terça-feira, 17 de agosto de 2010

M236 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - IV



Continuação das mensagens M233, M234 e M235

Manuel Godinho Rebocho2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)
Bissalanca/Guiné
1972 a 1974
O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.

Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M234, M235 e M236:

III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES (continuação)
3 – O SISTEMA DE FORÇAS: AS FORÇAS DE QUADRÍCULA E AS FORÇAS DE ELITE; TROPAS DE REFORÇO E TROPAS NATIVAS

Os efectivos militares combatentes podem ser considerados segundo o tipo de actuação: de quadrícula e de intervenção ou de elite, e segundo a sua origem: de reforço, designação atribuída às tropas metropolitanas e nativas. Ambos os tipos de actuação integravam forças de reforço e nativas. Vejamos as características principais de cada um desses efectivos militares.
3.1 – A Quadrícula Militar

Após o estalar do conflito armado, com a ocupação de determinadas localidades por parte dos revoltosos, Portugal procurou reocupar essas posições, tendo-o conseguido. Um vez feita a ocupação das zonas, isto é, a instalação das forças nos respectivos sectores, a primeira preocupação foi a de manter ou restabelecer a ordem e montar uma defesa adequada das povoações, das instalações importantes de carácter económico ou outro e de certos pontos vitais das vias de comunicação, no sentido de assegurar a salvaguarda das pessoas e dos bens, o funcionamento das instituições e dos serviços essenciais e o livre exercício de funções pelas autoridades. No início, a segurança das povoações compreendia apenas as maiores. No entanto, com o decorrer dos tempos, a quadrícula desceu até ao limite do possível, chegando a existir forças ao nível de Secção (1 Furriel miliciano com 10 Soldados), junto de pequenos povoados ou tabancas “perdidas” no meio da mata.
Surgiu, assim, a necessidade de um primeiro conjunto de forças dispersas por todo o território a controlar, destinadas a guarnecer esse território e a manter o contacto com a população — eram essas as chamadas forças de quadrícula, designadas também por forças de ocupação.
“As pequenas unidades dispersaram-se por um vastíssimo espaço. De início, nas ordens e directivas que lhes eram dadas, não se descia a grandes pormenores. Cada comandante, levado pelo pouco que sabia e pela sua muita intuição, ia experimentando soluções... Passados uns anos, não muitos, a doutrina começou a articular-se... No final da década de 60, pode afirmar-se que ela estava consolidada, tanto no vector táctico como na sua envolvente estratégica” (Barata, 1990: 12). O General Barata admite que os Comandantes sabiam pouco, mas que tinham muita intuição, o que sobreleva a componente psicofisiológicas à formação técnico-táctica. Admitindo, ainda, que foi a experiência que aferiu a doutrina.
Os efectivos de cada unidade elementar de quadrícula eram adaptados à importância do local que guarneciam, podendo ser, portanto, da ordem da Secção, do Pelotão, da Companhia, ou de unidade superior. A unidade básica, porém, era a Companhia.
As Companhias de quadrícula foram, normalmente, integradas em Batalhões e estes em Agrupamentos (dois ou mais Batalhões). A cada um destes escalões de comando correspondia um sector que integrava os sectores das unidades subordinadas. Contudo, existiram Companhias de quadrícula directamente dependentes de um Comando de Agrupamento e Batalhões de quadrícula directamente dependentes de um Comando de Zona. Noutros casos, não foi necessário constituir Agrupamentos, sendo o Batalhão o escalão mais elevado subordinado à Região Militar, Comando Territorial Independente, Comando Territorial ou Zona de Intervenção.
Apesar da sua missão ser essencialmente defensiva, as unidades de quadrícula não eram totalmente estáticas; pelo contrário, a preocupação de manter a iniciativa, a liberdade de acção e o espírito ofensivo verificou-se em múltiplas situações, em função da agressividade do inimigo e da capacidade do Comando. Uma parte dos seus elementos tinha, contudo, que ser mantida, em quaisquer circunstâncias, no local ou locais que lhes serviam de estacionamento, de forma a assegurar permanentemente a sua defesa. Mas os restantes executavam patrulhas e outras acções ofensivas ou serviam de escolta a colunas que se deslocavam em itinerários pouco seguros.
Uma quadrícula suficientemente densa em territórios de tão grande extensão, como os que Portugal controlava em África, requeria enormes efectivos e, por isso, não foi possível a montagem de uma quadrícula perfeitamente eficaz. O que impôs que a cada unidade fosse, normalmente, confiado um sector de dimensões tais, que a defesa de algumas povoações e instalações menos importantes e o contacto com a totalidade da população só poderiam ser conseguidos por elementos móveis, em constante actividade, e não por guarnições fixas, como era previamente suposto e desejável.
Uma Companhia de quadrícula podia, por exemplo, com os elementos dos seus quatro Pelotões, dispor num dado momento de quatro agrupamentos de comando de subalterno: um para garantir a defesa do local que lhes servia de estacionamento; outro permanentemente destacado na defesa de um ponto secundário; outro empenhado temporariamente numa pequena acção ofensiva; um quarto em reserva, pronto a acorrer a qualquer local. Esta situação, que se verificava muitas vezes, impunha um ritmo de trabalho extenuante que, sobreposto com a deficiente alimentação e as condições locais, clima e más condições do terreno, desesperaram a vida e a saúde de muitos militares.
Dadas as razões apontadas, as unidades de quadrícula não eram, suficientes para se conduzir eficazmente a luta contra as guerrilhas. Apesar do espírito ofensivo que as pudesse animar, elas não podiam assegurar, por toda a parte, a procura sistemática dos elementos rebeldes e a sua destruição nas zonas de refúgio, em especial nas regiões onde, pela menor densidade dos aglomerados populacionais e das vias de comunicação, a quadrícula fosse mais limitada ou até inexistente.
Tornou-se, portanto, indispensável, um outro conjunto de forças destinado a levar a efeito uma pertinaz acção ofensiva de procura e aniquilamento das guerrilhas, fosse onde fosse que estas actuassem ou se refugiassem — eram as forças de intervenção, também designadas por forças de reserva. Estas forças eram, de um modo geral, constituídas pelas tropas especiais ou tropas de elite.
Entende-se por função de quadrícula a que se traduz no desempenho de um conjunto de missões com as seguintes finalidades: assegurar a defesa de determinados pontos sensíveis; garantir a possibilidade de utilização de determinadas vias de comunicação; pesquisar constantemente notícias sobre o inimigo e obter elementos que permitissem conhecer cada vez melhor o terreno e a população; manter um contacto constante com a população, exercendo sobre ela, em conformidade com directrizes superiores, uma acção psicossocial e, quando necessário, estabelecendo medidas de controlo dessa mesma população; exercer sobre os rebeldes, igualmente em conformidade com directrizes superiores, uma acção psicológica; e hostilizar o inimigo, na medida em que os meios disponíveis o permitam.
A pesquisa de notícias sobre o inimigo e a obtenção de elementos sobre o terreno e a população exigia um trabalho constante e meticuloso das unidades de quadrícula, visto que, sem um conhecimento pormenorizado dos três factores citados — inimigo, terreno e população —, não se poderia obter, das unidades de intervenção, o rendimento necessário.
A referida missão obrigou a um contacto estreito das forças militares com a população e tornou extremamente importante a permanência dos comandos e das unidades nos sectores que lhes foram atribuídos. A primeira condição para uma acção eficaz e duradoura das forças militares sobre a população foi a sua presença, que permitiu inspirar confiança, garantir uma protecção efectiva, exercer a indispensável acção psicossocial e, quando necessário, assegurar o seu controlo. Os comandos e as tropas necessitavam de tempo para se familiarizar com a topografia local, com a população e mesmo com a organização e os hábitos dos rebeldes.
Em consequência, era vantajoso não efectuar as rendições por unidades completas, mas sim homem por homem ou por pequenas fracções, de molde a que o contacto com a população e, em especial, a confiança mútua que desse contacto resultava e o conhecimento do meio e do inimigo se não perdessem repentinamente obrigando a ser de novo adquiridos por uma outra unidade, sempre morosamente. Mas ou isto não foi possível, ou não se tentou, nem as unidades eram mantidas em sobreposição durante tempo suficiente. Pelo contrário, a substituição era imediata e assim se perdiam continuamente os conhecimentos adquiridos, voltando tudo ao princípio, sempre que havia rendição de unidades. O contacto e o bom relacionamento das forças militares com a população era o factor mais importante para o controlo da situação, o que exigia passagem de testemunho.
A acção psicossocial e as medidas de controlo da população tinham como objectivo o isolamento dos rebeldes relativamente à população, princípio fundamental da luta contra as guerrilhas. Para este isolamento contribuíam também, e de uma forma não menos acentuada, os êxitos obtidos pelas forças militares no combate contra as guerrilhas e, principalmente, o seu comportamento perante a população civil na execução das citadas medidas de controlo e em todas as suas outras acções.
Como consequência, os objectivos da ocupação militar, conjuntamente com as finalidades das medidas de ordem política, económica e social, superiormente determinadas, eram dados a conhecer à população, salientando-se que a sua cooperação com as forças militares e a aceitação das referidas medidas determinava o grau de assistência e de liberdade de acção que lhes seria dado.
Havia sempre pessoas que desejavam paz e sossego. Estas e os elementos abertamente colaboradores com as forças militares ou que se mostravam mais resistentes às acções coercivas dos rebeldes eram especialmente incentivados e protegidos. Todavia, procurava-se que a justiça, a correcção e a disciplina fossem, perante todos, apanágio das referidas forças.
As notícias sobre o bom comportamento destas espalhavam-se rapidamente e constituíram um factor importante para o estabelecimento de relações de confiança com a população civil. A lei era rigorosamente cumprida e procurava-se manter o respeito pelas crenças e costumes nativos.
Quando necessário, as forças militares garantiam o reabastecimento de víveres e vestuário, condições mínimas de habitação e assistência sanitária adequada à população. No entanto, as pessoas eram encorajadas a retomar as suas ocupações, visto que a ociosidade constituiria um factor desfavorável aos propósitos pretendidos.
As medidas de controlo, quando aplicadas, tinham sempre em atenção os prejuízos que, normalmente, poderiam causar à população. Esta tinha conhecimento das razões que levavam a pôr em execução tais medidas, que eram aplicadas com ponderação, e sem maior rigor do que aquele que a situação impunha e eram abrandadas logo que possível.
“A experiência demonstrava, porém que os Batalhões, dispersos por numerosos locais de guarnição, praticamente se limitavam a sobreviver, sendo a sua actividade, na sua essência, absorvida por preocupações de ordem logística que raramente lhes permitiam mais do que uma acção de presença local, em cada ponto ocupado e o patrulhamento dos itinerários de reabastecimento. Tudo o resto, na imensidão das zonas de acção, era terreno desconhecido ou, na melhor das hipóteses, percorrido uma, ou duas vezes, no período da comissão” (EME, B, Vol. VI, Tomo I, 1988: 497).
A título de exemplo do comportamento deste tipo de forças no território escolhi o Batalhão de Artilharia n.º 2865, o qual não foi escolhido de forma aleatória, pois tal metodologia era impossível de seguir e de interesse científico duvidoso. Não me preocupa a actuação do Batalhão em combate, por não ser essa a sua principal função, mas a forma como se instalou no terreno, se relacionou com as populações e, de certa forma, controlou o meio. Tratando-se de um Batalhão de tropas de quadrícula, só a capacidade do seu próprio Comandante e dos Comandantes de Companhia constituem objecto do estudo, por serem os únicos com comando de tropas e com responsabilidade para o cumprimento dos objectivos traçados.
O conhecimento e a análise da forma de actuação da unidade em estudo efectuou-se com recurso à sua história, disponível no AHM, complementado com entrevistas a uma das elites que integrou o respectivo Batalhão. Os arquivos sobre a unidade constituem fonte importante, mas manifestamente insuficiente para que se possa explicar a qualidade do desempenho. A dificuldade na informação documental torna a pessoa do entrevistado no elemento principal da recolha de informação, o que desaconselha a sua designação de forma aleatória, até pela dificuldade que tal técnica constituiria e pouco interesse científico na medida em que a escolha poderia recair numa pessoa pouco qualificada.
A escolha teria, necessariamente, que recair sobre um Oficial que tivesse desempenhado as suas funções com elevação, impedindo, assim, o enviesamento dos dados por necessidade de não exposição do entrevistado. Este tinha que deter estima na área militar, para credibilizar a informação junto daquela instituição, pois não faria o menor sentido apresentar-se uma conclusão, sobre a formação das elites militares, se a instituição militar considerasse os dados de base menos credíveis. O Batalhão em estudo tinha que ter estado numa localização difícil para impedir a simplificação do desempenho. Por último, o entrevistado tinha que possuir elementos históricos suficientes à reconstituição do que se passou, há já vários anos, e estar disponível para colaborar numa entrevista, que necessariamente se teria que prolongar por várias sessões.
Neste sentido, analisei o comportamento do Batalhão segundo aqueles três vectores: instalação no terreno, relacionamento com a população e controlo do meio, assumindo que a maior ou menor satisfação destes objectivos dependia das capacidades dos Comandantes, materializadas na qualidade do seu desempenho, a qual dependia em linha recta das suas formações que, por sua vez, pretendo explicar através das minhas três hipóteses.
Não era fácil o preenchimento de todos os requisitos que me propus exigir e de todo impossível se seguisse um método aleatório. Solicitei assim, a colaboração de diversas entidades militares, no sentido de me ser sugerido o Oficial que reunisse as condições que acima expus. Após várias consultas sobre o tema, o Tenente-General Silvestre António Salgueiro Porto, Comandante da Academia Militar, sugeriu-me, sugestão que aceitei, o Major-General Fernando Nunes Canha da Silva, o qual foi informado, antecipadamente, da solicitação que lhe iria formular, pelo próprio Tenente-General Silvestre Porto.
Investiguei assim, o Batalhão de Artilharia n.º 2865, cuja mobilização foi determinada pelo EME, através de nota-circular de 23 de Junho de 1968 e teve como Unidade Mobilizadora o Regimento de Artilharia Pesada n.º 2 (RAP 2), aquartelado em Vila Nova de Gaia.
O Batalhão tinha o seguinte quadro superior: Comandante, Tenente-Coronel de Artilharia Mário Belo de Carvalho; Segundo Comandante, Major de Artilharia António José de Mello Machado; e como Oficial de Operações, o Major de Artilharia Manuel Rodrigues Machado.
Os quadros do Batalhão frequentaram a seguinte formação complementar: o Comandante e o Oficial de Operações o estágio de Observação e Posto de Comando Aéreo; o Comandante e os Comandantes de Companhia, o estágio de contra-insurreição, no CIOE, enquanto o Segundo Comandante não frequentou este estágio, porque já o havia realizado em 1963.
No capítulo anterior descrevi este curso do CIOE, que considerei importante e se assemelha muito à formação seguida pelas Tropas Pára-Quedistas, tanto mais que a origem dos conhecimentos era a mesma: as tropas francesas que actuavam na Argélia. Ter-se-á, assim, que afirmar e concluir que os comandos até ao nível de Companhia beneficiavam de uma boa preparação técnico-táctica, no momento da partida para os teatros de Guerra.
O Batalhão constituiu-se no RAP 2 e aí foi ministrada a Escola Preparatória de Quadros e a instrução da especialidade de atiradores. Após esta fase de instrução, o Batalhão concentrou-se em Viana do Castelo, onde frequentou a Instrução de Aproveitamento Operacional (IAO). Os locais da instrução situaram-se nas zonas montanhosas a Norte de Viana, nomeadamente nos Montes de Santa Luzia e de Perre. “Foi alcançado um bom nível de instrução”, diz-se no documento oficial que Canha da Silva me exibe (1). Onde também se afirma que “o Batalhão tem nos seus efectivos elementos provenientes de todas as províncias metropolitanas e dos arquipélagos adjacentes”.
Chegou o Batalhão ao porto de Bissau em 11 de Fevereiro de 1969, confiado ao 2.º Comandante, que a bordo do Paquete Uíge assumira o Comando das Forças Embarcadas. O Comandante, acompanhado do Oficial de Operações, de um Subalterno e um Sargento de cada Subunidade, antecipara a sua partida em cerca de 20 dias, encontrando-se em Bissau aguardando a chegada do Batalhão. O Oficial de Operações já se encontrava no Sector que tinha sido atribuído ao Batalhão, tomando contacto directo com a unidade a render, o Batalhão de Artilharia n.º 1913, e inteirando-se da situação.
Iniciado o desembarque das tropas, às primeiras horas da manhã, foi-lhe destinado o aquartelamento de Brá, nos arredores de Bissau, onde se instalaram. No dia seguinte foram efectuadas as apresentações militares ao Comandante-chefe, que foi visitar as tropas. No Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG), foi atribuído ao Batalhão o sector de Catió, cedendo então a Companhia de Artilharia (CArt) 2478, e recebendo a Companhia de Caçadores (CCaç) 6, já em sector (Bedanda). Na tarde do dia 16 de Fevereiro, o Batalhão embarcou numa Lancha de Desembarque Grande (LDG), sendo o transporte efectuado durante a noite, tendo a lancha fundeado ao largo da foz do rio Tombali, aguardando o nascer do dia 17. Às primeiras horas deste dia foi feito o transbordo da força para as Lanchas de Desembarque Média (LDM) que as transportaram até aos locais do último destino. As unidades rendidas, servindo-se do mesmo transporte, recolheram a Bissau, apenas se cruzando nesse render da guarda.
O sector de Catió, onde o Batalhão esteve colocado em quadrícula, merece uma referência particular, porquanto se pretendia investigar uma unidade que tivesse estado numa localização difícil, encontrei uma que esteve no ponto mais difícil de toda a Guerra de África — o extremo sul da Guiné —. Por sua vez, o aquartelamento da Companhia, que estudei com maior detalhe, ficava «encostado» à terrível mata do Cantanhez. Conheço bem esta zona, visto ter aí prestado serviço no centro das operações, o que muito facilitou o diálogo ao longo da entrevista. Verifiquei, assim, que tinha reunido todas as condições para desenvolver um trabalho com autenticidade indiscutível, para o que a instituição militar me deu um contributo inestimável, por me ter indicado o Major-General Canha da Silva, como principal interlocutor para o estudo desta situação particular.
A zona atribuída ao Batalhão estava infiltrada por um inimigo que obtinha da República da Guiné considerável apoio, nomeadamente, permitia-lhe dispor naquele território de importantes bases logísticas, onde concentrava abundante material fornecido pelos países do bloco comunista, com frequência desembarcados no porto de Conakry. Essas bases eram simultaneamente locais de instrução e de reunião de combatentes. As que afectavam directamente a zona de acção do Batalhão localizavam-se em Boke, Kandiafara e Simbeli.
Este Batalhão, que embora de Artilharia, tinha uma formação e actividade igual às dos Batalhões de Infantaria, esteve colocado no extremo Sul da Província, entre Fevereiro de1969 e Dezembro de 1970. Durante este período, o Batalhão constituiu-se segundo dois dispositivos de quadrícula. No primeiro período, compreendido entre o dia 17 de Fevereiro de 1969 e o dia 1 de Outubro do mesmo ano, o Batalhão formou a quatro Companhias: a Companhia de Comandos e Serviços (CCS), duas CArt com os números 2476 e 2477, isto porque, a sua terceira Companhia, com o número 2478, foi deslocada para o Norte da Província, em reforço a outros batalhões, mas recebeu uma CCaç.
No entanto, e como a quadrícula era constituída por unidades de todas as Armas Combatentes do Exército, reforçadas por tropas nativas, o Batalhão tinha ainda responsabilidades de comando sobre os seguintes efectivos: cinco Pelotões de Canhão Sem Recuo (PCS/R), três Pelotões de Artilharia (PArt), estes sim, actuando efectivamente como artilharia, duas Companhias de Milícias (CM), uma da etnia “fula” e outra da etnia “balanta”, a primeira formando a quatro Pelotões (PM) e a segunda a três, um Pelotão de morteiros (Pm) e um Pelotão de Cavalaria de auto-metralhadoras Daimler (PAM).
O Batalhão com este efectivo assumiu um dispositivo de quadrícula formado por três Aquartelamentos e um Destacamento:
Aquartelamento de Catió
Neste Aquartelamento estavam estacionados o Comando do Batalhão, a CCS, o Comando da CArt 2476 e dois dos seus quatro Pelotões, o Pm, o PAM, um PCS/R, um PArt de 10,5 cm (2), o Comando da CM fula com um Pelotão estacionado em Priame e dois no Ilhéu de Infanda e um PM da etnia balanta.
a1) Destacamento de Cabedú
Neste Destacamento, estavam estacionados os outros dois pelotões da CArt 2476, um PArt de 8,8 cm e um PM da etnia balanta.
Aquartelamento de Cufar
Neste Aquartelamento estavam estacionados a CArt) 2477, três PCS/R, o Comando da CM da etnia balanta e um dos seus Pelotões.
Aquartelamento de Bedanda
Neste Aquartelamento estavam estacionados a CCaç, um PCS/R, um PArt de 14 cm e um PM da etnia fula.
Em 1 de Outubro de 1969 o sector sob a responsabilidade operacional do Batalhão n.º 2865 foi alargado até ao limite Sul da Província, sendo-lhe atribuídas competências administrativas e operacionais ou, como é mais comum dizer-se, logísticas e tácticas, sobre três outros aquartelamentos e dois novos destacamentos:
d) Aquartelamento de Guileje
Neste Aquartelamento estavam estacionados a CArt 2410, até aí independente, dois Pelotões de Caçadores Nativos e um PArt de 11,4 cm.

e) Aquartelamento de Gadamael Porto
Neste Aquartelamento estavam estacionados o Comando da CArt 2478, entretanto regressada à dependência do seu Batalhão, com dois dos seus Pelotões, um PAM reduzido de uma das suas Secções, dois PCS/R e o Comando da Companhia de Milícias n.º 12 e um dos seus Pelotões.
e1) Destacamento de Ganturé
Neste Destacamento, que funcionava como dependência do Aquartelamento de Gadamael Porto estavam estacionados os outros dois Pelotões da CArt 2478, uma Secção do PAM que estava estacionado em Gadamael Porto e um Pelotão da CM que estava, também, em Gadamael Porto. Neste Destacamento encontravam-se fracções das unidades cujos Comandos estavam no Aquartelamento base, Gadamael Porto.
Aquartelamento de Cacine
Neste Aquartelamento estavam estacionados o Comando da CCaç 2445 e dois dos seus Pelotões, um PAM e o Comando da CMi n.º 21 e dois dos seus Pelotões.
f1) Destacamento de Cameconde
Neste Destacamento, que funcionava como dependência do Aquartelamento de Cacine estavam estacionados os outros dois Pelotões da CCaç 2445, um PArt de 14 cm e um PM da CMi n.º 21.
Após este aumento da área sob a sua responsabilidade, o Batalhão 2865 passou a integrar seis Aquartelamentos e três Destacamentos, ou sejam, nove unidades fisicamente separadas, às quais havia ainda que acrescentar os três Pelotões de Milícias estacionados em tabancas localizadas em locais estratégicos. Este Batalhão ou estas unidades, no seu conjunto, eram constituídas por uma Companhia de Comandos e Serviços, quatro Companhias de Artilharia, duas Companhias de Caçadores, quatro Companhias de Milícias, com um total de doze Pelotões, dois Pelotões de Caçadores Nativos, sete Pelotões de Canhão S/R, um Pelotão de morteiros, três Pelotões de auto-metralhadoras, cinco Pelotões de Artilharia: um de 10,5 cm; um de 11,4 cm; e três de 14 cm.
No total, o Batalhão era constituído por onze Companhias e mais dezoito Pelotões não integrados directamente em Companhias. Esta verificação, real, conduz directamente à conclusão de que as tropas de quadrícula viveram numa estrutura organizativa ou numa formação, cujo enquadramento hierárquico era extremamente débil. Basta observar que o efectivo em presença corresponde ao efectivo normal de quatro Batalhões, mas que, numa situação de conflito, como era o caso, tinha apenas um comando. Sem estar a analisar todas as unidades, porque a situação era semelhante em todas elas, veja-se o caso de Ganturé, que ficando numa zona de extrema actividade inimiga, junto à fronteira com a República da Guiné e num local de passagem, de homens e material, em trânsito de e para aquela República, era comandado por um Alferes miliciano, quando se justificava e exigia que fosse comandado por um Capitão experiente.
Nestas unidades, cujo comando era exercido, quase sempre, por oficiais de patente muito inferior à que seria normal, sem experiência e baixa formação, com armamento de baixa tecnologia e eficiência, com equipamento as mais das vezes artesanal, sem instalações que protegessem o pessoal dos enormes calores e chuvas, com alimentação de baixa qualidade e insuficiente quantidade, com água que só a boa vontade podia considerar potável, com pouco fardamento e nem sempre recebido novo, os militares passaram “ali” dois anos da sua juventude, ali deixaram o seu futuro que não tiveram tempo de construir noutro lado e ali adquiriram doenças, por vezes irreversíveis. Tudo isto, para além das consequências dos actos próprios da guerra.
Contudo, o número de baixas foi reduzido e os actos de indisciplina escassos, o que revela à evidência e faz sobressair a existência de um outro factor que suportou esta guerra: o valor do “Soldado Português”, expressão que não utilizo referindo-me às Praças, mas ao “Homem Militar”: Praças, Sargentos e Oficiais, vistos globalmente, porque numa análise individual tem que se concluir que os homens não são todos iguais, em nenhuma profissão e a militar, com o elevado grau de risco incorporado, não é diferente, e se o for, é pela maior amplitude das diferenças.
No Mapa n.º 1 apresenta-se a localização geográfica das nove unidades que integravam e dependiam do Batalhão 2865 e a localização das tabancas de Priame e do Ilhéu de Infanda, onde estavam estacionados os PM. Assinalam-se, ainda, as tabancas de Cadique, Caboxanque e Jemberém onde, por acção de unidades de intervenção, tiveram lugar as «outras» acções da guerra: os combates violentos, travados entre grupos de guerrilhas experientes e motivados, e tropas altamente treinadas e de recrutamento especial, que não sofreram como as tropas de quadrícula, mas combateram com invulgar coragem e eficiência, devido à capacidade dos homens que as integravam.
O modo como se efectuou a rendição, com a substituição total das unidades em sector no curto espaço de poucas horas, as somente necessárias para as operações de desembarque da nova unidade e embarque da unidade rendida, apresentava numerosos inconvenientes e nenhumas razões que tornassem o procedimento recomendável. As novas unidades tinham que dar cumprimento imediato a toda uma actividade operacional de segurança que se lhes deparava de imediato e da qual não avaliavam a situação, desconhecendo os condicionalismos do meio e do terreno, não se encontravam familiarizados com a população e seus costumes, vendo-se obrigados a improvisar soluções de recurso incompatíveis a um ambiente de guerra, que se não compadece com improvisações e fragilidades. Com esta metodologia de rendição, não se aproveitava o acumular do conhecimento, impunha-se assim recomeçar tudo de novo.
Sobre este tema afirmou-me, em entrevista, o Tenente-Coronel Pára-Quedista Ângelo Mendes da Silva e Sousa: “não houve uma contínua sedimentação do conhecimento, através da experiência do terreno, do inimigo e dos combates” (3).
Se é certo que para contrariar estas circunstâncias houve o cuidado de antecipar a presença no Teatro de Operações (TO), do Comandante e do seu Oficial de Operações, a permanência do primeiro em Bissau, onde ficou em contacto com o Quartel General (QG) e a ida para o sector apenas do Oficial de Operações, só ilusoriamente contrariava os inconvenientes apontados para este tipo de rendição.
As considerações apontadas levam-me a considerar que só uma rendição processada progressivamente por fracções, que fossem sendo integradas na situação local e na actividade operacional e igualmente se fossem adaptando ao ambiente e familiarizando com os problemas locais, poderia apresentar condições de eficiência, segurança e continuidade aceitáveis. Estamos necessariamente a falar da experiência, materializada no conhecimento sobre a situação real do terreno, da comunidade que ali vivia e das particularidades específicas da guerrilha com que se iriam defrontar.
Mapa 1: Quadrícula do Batalhão de Artilharia n.º 2865 e Estacionamentos dos Pára-Quedistas no primeiro semestre de 1973.


Fonte: Conhecimentos pessoais apoiados por Canha da Silva e com recurso ao mapa da Guiné existente na Secção de Évora da Associação dos Deficientes das Forças Armadas.

Silva e Sousa considera que o Exército não teve nenhuma justificação para manter durante os treze anos de guerra, este tipo de rendições, “mudando os Batalhões em vez de mudar as pessoas”. Em jeito de conclusão sobre esta componente da guerra, e no final da longa entrevista que me proporcionou, afirmou este grande especialista de formação militar: “o EME privilegiou as suas cadeiras à doutrina da guerra, sendo incapaz de a perceber”.
A constituição da CCS carecia de interesse e proveito para o tipo de actuação no género de guerra que enfrentávamos, porque era mobilizado e empenhado um numeroso efectivo sem proporção com a sua utilidade e quando, o que fazia falta, eram forças combatentes. “Custa a aceitar a ocupação de capitães com alguma experiência de combate em funções que pouco vão além da burocracia e administração, enquanto que guarnições isoladas e exigindo capitães desembaraçados e experientes, são confiadas a comandos improvisados pela mobilização de oficiais do Q. C. (milicianos) sem vocação, ou experiência, que os recomende” (4).
Estávamos no início de 1969 e já se observava a inutilidade de funções, ditas de organização e administração, onde os Oficiais se agrupavam, naquilo a que venho designando como funções de conveniência, nas quais se não encontram outras justificações que não fossem as de se retirarem da Guerra, estando, aparentemente, nela. Estas situações foram-se adicionando progressivamente, até que, no limiar do ano de 1974, havia funções de conveniência para quase todos, senão mesmo todos, os Capitães de carreira, ficando a Guerra «entregue» aos Capitães milicianos.
NOTAS do texto:
(1) Este e vários outros documentos constituem peças produzidas ao longo da vida da unidade, como despachos, notas, normas, instruções e outras directrizes que foram ocorrendo. Compreensivelmente, os Oficiais mais responsáveis foram guardando cópias destes documentos, que me foram disponibilizados, e servindo agora de testemunho e prova da autenticidade do que me foi afirmado. Não se trata de documentos publicados, mas de peças de arquivo pessoal, embora sejam documentos oficiais.
(2) Corresponde ao diâmetro do cano (calibre) da peça de Artilharia, o mesmo é dizer, da granada que disparava. Neste sentido, o Pelotão constituía a guarnição que manipulava estas armas.
(3) Em entrevista, no dia 08/09/2002, no âmbito da presente investigação.
(4) Afirmação contida num documento interno do Batalhão, datado de Março de 1969, que me foi apresentado ao longo da entrevista.


(continua)

Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados

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