quarta-feira, 25 de agosto de 2010

M244 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - XII



ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M233 a M243. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M233, M234, depois a M235… M236... M237… etc.
Manuel Godinho Rebocho
2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)
Bissalanca/Guiné
1972 a 1974

O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.


Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M233 a M243:
III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES
(continuação)

3.2.1.2.1.6 – De Novo no Cantanhez
No dia 21 de Abril desse ano de 1973, a Companhia regressou ao Cantanhez. Partindo de avião para Cufar e daqui, em meios navais para Caboxanque. Neste Destacamento do Exército, guarnecido por uma Companhia de Cavalaria em quadrícula, comandada por um Capitão miliciano, a Companhia de Pára-Quedistas foi dividida: no interior do Destacamento ficaram os 1.º e 3.º Pelotões, sob o comando do Capitão e, a cerca de 500 metros, na povoação contígua de Flaque Injã, a cobrir o corredor de entrada do Destacamento, ficaram o 2.º e o 4.º Pelotões, sob o comando de Sousa Bernardes.
A área de serviço, como a cozinha e o bar de Oficiais e Sargentos ficava na zona dos Pelotões que estavam no interior do Destacamento.
As operações sucederam-se de tal modo, que estavam Pára-Quedistas em permanência no exterior, os quais exerciam uma fortíssima acção dissuasora, mas nenhuma das operações foi determinante de nada. Os dias foram passando de forma rotineira. O Destacamento era comandado pelo Capitão Gordalina, Oficial de carreira e do Exército, que tinha a promessa de ser promovido a Major, única forma de ali o segurarem. Este Capitão, “à moda monárquica”, queria um Soldado à porta da sua barraca, para onde, em dias alternados, ia um Soldado Pára-Quedista. Certo dia, este Capitão mandou o Soldado Pára-Quedista engraxar-lhe as botas, o que foi o início de um grande problema. O Soldado virou-lhe as costas e foi para a sua barraca. Os Soldados Pára-Quedistas solidarizaram-se com o seu camarada enquanto o dito Capitão, senhor da sua condição de Comandante do Destacamento, continuava a exigir as botas engraxadas.
O Capitão Pára-Quedista, na sua solidariedade de Oficial, pediu ao Soldado que fizesse um sacrifício e engraxasse as botas ao Capitão do Exército. Mas nada feito, e em boa verdade, nada havia a fazer. Reuniram-se os graduados da Companhia a quem o Capitão Costa Cordeiro pediu apoio, tendo eu apoiado o Soldado, atitude em que fui seguido pelo Renato Dias. Decidiu a hierarquia das influências e todos os restantes Sargentos seguiram idêntica posição. O Comandante de Companhia pediu então auxílio ao Comandante do Batalhão, o qual, via rádio, disse ao Capitão do Exército, que “os Pára-Quedistas não estão na Guiné para engraxar botas a ninguém” e o assunto ficou assim encerrado.
A tabanca de Caboxanque não só era muito grande, como era dispersa. A Companhia do Exército estava colocada numa das pontas, próximo do rio, e a Companhia de Pára-quedistas estava na outra ponta, à entrada da mata. Como resultado desta geometria, a barraca do Capitão Gordalina ficava a cerca de 500 metros da posição onde estavam os Pára-Quedistas do bigrupo comandado pelo Capitão Cordeiro e a cerca de 1 km do ponto onde estava o bigrupo comandado pelo Tenente Sousa Bernardes.
O Capitão Gordalina determinou que os Pára-Quedistas antes de saírem para a mata e quando viessem dela, lhe fossem apresentar continência. Quer isto dizer, que os homens do bigrupo de Sousa Bernardes eram obrigados a percorrer mais 4 km cada vez que saíam para a mata só para irem apresentar continência ao «Comandante Gordalina». É evidente, que isto só se fez uma vez. Os homens vinham de regresso de uma operação de três dias, cansados, cheios de fome e de sede, com os pés em sangue devido à longa caminhada, passaram junto ao seu estacionamento, mas tiveram que se deslocar mais 1 km para cada lado só para apresentar continência ao «Comandante Gordalina».
Os Soldados entraram em contestação e ameaçavam insubordinar-se. Mas desta vez, todos os graduados se uniram em apoio do Capitão Cordeiro e acalmaram as Praças. Só que, impuseram que Gordalina nunca mais e acabaram-se as continências. E foi isto a Guerra de África, na qual a diferença na qualidade do desempenho estava nas qualidades do homem. Os conhecimentos técnicos, para além dos rudimentares, pouca diferença fizeram.
A 1 de Maio desse ano de 1973, no decurso da operação “Tabica Texuga” empenhando o 2.º e 3.º Pelotões, Sousa Bernardes revelou mais uma vez a sua capacidade criativa, quando detectou, atravessando uma bolanha, um grupo de 10 Guerrilheiros e, numa inteligente manobra táctica, surpreendeu-os no seu aquartelamento. Do contacto resultou a morte de três dos Guerrilheiros, vários feridos e a captura de diverso material e armamento.
Mulheres e crianças que estavam misturadas com Guerrilheiros fugiram dos combates para a bolanha. Os Pára-Quedistas, em mais uma manobra de rigor, preferiram deixar fugir alguns Guerrilheiros a matar inocentes e nenhuma mulher ou criança foi atingida. Uma idosa doente, que não conseguiu fugir, foi tratada pelo Enfermeiro Aguiar e foi deixada no seu tabancal. As nossas tropas não sofreram qualquer consequência.
Se entre o grupo dos Sargentos havia um que já se distinguira e diferenciava dos restantes, Sousa Bernardes, com mais esta atitude, mostrava que os Oficiais também se diferenciavam pela sua criatividade. Neste ponto, não se pode deixar de fazer uma referência. Houve, durante a Guerra, quem conseguisse grandes êxitos militares, mas à custa de consideráveis baixas para as nossas tropas, a esses não os apelido de criativos, mas de aventureiros que arriscam a vida dos seus homens, mas sem consciência do que estão fazendo. Sousa Bernardes não foi assim, arriscou com prudência, cautela e autoridade, concebendo criativamente as manobras, pelo que pode afirmar que as estrelas que usa são «suas», ninguém lhas deu.
No relatório do Comando sobre esta operação consta a seguinte passagem: “por informações dadas pela população a identificação de 2 dos mortos é a seguinte: Ancanha, Comandante de bigrupo, natural de Fabrate, e Bunhé, natural de Flaque Injã”, ambos reputados combatentes nas hostes inimigas. Sousa Bernardes não se tinha enfrentado com milícia vulgar, o que deixa evidente que a qualificação do combatente depende do valor humano e da experiência. Os conhecimentos adquiridos na Academia Militar eram iguais aos de todos os outros Oficiais de carreira e nenhum, dos que me comandaram, e fui comandado por 6 Capitães, 4 na Guiné e 2 em Angola, era como ele.
Esta mesma opinião teve o Comandante do Batalhão, quando escreveu no seu relatório acerca de Sousa Bernardes: “...A sua posição na primeira linha incutiu confiança e galvanizou os seus subordinados...”. É aqui que os combatentes se diferenciam: no fazer, porque no mandar são todos iguais. Recorrendo a uma afirmação que circula nos meios militares de uma frase atribuída a Napoleão: “os exércitos ou se puxam ou se empurram”, julgo que se puxam-se pela competência, pelo exemplo e pela liderança, e se empurram pela autoridade repressiva.
Como disse acima, Flaque Injã ficava junto ao Destacamento avançado, onde estavam dois dos Pelotões Pára-Quedistas, o mesmo é dizer que o Guerrilheiro os conhecia, junto dos quais se comportava como população — era assim a Guerra. Na noite seguinte, já com o corpo do Guerrilheiro Bunhé, na sua tabanca, teve lugar o «choro», durante o qual Sousa Bernardes, com as devidas precauções, foi junto da família do Guerrilheiro afirmar o seu respeito pela morte de um combatente, que morreu com honra o que, segundo se comentou na altura, sensibilizou muito a população local.
O êxito operacional de Sousa Bernardes enfureceu os homens do PAIGC. Dois dias depois deram-nos a sua resposta. Quando não estavam na mata, os graduados passavam os serões a conversar e a jogar às cartas, geralmente a dinheiro, numa barraca que também servia de bar, a que chamávamos «clube». Nesse dia 3 de Maio, quando estávamos de conversa e num animado jogo de cartas, rebentou uma granada de canhão a 50 metros da dita barraca. Corremos todos para as valas, enquanto as granadas continuavam a cair nas proximidades. Os Guerrilheiros tinham apontado os canhões ao «bar» dos graduados Pára-Quedistas, tínhamos voltado à situação de Cadique. Desta vez, porém, tudo era mais grave: já não havia intervalo de tempo entre o disparo e a chegada da granada, os Guerrilheiros acabavam de inaugurar a utilização do canhão de granada supersónica.
Os Guerrilheiros pareciam tão enfurecidos que não cessavam o fogo, que continuava a cair incessantemente junto das nossas valas. A Artilharia de Cufar entrou em acção, seguida pela Artilharia de Bedanda. O posicionamento da base de fogos dos Guerrilheiros estava no alinhamento de Cufar e Caboxanque, do que resultava que as granadas de obus, lançadas pela nossa Artilharia, nos passavam por cima. Como não tínhamos muitas granadas de artilharia, exigia-se eficiência para obrigar o inimigo a cessar o fogo, o que não estava a acontecer naquele dia. Foi então que pressentimos o pior: uma granada de obus vinha a descer nas nossas proximidades, indo cair. Este conhecimento é natural. Depois de ouvir muitos sons, o combatente que esteja calmo, consegue aperceber-se que a granada vai cair, porque o silvo se altera substancialmente. A granada caiu sobre as palhotas da população, fazendo 18 mortos e um número indeterminado de feridos.

Posição de um dos dois Bigrupos de Pára-Quedistas no Aquartelamento de Caboxanque. Por norma a população ficava colocada no interior dos Aquartelamentos, mas, como Caboxanque não só era muito populoso como era muito disperso, as tropas ficaram no interior do tabancal. Pode ver-se, no canto superior esquerdo, como as palhotas ficavam muito perto da posição das tropas, servindo-lhe assim de protecção. Os guerrilheiros evitavam bombardear a sua população o que os obrigava a manterem alguma distância de segurança nos seus bombardeamentos e, por via dessa segurança, nunca foram capazes de colocar qualquer granada no interior deste destacamento. É a opção nos ataques selectivos: arrisca-se o ataque aos nossos, ou a inutilidade do ataque? Nas guerras mais recentes têm-se designado estas opções por “danos colaterais”. Todavia, quando os “danos colaterais” afectam “os nossos” as opções são o oposto.

Fotografia de Costa Ferreira
O fogo inimigo cessou de imediato, o que só veio provar que eles tinham elementos seus na população a orientar o fogo. A população irrompeu na nossa direcção, o que também prova que sabiam que já não haveria mais disparos dos Guerrilheiros, pedindo explicações por aquela granada de obus, que lhe matara tanta gente. Nós não tínhamos explicação, não pedíramos aquele disparo, não sabíamos quem o decidiu mas, no fundo, todos sabíamos que nos podia ter salvo a vida. São as contingências duma Guerra suave, que nem sempre o foi.

Pára-Quedistas cozinhando uma refeição no Aquartelamento de Caboxanque

Fotografia de Costa Ferreira
Este canhão de granada supersónica, desconhecido até aí, veio modificar toda a vida social da Companhia, já não podíamos juntarmo-nos nas nossas conversas ou noutros passatempos, ou até mesmo numa formatura: aquela granada de canhão chegava sem aviso. Tomávamos as nossas refeições em momentos diferenciados uns dos outros, tudo para não nos juntarmos e não sermos «visitados» por uma granada mais rápida do que o som.
3.2.1.2.1.7 – A Criatividade da Guerrilha e a Apatia do Estado-Maior
Em meados de Maio de 1973, a Guerrilha responderia habilmente à manobra spinolista de intensificar a Guerra, confundindo o Estado-Maior português que, muito cursado, mas sem criatividade nem experiência, não encontrou arte para consumar a sua estratégia, já que os Guerrilheiros, que nunca frequentaram qualquer Academia, nem se sentaram nos bancos de qualquer escola, se lhe superiorizaram. Com efeito, os Guerrilheiros cercaram Jemberém, a «pérola de Spínola»; atacaram Guileje no extremo Sul, em resposta à minagem dos acessos à base de Candiafara, na Guiné Conakry, de cujas explosões, em 23 de Março, resultou elevado número de mortos e feridos; e Guidaje, no extremo Norte, onde Spínola concentrava meios para atacar a base de Cumbamori, no Senegal, como atacou. O Estado-Maior, no seu «conforto» de Bissau, onde não havia guerra, ficou paralisado, claudicando.


O General António de Spínola, Comandante-Chefe das Forças Armadas na Guiné, em Bula, que fica a cerca de 37 Km de Bissau, nos finais de 1972, onde se deslocou no seu automóvel oficial, o qual ostentava o estandarte da patente de quem nele viajava. Esta fotografia demonstra inequivocamente, que nas proximidades de Bissau se circulava com relativa tranquilidade.
Fotografia de Victor Costa
A este propósito dizia-me o Coronel Moura Calheiros: “O Oficial de Estado-Maior, mesmo que seja Capitão, já necessita de muitos conhecimentos teóricos, mas tem que ter passado pela «tarimba» dos combates ou do comando de tropas, porque de contrário será apenas um teórico” (1). Calheiros dá-nos a explicação desta apatia: “eram apenas uns teóricos”. E o Tenente-Coronel Silva e Sousa, também em entrevista, complementa: “o Estado-Maior nunca percebeu a Guerra” (2). Pode entender-se o porquê: de facto, nunca lá estiveram. A incapacidade de consumar a táctica spinolista foi bem elucidativa: a prática, que conduz à experiência, não só complementaria a teoria, como a podia substituir, mas o inverso não se provou verdadeiro.
Segundo Otelo, os efectivos da guerrilha em 1973, eram na ordem de 7.000 homens, sendo os efectivos portugueses de 58.000 (Carvalho, 1977: 90); não se tratava de uma questão de quantidade, mas de qualidade, a que condicionava a situação que opunha as nossas forças à guerrilha; não era a formação, mas o valor individual que tudo decidia.
Segundo diversos autores, os Guerrilheiros terão desenvolvido uma acção militar em «tenaz», para outros terá sido em «pinça», podendo igualmente problematizar-se o ter sido em «alicate» ou qualquer outro objecto que aperte sobre duas extremidades. Não julgo que os termos se apliquem, pois não foi nada disto que aconteceu. Se é um facto que os Guerrilheiros atacaram duas extremidades da Província em simultâneo, em nenhum dos casos evoluíram para o centro, o que se impunha para adequar aquelas designações. Para além de que não foram os Guerrilheiros que tomaram a iniciativa, nem foram eles quem escolheu os pontos onde a intensificação da Guerra se veio a verificar, mas sim Spínola, como adiante demonstrarei. Os ataques foram isolados e independentes entre si. Os “erros” de Estado-Maior, as falhas de comando e a colocação dos Oficiais de carreira em funções que não as de combate, foram efectivamente as principais causas de todas as complicações que se seguiram. Os Guerrilheiros apenas alteraram a sua doutrina de actuação, forçados pelas decisões spinolistas e aproveitando as grandes quantidades de material que lhe fora concedido e as facilidades de que passaram a usufruir no Senegal. Neste sentido, os Guerrilheiros atacaram do seguinte modo:

NOTAS do texto:
(1) Em entrevista, no dia 12/06/2003, no âmbito da presente investigação.
(2) Frase proferida em entrevista, no dia 08/09/2002, realizada no âmbito da presente investigação.

(continua)

Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados.

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