terça-feira, 1 de maio de 2012

M445 – 38ª Companhia de Comandos – Uma lenda da Guerra do Ultramar: O meu baptismo de fogo: Morés, 8 Agosto de 1972 (16)



Esta é a 16ª mensagem, continuação das mensagens M417, 418, M422, M423, M424, M425, M426, M427, M429, M432, M433, M434, M436, M437, M439 e M442, onde se iniciou a publicação de algumas das memórias de guerra de Amílcar Mendes, Recordamos que estas mensagens também podem ser vistas no blogue: http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/

38ª Companhia de Comandos 

Uma lenda da Guerra do Ultramar 

Guiné – 1972/74 

O 1º Cabo Amílcar Mendes, 38ª CCmds. Mata de Morés. 1972. Preparado para tudo!

Emocionei-me com alguns relatos da minha primeira vez "debaixo de fogo inimigo” e decidi, por homenagem a um grande amigo, de quem irei falar mais tarde, partilhar convosco esta minha primeira experiência. Desta vez, e porque não quero melindrar ninguém, alguns nomes serão alterados. 

Acho que a partir do momento em que me ofereci voluntário para os Comandos no já longínquo ano de 1969 fiquei a sonhar como seria a minha primeira vez. 

Sonhava de olhos abertos e revia-me em todos os filmes de guerra. Imaginava-me o tipo duro que debaixo de fogo iria estar a rir-se e a desdenhar sem nenhum respeito pelo inimigo. Sonhava ser o tipo “Mata todos e volta só!” 

Isto claro na minha ingenuidade dos 18 anos cheirava a bravata, e contagiado pelos relatos que ia lendo das tropas especiais que lutavam no Vietname e que me enchiam a cabeça de fantasia. Ser dos Comandos antes do 25 de Abril, no continente, era tabu, era mistério e sedução, para os meus 18 anos. Nem eu imaginava como ira ser diferente essa realidade. 

Tenho que elucidar que, naqueles anos de guerra colonial, ir para os Comandos e conseguir sê-lo, obrigava a ter que passar por muitas etapas. Uma delas era de que mesmo com o curso de Comandos concluído e já na fase operacional, a especialidade Comando só era averbada depois de termos tido contacto com o Inimigo em teatro de guerra e nem que isso demorasse um ano tínhamos de aguentar para só depois em parada recebermos o Crachá. 

A sua entrega em parada tinha um cerimonial e onde um graduado Comando nos perguntava a berrar: 

- Queres ser Comando? - e se a nossa resposta era Sim, ele respondia: 

- Então vai e cumpre o teu dever! 

E era nesse momento que nós passávamos a pertencer a uma Família de quem nos iríamos orgulhar pela vida fora e até a morte. Bem, isto tem muito a ver com a vontade que tínhamos em ter contacto com o IN para nos armarmos em vaidosos com o crachá. 

Cheguei à Guiné no dia 29 de Junho de 1972 e depois de uns dias de folga em Bissau onde a CCmds esteve a receber o armamento, no dia 10 de Julho 1972 seguimos em coluna com destino a Mansoa. Nesse mesmo dia encontrei o meu amigo Germano, 1ªcabo cripto e um velho amigo de família com quem eu passei muitos dos serões em Mansoa nos intervalos da fase operacional. 

Lembras-te, Germano, como aquilo foi duro para mim? Lembras-te de eu regressar das operações do Morés e como desabafava contigo? 

Antes de passar ao debaixo de fogo quero aqui recordar, e tu lembras-te, Germano, pois estavas ao pé de mim, dizia eu recordar o meu primeiro contacto nu e cru com essa malvada chamada “morte” e que se me apresentou da forma mais cruel que se possa imaginar. Para o contar vou relembrar o que na altura escrevi no meu diário de guerra. 

15 Julho de 1972 

Estava à conversa com o Germano junto à nossa caserna quando ouvimos um tiro vindo do interior. Corri para lá e de repente nesse minuto ao olhar um corpo no chão vítima de um disparo acidental perdi toda a minha inocência guerreira e acho que um mundo de responsabilidade e verdade se abateu sobre os meus ombros. Foi a primeira baixa da companhia. O soldado Ilídio da Costa Moreira. 

Depois de sair para fora da caserna senti-me agoniado e vomitei e senti que tudo o que me foi ensinado no curso foi pouco para lidar de frente com a morte. 

8 Agosto de 1972 

Saí ontem para uma operação heli-transportada, a partir de Mansoa e até ao local da largada. O Germano foi dar-me um abraço. 

Desembarcamos na mata do Morés na região DANDO -QUENHAQUE-SINRE. A operação foi um golpe de mão num aldeamento onde as populações estavam sob controlo IN e o objectivo foi atacar e destruir as instalações para criar um clima de instabilidade. 

Entramos no aldeamento e estava vazio. O silêncio era impressionante, notava-se que o IN à nossa aproximação fugiu. Começamos a passar revista às tabancas e de repente ouve-se um tiro. Um furriel do meu grupo detecta um turra emboscado e mata-o. Durante a revista apanhamos diverso material de guerra e documentos. Destruímos 10 palhotas e 2 grandes celeiros. 

Saímos do aldeamento quando caímos na primeira emboscada, em guerra. 

Sofremos fogo concentrado de flagelação. Foi um momento de excitação para mim. É a primeira vez que estou debaixo de fogo do IN. Reagimos à emboscada, fomos para cima deles e saímos do local. 

Nesse mesmo momento outros dois grupos da Companhia são emboscados perto de nós e têm um morto. Foi o nosso primeiro morto em combate. O camarada Francisco José, natural de Évora. 

Começamos a andar em direcção ao local de recuperação que já não era em heli. Tivemos que andar dúzias de km em direcção a Infandre. A um dado momento desfaleci. Valeu-me uma “Coramina” para me recompor. Pelo caminho entramos noutro aldeamento onde fomos recebidos com rajadas de kalash. 

Nessa aldeia levei um banco que o meu amigo Germano (lembras-te?) trouxe para a metrópole. Chegamos à estrada, perto de Infandre, já muito tarde e a recuperação ficou para de manhã. 

Durante a noite os mosquitos iam-me bebendo o sangue todo. 

Duração da operação: 24 horas 

Resultados: 

- IN: 1 morto e vários feridos, visto terem sido encontrados vários rastos de sangue; 
- NT: 1 morto e 1 ferido ligeiro 
- Destruído um acampamento de 10 palhotas e vários celeiros 

- Material capturado: 

2 Granadas defensivas F-1 
1 Granada defensiva mod. 63 
Documentos e material diverso 

E esta foi a minha primeira vez e como foi um bocadito para o duro. 

Quero agradecer ao Germano toda a disponibilidade que nesse tempo dispôs para me apoiar. Obrigado AMIGO. 

Um grande abraço para todos os ex-Combatentes. 
Amílcar Mendes 
1º Cabo Comando da 38ª CCmds 

Texto e fotos: © Amílcar Mendes (2006). Direitos reservados. 
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Do mesmo autor veja também as mensagens: 

1ª Mensagem em 16 de Março de 2012 > 

2ª Mensagem em 18 de Março de 2012 > 

3ª Mensagem em 25 de Março de 2012 > 

4ª Mensagem em 27 de Março de 2012 > 

5ª Mensagem em 30 de Março de 2012 > 

6ª Mensagem em 31 de Março de 2012 > 

7ª Mensagem em 3 de Abril de 2012 > 

8ª Mensagem em 5 de Abril de 2012 > 
M427 – 38ª Companhia de Comandos – Uma lenda da Guerra do Ultramar: Soldado Comando Raimundo, natural da Azambuja, morto em Guidaje: Presente! (8) 

9ª Mensagem em 8 de Abril de 2012 > 

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13ª Mensagem em 19 de Abril de 2012 > 

14ª Mensagem em 22 de Abril de 2012 > 
M437 – 38ª Companhia de Comandos – Uma lenda da Guerra do Ultramar: Guidaje, Maio de 1973: Só na bolanha de Cufeu, contámos 15 cadáveres de camaradas nossos (14) 

15ª Mensagem em 24 de Abril de 2012 > 
M439 – 38ª Companhia de Comandos – Uma lenda da Guerra do Ultramar: Promessa de comando: vou retomar as minhas crónicas de guerra (15) 

16ª Mensagem em 27 de Abril de 2012 > 
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