que
preocupa Carlos, oriundo de uma família com passado militar. Um factor que não
considera determinante. "Há muitos militares do CTOE que não têm quaisquer
familiares nas forças armadas, ou que não tiveram no passado."
O próprio universo de recrutamento tem hoje "outras
características", explica o comandante do CTOE, "há grandes
diferenças entre o presente e o passado. A rusticidade, a motivação, a
disciplina, que eram características quase cutâneas no passado, hoje estão um
pouco perdidas". A origem social e geográfica dos recrutas é também
diferente. Ainda nos anos 80, a maioria dos instruendos, em especial no curso
de praças, era proveniente das regiões acima do Mondego - "o que não quer
dizer que não tenha havido sempre pessoas de todo o Portugal continental e das
Ilhas", clarifica o coronel. Um retrato fixado pelo Sargento-Ajudante Rui:
"Os homens que aqui apareciam já trabalhavam, fosse nas obras ou na
agricultura. Se calhar não tinham os vícios de agora, eram mais robustos, mais
modestos."
A unidade de Lamego também atrai pessoas a sul do Mondego.
Caso do seu actual comandante. Natural de Lisboa, frequentava a Academia
Militar em 1982 quando, "por acaso", soube da existência de uma
unidade com aquilo que classifica como "uma componente operacional
interessante, com técnicas e tácticas pouco convencionais". O então cadete
acredita que esta era a unidade "que se adequava melhor" à sua
personalidade. Após o curso de Operações Irregulares, também ministrado no
então CIOE e obrigatório para oficiais e sargentos do Quadro Permanente, começa
a frequentar o curso de Operações Especiais em Janeiro de 1986.
Esta é a época em que o curso de Lamego era obrigatoriamente
completado com o dos Comandos, e vice-versa. Privilegiavam-se, então, as
técnicas de sobrevivência, patrulhas de longo raio de acção, montanhismo,
tácticas irregulares. É o tempo da Guerra Fria. Hoje, nota o comandante do
CTOE, "predomina o combate a curta distância, devido à natureza das
ameaças actuais"; o curso é, por outro lado, "também muito mais
técnico".
Mas, insiste de imediato, "sem o valor do homem não se
consegue operar a máquina". A componente tecnológica é "hoje muito
importante no ambiente operacional, no armamento, para a recolha de informação,
para a observação", diz o coronel Velloso, que volta a insistir na ideia
de que "atrás de uma máquina está sempre um homem".
"Incentivos musicais"
O tempo de curso do coronel Velloso foi "extremamente
intenso", com riscos, inevitáveis durante a instrução. Uma vez, "na
travessia de um curso de água, ia lá ficando". O responsável do CTOE cita
esta situação para sublinhar que "há sempre muitas oportunidades em que se
pode morrer". E não tem de ser numa situação de combate. Apesar da
especial atenção consagrada à segurança. Hoje há sempre pessoal de enfermagem a
acompanhar os exercícios mais perigosos.
O nível de risco e a dureza da preparação em Lamego não
foram suficientes para fazerem adormecer o sentido de humor dos camaradas de
curso do coronel Velloso, e dele próprio. "Éramos nove perto do final.
Quando punham as músicas de acção psicológica, vínhamos para o corredor com mochila,
G3 e tudo, e começávamos a dançar" - "o meu tempo na instrução foi o
mais divertido que passei na tropa", recorda com um sorriso.
Os bailes improvisados naquela época estão longe de ser o
objectivo dos "incentivos musicais", como os classifica o instruendo
Rogério. A finalidade é criar arritmias e pressão psicológica. Ouve-se apenas
um "trecho de uma composição, durante três horas, se for preciso",
diz o antigo informático, num tom de quem se habituou a gerir a situação.
"Mas pode ser só 20 minutos, a duração varia de noite para noite; pode nem
haver." Nunca há certezas sobre nada - como é da natureza da guerra -, nem
sobre o tempo de descanso.
Um descanso passado em camas sem lençóis ou cobertores, onde
se dorme fardado, com mochila às costas e arma ao lado. Só se tiram as botas.
Isto porque os instruendos têm apenas três minutos para estarem na parada ao
grito de "forma".
Um descanso que se aprende a aproveitar em qualquer
circunstância. "Até numa caminhada. Segurava a mochila do da frente e pedia
ao de trás para me orientar quando mudássemos de direcção. Pelo menos, o
cérebro desligava", lembra o comandante do CTOE.
A parelha
Para Operações Especiais só se vai por escolha e motivação
pessoal. Como sucedeu com Rogério, Daniel e Rui C., entre os mais recentes.
Este, "desde os 15 anos que queria ser de Operações Especiais".
Natural de Lamego, lembra-se de ver passar os efectivos do CTOE na cidade e de
se imaginar "oficial de infantaria". Por causa do limite de idade, achou
"mais indicado ir para a Academia Militar". Aqui, descobre que
"os melhores instrutores são todos de Operações Especiais". Toma-os
como modelo. Mas evita informar-se sobre o curso. "Queria que fosse uma
surpresa", diz enquanto caminha na parada de terra batida de Penude. Só
tomou uma precaução: "Engordei 15 quilos para aguentar o esforço."
Um esforço em que o "mais difícil" foram as provas
individuais, a maioria colocada na primeira parte do curso. "O pior é
quando se está sozinho", nota Rui C.; percepção partilhada por Rogério:
"Sozinho, ninguém acaba o curso." Por isso, as Operações Especiais
assentam na parelha. "A parelha é um instrumento de sobrevivência e
segurança", considera Daniel. Algo que Rogério explica nestes termos:
"Ele vai sofrer por minha causa e eu vou sofrer por ele. Se fizer asneira,
ele paga por isso, e vice-versa". "A nossa parelha é mais do que um
irmão", diz Rui C. "Com a parelha, conta-se sempre", resume o
sargento-chefe Carlos.
O que não impede momentos de fraqueza no passado e no
presente. "Na minha época, o que nos deixava em baixo era a ausência da
família, dos amigos", recorda o tenente. A propósito dos novos recrutas,
diz que estes só parecem "ter saudades dos telemóveis", que
obviamente lhes são retirados.
"Tirando raras excepções, houve uma época em que quase
todos os dias pensei em desistir", confessa Rogério. No sentido oposto,
Daniel assegura nunca ter pensado nisso, reconhecendo, contudo, o carácter
"único" da unidade: "Costumo definir objectivos na vida, e estar
nas Operações Especiais é o topo da minha carreira nesta fase."
Rui C. reconhece que o curso é um "desafio
especial", que enfrentou bem devido ao "espírito muito forte"
vivido na sua época como instruendo. Se não se viver esse espírito, insiste o
tenente, será difícil concluir um curso que se começa no Inverno e se termina
no "inferno", referência às semanas finais em que tudo está em jogo.
Nestas se concentram as "provas míticas dos
rangers", aquelas em que o indivíduo e parelha vivem como se estivessem no
terreno. E podem acabar presos, com tudo o que implica ser prisioneiro de
guerra. Mas, passadas estas provas, pouco falta para receber a boina verde.
(Por motivos de segurança, à excepção do comandante, os
entrevistados são referidos pelo primeiro nome e não se publicam as suas
fotografias).
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