De Alcácer Quibir às Cortes de Tomar de 1581,
na versão contemporânea
“Mas sirvo-o com a pureza de minha obrigação, de que resulta não me moverem mercê prometidas que foi o laço em que cahio Portugal; porque fora do que devo nenhuma couza me poderá mover a troco de vender a honra, e lealdade, que não tem preço, nem há nenhum que eu tanto estime: lição que a muitos fidalgos esqueceo”.
Carta que escreveu Cyprian de Figueiredo de Vasconcelos, Governador das Ilhas dos Açores, a Filipe II de Espanha, em 13 de Março de 1582.
Aos portugueses actuais, onde se inscrevem os leitores, eventualmente, crentes no silogismo de que a “História não se repete”, poderá parecer estranho e até deslocado, o título que dei ao escrito. Estou até a imaginar algum abanar de cabeça e sorrisos de ironia.
De
facto a História não se repete, no sentido em que todo o palco e personagens em
que ela se desenrola muda com o rolar dos tempos. Mas isso não impede que
outras situações, vividas ou criadas por outras pessoas e com outros (ou os
mesmos), métodos, não deem azo a que objectivos idênticos não possam ser
atingidos em tempos diferentes.
Acreditem
que as 18 invasões militares que o Portugal europeu já sofreu dos seus
vizinhos, nestes últimos oito séculos, foram todas diferentes. Embora nos
pareça, que os seus objectivos não andariam longe uns dos outros …
Infelizmente
constatamos com demasiada frequência, que a generalidade dos políticos que têm
desfilado pelas cadeiras do Poder se esquece (quando o sabem), que há duas
coisas que são a base da Geopolítica: a Geografia e o Carácter dos povos.
A
Geografia, por mais que isso nos custe aceitar, não muda; e o Carácter dos
povos muda muito pouco e ao fim de muito tempo.
Pensamos
que após este “aperitivo”, inicial, ficámos com o estômago mais aconchegado
para saborear o “conduto”. Esperando apenas, que este não seja indigesto …
Vejamos
então, as analogias e as diferenças, que o título nos sugere.
A
chamada “Descolonização Exemplar”, convenientemente rebaptizada mais tarde de
“possível”, foi o novo Alcácer Quibir português.
A
Descolonização foi má para todos e não teve em termos geoestratégicos,
sobretudo para os interesses portugueses, uma única coisa positiva.
O
Ocidente perdeu, pois viu-se reduzido em apoios políticos e em ganhos comerciais,
já que os novos países entraram em declínio e guerra; não ganharam os
marxistas, pois os ganhos que obtiveram no curto prazo foram perdidos com
custos pelos erros cometidos. Além do que, logo depois, o comunismo ficou
desacreditado como doutrina e entrou em decomposição em todo o mundo; perderam
os países do Terceiro Mundo, pois apenas viram juntar mais pobreza àquela que
já tinham; perderam, as populações das antigas províncias ultramarinas, já que
a situação foi durante muitos anos e ainda é, nalguns territórios,
catastrófica. Houve guerra, fome, doença, corrupção, paralisação quase total da
vida produtiva, ditadura, desrespeito pelos direitos humanos, negação da
liberdade, endividamento galopante, desperdício de recursos, exploração
estrangeira, essa sim neocolonial, racismo, etc.
Finalmente
perderam os portugueses que restaram, pois a Nação ficou diminuída e
desmoralizada; Portugal deixou de ser um actor com peso na cena internacional;
a “Consciência Nacional” ficou profundamente abalada e ainda não recuperou; o
Estado Português passou a comportar-se como se não tivesse interesses próprios
e ainda hoje hesita quanto a objectivos nacionais permanentes. O fim da guerra
não trouxe a tão almejada riqueza, que se criaria com os recursos afectos àquela.
Ao contrário, despenderam-se parte das reservas de ouro e divisas e cada
português passou, de repente, a dever 500 contos ao estrangeiro. Em 1975, com o
País à beira da guerra civil, cerca de 700 000 residentes em África (perto de
9% da população), metropolitana regressaram à parte europeia de Portugal, com
todo um cortejo de problemas que, por “milagre” de solidariedade nacional, se
acabaram por resolver sem crises de maior. Portugal perdeu a maior parte da sua
liberdade estratégica e os portugueses ficaram enfraquecidos e divididos como
comunidade.
O
Alcácer Quibir de 1578 tem uma diferença fundamental, relativamente ao Alcácer
Quibir de 1974/5. D. Sebastião quando passou a África queria retomar a
iniciativa e o retorno a raízes antigas. Tinha um projecto político-religioso
de actuação, consubstanciado numa análise estratégica (como se diria hoje em
dia) de contenção do Turco para ocidente.
Sendo
razões discutíveis (como são todas), não se lhe pode negar patriotismo, um
substrato estratégico e ideal de cruzada. O rei poderia ter sido imprudente (e
foi-o, por certo), por não ter acautelado a sua descendência, por se ter
exposto em demasia e não seguir o conselho de alguns experimentados capitães, e
arriscar tácticas para além do necessário.
Mas
a sua bravura e sacrifício redimiram as suas faltas e caso tivesse ganho a
batalha – o que esteve por pouco, hoje seria um herói nacional e a História de
Portugal e da Europa seria provavelmente muito diferente.
A
Descolonização, por sua vez, foi uma retirada de pé descalço, que nos
envergonha, onde nada foi acautelado, nem a Honra, nem a fazenda, nem a vida e
a segurança de ninguém e onde se passaram cenas militarmente deploráveis, que
para sempre mancharão a já quase milenária História das Forças Armadas Portuguesas.
E
para tantos que, hoje em dia em Portugal, se assanham em perseguir e julgar
Pinochet e Milosevic, por exemplo, bem fariam em preocupar-se mais em encontrar
responsáveis por todas as desgraças que nos bateram à porta. É que parece que
tudo aconteceu por obra e graça do Espírito Santo!...
Portugal
não perdeu a independência em 1578. Apenas ficou sem a sua plena autonomia,
após o Duque de Alba ter entrado em Lisboa em 1580 e Filipe I se ter feito
coroar nas Cortes de Tomar, em 1581. Também a Descolonização de 1974/75 não
fez, por si só, a alienação da soberania. Tal só acontece quando a vontade
nacional claudica ou é esmagada por potencial muito superior.
Em
ambos os casos, a situação era muito delicada. Sem embargo, porém, a actual
parece-nos mais precária, já que em 1578 dispúnhamos de meios e recursos
espalhados por quatro continentes, que se apoiavam como um todo (lembre-se essa
coisa extraordinária e única, que foi a aclamação imediata de D. João IV, após
o 1º de Dezembro de 1640, em todas as praças portuguesas espalhadas pelo mundo,
à excepção de Ceuta, cujo Governador era Castelhano e para sempre se perdeu).
Hoje em dia apenas dispomos para os desafios contemporâneos, dos 90 000 Km2,
separados por 14 vezes a mesma área do Oceano Atlântico.
Assim,
enquanto Alcácer Quibir é uma batalha que se perdeu, a Descolonização e o que
se seguiu, arrisca-se a ser uma guerra, à partida perdida.
As
Cortes de Tomar de 1581, onde ficou selado o cingir da coroa portuguesa pelo
monarca espanhol (isto é, o mesmo rei tinha duas coroas, daí se ter chamado de
Monarquia Dual), encontra paralelo na adesão de Portugal e Espanha à CEE, em
1986.
As
Cortes de Tomar foram um acto definitivo, que tentou selar pela via legal a
ocupação militar efectuada no ano anterior (se bem que a ilha Terceira só se
viesse a render, em 1583), e a compra das consciências, que resultou na traição
da maior parte do Alto clero e da Nobreza.
Filipe
I chegou a afirmar (com razão): “este reino herdei-o, conquistei-o e
comprei-o”.
Este
rei, que para além da sua sagacidade conhecia bem o povo português (a sua mãe
era portuguesa e o mesmo acontecia com sua mulher), teve o cuidado de tudo
fazer para não o ofender, garantindo-lhe todos os seus foros e regalias – o que
quase fazia crer que Portugal mantinha a sua individualidade - política que os
seus descendentes imprudentemente não seguiram.
A
situação actual tem as suas diferenças e as suas semelhanças com a anterior,
embora nos pareça dado o rumo que as coisas têm tomado, que o desfecho vá ser o
mesmo.
Sobretudo
por causa dos termos em que a adesão à CEE foi feita, isto é, estando Portugal
na “mó de baixo”, com a sua economia destroçada, sem Poder efectivo e
traumatizado por acontecimentos recentes. Com a agravante de nos termos
preparado mal, e atirado de cabeça para a CEE, como se ela fosse um Objectivo
Nacional Permanente Histórico (que não é), em vez de a considerarmos um
objectivo nacional importante, mas transitório, o que ela devia ter sido. Ainda
com a agravante do nosso comportamento posterior, querendo mostrar serviço e
ser considerado “bom aluno”, deixando cair rapidamente todas as defesas, não
salvaguardando interesses elementares e não procurando alternativas (ex.
África, Brasil, EUA, etc.).
Finalmente,
desbaratando em grande parte os apoios comunitários – de que até agora ninguém
prestou contas ao país - não se investindo na aquisição de capacidades que nos
garantissem mais-valias para o futuro e nos permitissem viver de vida própria.
São excepção a realização de obras públicas de indubitável valor estratégico e
factor de modernidade, mas sobre as quais se deve ter em conta o reverso da
medalha: a factura futura da sua manutenção e a noção de que com eles os
estrangeiros, nomeadamente os espanhóis, porque nos são os mais próximos, podem
cá pôr os seus produtos mais depressa e mais baratos.
Nas
Cortes de Tomar a elite portuguesa entregava-se vencida, comprada e iludida, a
um rei estrangeiro; a adesão à CEE é uma atitude reactiva, de recursos por não
sabermos o que fazer mais. A elite portuguesa não estaria comprada como em
1581, mas estava seguramente ainda mais iludida e sem se julgar vencida.
A
adesão à CEE não é apenas uma opção nacional, mas internacionalista e
representa uma ruptura político-estratégica nacional, de quase seis séculos. E
assemelhou-se muito mais a uma situação de quem dá a mão a um pedinte do que a
aceitação de um igual. Neste momento não existe ocupação militar nem parece
haver ameaça militar sobre o nosso país – embora as forças portuguesas estejam
já a ser empregues, como no tempo dos Filipes, na defesa das fronteiras de
interesses que nos ultrapassam. Isto é, dizem-nos pouco, quando não nos dizem
nada.
Não
há reivindicações sobre Portugal, fazendo-se até afirmações em contrário, mas
em todos os outros campos, económico, financeiro, cultural, psicológico e
legislativo, a actividade é intensa. Não só de Bruxelas nos querem impor leis
mais duras e estranhas ao nosso carácter do que os Filipes nos impuseram, como
a tomada de posições leoninas nos campos atrás mencionados dispensa a maçada de
ter de retirar a massa consistente às culatras em paiol.
E,
em vez de umas Cortes de Tomar, definitivas, vão-se fazendo sucessivas cimeiras
europeias onde sucessivamente se aperta o cerco e onde iremos ser reduzidos à
nossa insignificância. Para quem destas coisas tem uma visão ingénua e idílica,
lembramos que, para o caso vertente, se aplica a regra do aquário: os peixes
grandes comem os peixes pequenos!
Intercalarmente
fazem-se cimeiras ibéricas (que se deviam chamar Luso-Espanholas), onde entre
sorrisos e abraços se vai fazendo tudo para não desagradar aos vizinhos do lado
(excepção feita, para já, à questão da extradição dos Etarras). E é
impressionante ver como os “nuestros hermanos”, conseguem até puxar o governo
português para as teses que defendem no âmbito das cimeiras ibero-americanas!
A
adesão à CEE implicou para Portugal dois grandes perigos relativamente a
Espanha: a diluição da fronteira (que é, aliás, a única que temos com outro
país), e a neutralização dos apoios externos de que quase sempre carecemos para
nos equilibrar face ao Poder Continental. Acresce ainda que a Espanha, ao mesmo
tempo que aderia à CEE, se tornou membro da NATO. Ou seja, Portugal está nas
mesmas alianças, militares ou não, com a Espanha, o que acontece pela primeira
vez em toda a nossa História. E se dentro de uma aliança pode ser mais fácil
dirimir conflitos, também é certo que, em caso de conflito sério, os países
aliados, por norma, deverão ser neutros. A excepção a tudo isto é a Aliança
Inglesa, “velha” de 600 anos. Mas quem é que hoje em dia, ouve falar dela?
Ora
de tudo isto deriva um perigo superior e que é este: no dia em que a União
Europeia desaparecer (não pensem que vai durar para sempre – aliás a História
da Europa está cheia de situações definitivas que demoram apenas alguns anos
…), não se sabe como é que os portugueses vão poder desembaraçar-se da União
Ibérica!
Para
completar o quadro, resta-nos falar das razões/motivações que nos levaram a
Tomar nos idos de quinhentos, e aos Jerónimos, há 15 anos.
Em
1578, o país estava em estado de choque e desorientado. Em Alcácer Quibir o
Exército fora destroçado (embora a Marinha ficasse intacta) e muitos ficaram
cativos. As famílias portuguesas, nomeadamente os nobres, endividaram-se para
resgatar os seus parentes. Faltava, por outro lado, metal nobre, para a
circulação fiduciária, havendo, porém, prata em abundância vinda das Américas,
na praça de Sevilha.
Criou-se
a ideia de que seria necessário intensificar as trocas comerciais com Castela a
fim de complementar o nosso comércio e aumentar os proventos; havia a questão
religiosa que era comum; não só a perseguição aos judeus como também o combate
ao herege; instalou-se a crença, que já vinha do tempo de D. João III, de que a
colaboração mútua entre a armada portuguesa e a espanhola nos beneficiaria na
defesa contra a pirataria berbere e a da dos países do Norte da Europa por
outro lado, as principais ordens militares, com relevo para a Ordem de Cristo,
que eram os alforges da elite lusitana, estavam reformadas e enclausuradas,
havia décadas. Finalmente, os subornos em dinheiro e em títulos nobiliárquicos
facultados pelo traidor Cristóvão de Moura (agente de Filipe I), fizeram o
resto.
Tudo
isto, como os leitores sabem, mas a muitos de nós esqueceu, era uma ilusão.
Em
primeiro lugar porque os espanhóis nunca iriam (como de resto não o fizeram),
subalternizar os seus interesses, relativamente aos de Portugal.
Por
outro lado, Portugal ficava privado de ter uma política externa própria e
Filipe I não podia, como rei de Espanha combater os seus inimigos, e como rei
de Portugal estar em paz com os mesmos!
Acreditamos
que, logo em 1588, com o desastre da Invencível Armada, se perderam as ilusões
…
A
adesão à CEE possui semelhanças bastantes. Com a Descolonização o país impôs a
si próprio uma derrota política e as FA portuguesas estavam também destroçadas,
não só por terem deposto as armas numa guerra, que estavam a ganhar … mas,
também, por lhe terem minado a hierarquia, a disciplina e a organização. O país
estava sem rumo e subitamente, empobrecido, endividado, as reservas
delapidadas, a economia no caos. Por isso a “elite” da altura, viu na CEE, a
tábua de salvação, a regeneração de todos os males, o novo “el dorado”. As
ameaças, que muitos supunham ter deixado de existir para sempre, seriam agora
tratadas e divididas com os países amigos e enfrentadas pelas organizações
internacionais de defesa.
E,
como a força da vida real, não se tem revelado tão próxima deste idílico
pensamento, logo se tornaram a levantar vozes de que na iberização e na União
Peninsular estava o segredo da nossa sobrevivência. E assim se deixa que os
espanhóis abocanhem as nossas empresas e tomem conta do comércio. Os nossos
eventuais visados já se renderam e tomaram a iniciativa. E já há ex-governantes
a denunciarem publicamente que isto se passa no seio do … próprio governo! E
para os mais duvidosos lembramos o comportamento das diferentes comissões que
supostamente deviam comemorar os Descobrimentos Portugueses, a nossa
participação na Expo de Sevilha, a venda da GALP, da PT, a inauguração da nova
ponte que liga Elvas a Olivença e a reconstrução da antiga e mais um rol
extensíssimo de outros eventos, que são bem a prova do abismo profundo onde nos
meteram e onde nos deixámos meter.
Até
o Automóvel Clube de Portugal que, recordo, é o clube português com mais
associados, fez um acordo com a empresa espanhola REPSOL, para que os seus
sócios desfrutassem de uma redução de 6$00 no preço do litro da gasolina!...
E
da última cimeira Luso - Espanhola de Janeiro deste ano, saiu um acordo em que
diplomatas de ambos os países irão estagiar nos ministérios recíprocos. É o
despudor total e absoluto.
É
mister começar a reagir (e já estamos muito atrasados) e a chamar os bois pelos
nomes. A palavra “traição” não nos parece que tenha mudado de significado. E o
que se está a passar e a aparecer com contornos bem definidos é um acto de
traição à Pátria uma falta de respeito pelos nossos avós e menosprezo pelos
interesses dos nossos filhos e netos.
E
os actos de traição sempre foram tratados exemplarmente. Assim deve continuar a
ser.
E
não venham falar em Democracia, Direitos Humanos e coisas do mesmo jaez.
Não
nos devemos confundir ou deixar confundir com "slogans".
A
sobrevivência de Portugal como entidade autónoma não tem rigorosamente nada a
ver com isso. E está para além disso.
Será
que só iremos reagir depois de termos subestimado os avisos, de estarmos
ocupados e mais uma vez termos realizado (e sentido), que as promessas e as
esperanças se tornaram vãs?; que as leis e os impostos, nos são estranhos, nos
tolheram e empobreceram?; que os falsos amigos mostraram finalmente as suas
verdadeiras intenções?; que passamos a pagar com a dignidade e até o sangue dos
nossos filhos, a “honra” de pertencer a um clube supostamente avançado em
termos materiais e espirituais?
Temo
bem que assim vá ser. É uma maldição que nos persegue e de que não temos de nos
queixar senão de nós próprios.
É
preciso, por isso, lutar por todos os meios ao nosso alcance contra o actual
estado das coisas. E é preciso começar a pôr ordem na nossa casa.
As
palavras de Ciprião de Figueiredo de Vasconcelos nunca deixaram de ser
pertinentes, e são novamente, actuais.
Publicado na Revista Militar nº 6/7 Jun./Jul. 2001
Adaptação de Conferência proferida na Universidade Lusíada, promovida
pelos Amigos de Olivença