sábado, 21 de agosto de 2010

M240 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - VIII


ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M233, M234, M235, M236, M237, M238, M239 e M240. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M233, M234, depois a M235… M236... M237… Manuel Godinho Rebocho2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)Bissalanca/Guiné1972 a 1974

O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.

Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M234, M235, M236, M237, M238, M239 e M240:
III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES
(continuação)

3.2.1.2 – Os Pára-Quedistas na Guiné — o Batalhão n.º 12
A exactidão que se procura, mesmo quando conseguida, não implica que se tenha sido exaustivo. Nunca se é. Há que estabelecer prioridades, atribuir diferentes graus de importância, resumir acontecimentos. Procurei estabelecer o equilíbrio que me pareceu razoável, entre o que seriam pormenores excessivos e acontecimentos menos relevantes.
A presença das Tropas Pára-Quedistas na Guiné remonta ao ano de 1959, 7 anos antes da criação do BCP 12. No dia 3 de Agosto de 1959 foram desencadeadas greves pelos trabalhadores nativos do porto de Bissau; o movimento grevista foi duramente reprimido pelas autoridades portuguesas que provocaram durante a sua intervenção algumas dezenas de mortos e feridos. A situação agitou-se por toda a cidade e, uma semana depois, a 10 de Agosto, um pelotão de Pára-Quedistas foi transportado por via aérea para Bissau, de onde regressou a 20 do mesmo mês. Com esta estada de 10 dias se cumpriu a primeira missão das Tropas Pára-Quedistas na Guiné.
A partir de Janeiro de 1963 a situação na Guiné complicou-se, tanto do ponto de vista político como de segurança, o que obrigou a profundas alterações na composição e efectivos das tropas portuguesas. De Portugal começam a ser enviados homens e materiais, na tentativa de evitar o alastramento da subversão. Foi neste âmbito que, no dia 3 de Julho de 1963 chegou a Bissau um Pelotão de Pára-Quedistas, o qual teve o seu baptismo de fogo no dia 10 de Agosto, durante a execução da operação «Esquilo» que teve lugar entre os rios Grande de Buba e Sahol. Esta operação marca o início de uma longa actividade operacional que só viria a terminar com a independência da Guiné, no ano de 1974.
“A inexperiência dos militares pára-quedistas numa guerra de guerrilha que obrigava a acções de desembarque naval e progressões em terrenos extremamente difíceis, que iam desde o «tarrafo» traiçoeiro até à mata densa, foi amplamente superada pela sua voluntariedade, decisão e excelente preparação física, que lhes permitiram ultrapassar com êxito os obstáculos surgidos” (CTP, Vol. IV, 1987: 100). Os próprios Oficiais que investigaram e escreveram a história das Tropas Pára-Quedistas reconhecem o efeito da experiência, neste caso, da sua falta, e que as dificuldades foram ultrapassadas pelas qualidades pessoais, como sempre aconteceu ao longo dos 13 anos desta guerra de guerrilhas.
Em 20 de Janeiro de 1964 segue para Bissau um segundo Pelotão de boinas-verdes. E, no dia 7, do mês seguinte, ao acorrerem em auxílio do Destacamento de Fuzileiros Especiais n.º 7 que se encontrava em dificuldades na mata de Cachide, devido a forte ataque lançado pelo inimigo, foi mortalmente atingido o Soldado Pára-Quedista n.º 75/61 Daniel Rosa Neto, que se tornou assim, o primeiro dos 65 boinas-verdes que, ao serviço e a mando da Pátria, tombaram em terras da Guiné.
O agravamento da situação interna da Guiné exigiria então a tomada de novas e mais profundas medidas de reestruturação das FA e a reformulação do seu emprego táctico. Entre estas medidas destaca-se a criação do Batalhão de Caçadores Pára-Quedistas n.º 12, em 1966 (1) .
As exigências operacionais obrigaram ao envio de uma nova Companhia para reforço do quadro orgânico do BCP 12, o que aconteceu em 21 de Julho de 1970. A nova unidade, que eu integraria na qualidade de Sargento, primeiro com o posto de Furriel e depois com o de Segundo Sargento, tomou a designação de Companhia de Caçadores Pára-Quedistas n.º 123 (CCP 123) e iniciou a sua actividade operacional no dia 8 de Agosto. No próximo item descrevo as características e o funcionamento da CCP 123, como exemplo paradigmático, das Companhias desta especialidade que durante todo o tempo da Guerra de África, operaram nas três frentes de combates: Guiné, Angola e Moçambique.
No dia 13 de Outubro de 1974 e pela última vez, a Bandeira Nacional Portuguesa desceu do mastro de honra do BCP 12.
3.2.1.2.1 – A Companhia de Caçadores Pára-Quedistas n.º 123 como Exemplo Paradigmático
A actividade da CCP 123 girou muito, ou quase totalmente, em torno de dois Sargentos, um deles eu próprio. Se omitisse os nomes dos militares que, em cada momento, intervieram nos acontecimentos, a compreensão dos mesmos seria certamente menos clara. Assim, antes de considerar concluída a minha obra, enviei cópias da mesma ao Major-General Comandante da BAI, ao Major-General Sousa Bernardes, que foi Subalterno e Comandante desta mesma Companhia e ao Coronel Pires Saraiva que, como Alferes miliciano, comandou o Pelotão de combate que eu integrei, para que estes Oficiais pudessem contradizer ou desmentir, na expressão de Zimbardo & Ebesen (Zimbardo, 1973: 67), o que afirmo. O Major-General Comandante da BAI, em carta que me dirigiu, classifica o documento de moderado e “histórico”, enquanto o Major-General Sousa Bernardes e o Coronel Pires Saraiva me responderam que “os factos se passaram rigorosamente como os descreve”.
A grande característica que definia as Companhias Pára-Quedistas na Guerra de África era a sua dupla cadeia de comando: a orgânica e a das capacidades, ou a formal e a informal. A segunda cadeia de comando ordenava os militares pelo poder de influenciar as decisões.
Em Maio de 1972 iniciaram-se as rendições do pessoal da CCP 123. Embora as rendições dos Pára-Quedistas fossem individuais, o facto desta Companhia ter sido colocada na Província de uma só vez, implicou que o fim da comissão de quase todo o seu pessoal ocorresse em simultâneo. Esta simultaneidade foi sendo, no entanto, corrigida e atenuada pelas várias substituições e transferências que se foram efectuando ao longo dos dois anos anteriores.


Guiné. Pequeno país de grandes contrastes. À terra queimada do norte, contrapõem-se as áreas alagadas do sul; e as grandes bolanhas de terra limpa são geralmente envolvidas por matas densas.
Fotografias de álbum pessoal
No dia 8 de Maio de 1972 chegou ao BCP 12 um grupo de militares idos do Regimento de Caçadores Pára-Quedistas (RCP), entre os quais 5 Sargentos. Um desses Sargentos era eu que, com 22 anos, ia iniciar a minha segunda comissão em África. A primeira tinha sido em Angola, onde completara os 20 anos.
Feitas as apresentações, o Chefe da Secretaria, um Capitão Pára-Quedistas oriundo de Sargento, informou o grupo que um dos Sargentos seria colocado na Companhia 121, outro na 122 e os outros 3 na Companhia 123. O Furriel Ragageles informou que gostava de ficar na Companhia 122, porque pertencera a essa Companhia na sua anterior comissão, exprimindo eu que gostaria de ficar com o Furriel Delgadinho Rodrigues, por sermos do mesmo curso e amigos de longa data, enquanto o Primeiro Sargento Renato Dias disse gostar de ficar com “estes velhos” (2). O Furriel Marques, com as hipóteses esgotadas, manifestou a sua disposição para ficar na Companhia 121. Assim, com a máxima naturalidade, se efectuou a distribuição dos Sargentos recebendo a CCP 123, duma só vez, 3 dos bons Sargentos Pára-Quedistas que a iriam «marcar» nos dois anos que se seguiram, porque, além de bons profissionais, eram amigos.
Feita a colocação dos Sargentos da CCP 123 nos respectivos Pelotões, tarefa a cargo do Comandante de Companhia interino, o Alferes miliciano Cardoso da Silva, em fim de comissão, fui colocado no Primeiro Pelotão, a comandar a primeira Secção de onde tinha saído o Sargento Amoroso, um bom Sargento que tinha a Secção bem organizada. Os outros dois Sargentos deste Pelotão, que comandavam a segunda e terceira Secções, também em fim de comissão, eram o Miranda Henriques, um bom Sargento, e o Pacheco, já nem tanto, pelo que regressou ao Exército. O Primeiro Sargento, adjunto do Comandante de Pelotão, o Claudino, também era um bom Sargento. O Comandante do Pelotão era o já citado Cardoso da Silva. Todos estes profissionais se esforçaram para, no pouco tempo que estivemos juntos, me ensinarem o que se podia aprender. Posso mesmo afirmar que, ao chegar à Guiné, «aterrei» no meio de veteranos e bons profissionais, que além destas qualidades ainda se fizeram meus amigos.
Por muito experimentado que fosse um militar, independentemente do posto ou da função, tinha sempre muito que aprender quando chegava a uma nova zona de Guerra e, para tal, tinha que aprender com os mais velhos, mesmo de patente inferior à sua: eu aprendi muito com os «meus» Soldados, que o Amoroso, o anterior Comandante da Secção, tinha ensinado. Ao longo dos meus tempos de Guiné, sempre notei a máxima disponibilidade daqueles que sabiam mais para ensinar os que sabiam menos; no entanto, havia sempre quem não quisesse aprender. Nesta, como em qualquer outra profissão, em que o vencimento é independente do desempenho e o tempo passa para todos, há uma natural acomodação por falta de incentivos.
Havia uma lógica que pesava no raciocínio de todos e que é inimiga dos exércitos, particularmente em campanha: só se manda fazer a quem sabe. Saber fazer implicava o ser escolhido, mas a escolha era para seguir na frente, a romper mata e correr o risco do próximo combate. Os incentivos funcionavam assim, em sentido contrário ao teoricamente desejado. Aqueles em quem não se confiava passavam o tempo como os outros, com menos preocupações, com menos sacrifícios e riscos. Neste contexto, houve quem, em unidades de elite, não desse um tiro numa comissão inteira, e quem queimasse as mãos no cano da espingarda, para além de canos que se entortaram por excesso de aquecimento, motivado pelas muitas balas que dispararam em combates prolongados. Esta realidade revela o quanto a gestão de pessoal foi um monumental fracasso durante toda a Guerra de África, como o será em todas as situações em que se incentive o alheamento e o desinteresse, o que sempre acontece quando quem trabalha não se vê recompensado. Sendo assim, extrai-se uma conclusão: quanto mais alto na hierarquia mais se influencia o desempenho da unidade. Contudo, o Capitão não comandava combates, o que constituía tarefa de Sargento, logo, uma Companhia com bons Sargentos era uma boa unidade, mas podia não o ser se o Capitão não soubesse gerir as capacidades dos «seus» Sargentos, e com frequência não o sabia. Desta observação resulta que os Sargentos se avaliavam pelas suas capacidades de combate e os Capitães pela sua sabedoria em gerir a capacidade dos «seus» Sargentos.
Quanto aos Soldados verificava-se um dado estranho: tinham orgulho em pertencer à Secção do Sargento A ou B, que era bom em combate e estava «em todas», o que implicava que eles também estivessem, pois a confiança e a auto-estima tinham grande poder. O Soldado aceitava andar um dia a romper mata e a sofrer os combates por andar na frente, desde que tivesse confiança em quem o comandava, para poder dizer «eu estive lá». Temos assim, que um Capitão não fazia uma Companhia, mas podia desfazê-la. O colapso relacional, ou o conflito descontrolado, entre o Capitão e o tal Sargento (A ou B) conduzia, inevitavelmente, à queda da capacidade operacional da unidade.
Em 21 de Maio de 1972 iniciei a minha actividade operacional participando na operação “Milhafre Verde” (3) . Esta operação envolveu todo o BCP 12, sob o Comando do respectivo Comandante, Tenente-Coronel Pára-Quedista Araújo e Sá, e teve lugar na zona Norte da Província. No plano da operação dizia-se que na zona estava referenciado um corpo de Exército da guerrilha com a seguinte constituição: quatro bigrupos de Infantaria, um grupo de Artilharia, um grupo de Foguetões e um grupo de Armas Pesadas. Os Pára-Quedistas actuaram com seis bigrupos, a 50 homens cada um. O bigrupo que eu integrei era constituído pelos 1.º e 2.º Pelotões, teve como nome de código Lobo 0 e foi comandado pelo Alferes miliciano Cardoso da Silva. As tropas saíram do Porto de Bissau no dia 21 de Maio, às 12 horas e 45 minutos, embarcadas na LDM n.º 312, e chegaram a Porto Gole às 17 horas.
Porto Gole era um antigo porto fluvial, na margem direita do Canal do Geba, conhecido pelo comércio de escravos, onde estava estacionado um Pelotão do Exército, em posição de quadrícula, numa antiga casa senhorial, que deixava antever alguma riqueza de outros tempos, antes da Guerra. Uma longa alameda de palmeiras, perpendicular ao rio, separava as muitas palhotas que se erguiam de ambos os lados.
Do plano da operação constavam, ainda, algumas notas sobre diversas informações, entre elas que o Sol nascia às 5 horas e 37 minutos e tinha o seu ocaso às 18 horas e 21 minutos. Estas informações eram de extrema utilidade para o Comandante da operação poder estimar as horas a que havia de mandar jantar e aproximar-se do local de dormida, bem como para os Sargentos controlarem os horários das vigias nocturnas.
O Agrupamento saiu de Porto Gole, a coberto da escuridão, caminhou toda a noite e, de madrugada, atingiu a zona RUTE. Este nome de mulher era tão-somente um código que delimitava uma zona no terreno, devidamente assinalada nas cartas que cada graduado levava consigo. Para melhor se compreender, direi que o Agrupamento Leão 0 tinha à sua responsabilidade a zona ANA; Leão 5 a zona GLÓRIA; Onça 0 a zona ROSA; e Onça 5 a zona MARIA. O Agrupamento Lobo 5 ficou de reserva em Mansoa. Os Agrupamentos ou bigrupos partiram de pontos muito distantes uns dos outros: uns foram a pé, outros colocados de viatura e outros de helicóptero.
A diversidade de colocações tinha como objectivo confundir o inimigo. Os grupos iam actuar muito perto uns dos outros, pelo que a demarcação das zonas era uma necessidade para que os grupos não se encontrassem, ou que o fogo de um não atingisse os outros. Neste sentido, sempre que alguém fizesse fogo tinha que informar a sua posição e todos os grupos em cadeia rádio tomavam conhecimento e tentavam, eventualmente, surpreender o inimigo, numa possível fuga dessa posição. Foi uma operação com alguma complexidade e exigiu rigor na sua execução.
A mata era de arvoredo disperso, com um capim rasteiro que não ia além dos joelhos. A temperatura subia bem para além dos 40.º C; a operação tinha a duração de três dias. A água que cada homem levava estava condicionada pelo peso da carga total que cada um suportava, em que o fundamental era o armamento, as balas e as granadas. A água ficou assim limitada a dois cantis de um litro cada. A comida consistia numas latas de conserva e numas carcaças; não era pouca, nem se levou toda, e parte da que se levou sobrou: tínhamos então dois litros de água para três dias, com temperaturas superiores a 40.º C e a caminhar todo o dia. Fôramos informados de que, em caso algum, haveria reabastecimento de água ou reforço de munições — a única hipótese de apoio aéreo seria para evacuações. A pobreza das nossas forças impunha estas limitações.

O meu baptismo operacional na Guiné afigurava-se difícil. Os meus camaradas Sargentos disseram-me antes de partirmos: “a tua Secção vai sempre a meio da coluna”. No momento da partida e enquanto se ia formando a coluna, os Cabos disseram-me: “o meu Furriel segue no meio de nós os dois”. E assim foi, pelo menos durante a noite, em que tudo me parecia suavemente estranho. Na cerrada escuridão e em silêncio, interrogava-me: «como é que esta gente não se perde se não se vê nem onde se põem os pés»? Senti que, com uma formação técnico-táctica de ano e meio, não sabia nada, mas aquela gente sabia e estava disposta a ensinar-me: era a sua experiência. Tinha que aprender rápido porque eles estavam a acabar a comissão.
No final do patrulhamento e já junto a Porto Gole, numa zona de segurança, os Pára-Quedistas descansam para poderem entrar no Aquartelamento do Exército em condições de melhor apresentação.
Fotografia de álbum pessoal
Em 2 de Junho de 1972, a Companhia, ainda sob o comando do Alferes Silva, parte para a cidade de Teixeira Pinto, no Norte da Província, no chamado «Chão Manjaco». O Comandante deste Sector Operacional era o Coronel Pára-Quedista Rafael Ferreira Durão, que eu já conhecia de Angola, onde ele era Comandante de Batalhão quando eu lá estivera na minha anterior comissão. Durão, de nome e de feitio, já tinha “pacificado o chão Manjaco”, como ele próprio me afirmou num dos vários contactos que mantivemos, no âmbito da presente investigação.
Com a situação efectivamente pacificada, a Companhia não teve qualquer acção de fogo durante os dois meses que ali permaneceu. Tudo o que aconteceu de relevo foi interno da vida da Companhia. No entanto, e embora com a situação calma, no que à guerra dizia respeito, a actividade de patrulhamento da mata era permanente, de dia e de noite, o que se tornou cansativo, mas que utilizei para aprender, com o Alferes Silva, as regras de orientação e a leitura e interpretação das cartas militares e dos sinais da mata.
No dia 7 de Junho apresentou-se o Comandante de Companhia, regressado de férias, o Capitão miliciano Pára-Quedista Henrique Morais da Silva Caldas, um homem que se relacionava muito mal com os Sargentos e de quem ninguém gostava. Os Primeiros Sargentos eram todos casados e, à excepção do Renato Dias, tinham as mulheres e os filhos em Bissau, sendo natural que, pelo menos uma vez, durante os dois meses de estadia em Teixeira Pinto, viessem ver a família, mas Silva Caldas não o permitia, o que provocava um mau relacionamento interno da Companhia.
O tempo era muito preenchido, quem não estivesse na mata tinha que se sujeitar a várias formaturas diárias, para além de uma sessão de ginástica e corrida matinal, que o Capitão sistematicamente dirigia. Estas sessões não agradavam a ninguém, a não ser ao Capitão, que nunca ia aos patrulhamentos, pelo que o nível de cansaço entre ele e o restante pessoal era consideravelmente diferente. Eram ainda os Primeiros Sargentos, que todos os dias havia um que estava doente, quem pedia dispensa da ginástica matinal, a que Silva Caldas nunca acedeu, estivesse o requerente ou não doente.
O mau ambiente era atenuado pelo Segundo Sargento Silva Bento o qual, como responsável pela alimentação da Companhia, formara uma equipa de caçadores, e caça não faltava na zona, que caçavam codornizes com as quais Silva Bento preparava, em dias alternados, maravilhosos petiscos para, depois da ginástica, todos os graduados comerem. Os petiscos de codornizes eram alternados com miudezas de vaca, que o responsável pela alimentação comprava vivas e mandava matar, para alimento do pessoal. Havia assim, um petisco todos os dias. O Renato Dias, que tinha jeito para o petisco e para o negócio, comprava sacos de ostras ou de camarão, a 200 pesos, cada um, cerda de 75 cêntimos, e preparava nova sessão de petiscos para a tarde. À noite havia sessões de cartas ou fados. Havia sempre quem cantasse e o Capitão tocava viola, por sinal muito bem.
Recuando uns dias. Quando cheguei a Bissau investiguei as hipóteses que tinha de estudar para poder terminar o ensino liceal e concluí que poderia efectuar exames de 3 em 3 meses, ao abrigo de uma lei militar então em vigor. Antes de seguir para Teixeira Pinto, efectuei a necessária matrícula no Liceu de Bissau e acordei com a equipa de transmissões do Batalhão para que eles averiguassem as datas dos exames e as transmitissem, via rádio militar, para a minha Companhia. Estes rapazes exerceram com extremo zelo, o que agradeço, durante os mais de dois anos em que a situação se verificou, um absoluto controlo sobre as datas que sempre transmitiram para os locais onde me encontrava, com a necessária autorização do comando, que sempre assinava as mensagens.
Num sábado de fins de Junho, fui informado que tinha exame na manhã da Segunda-feira seguinte. Como ia para a mata nesse Sábado, regressando na manhã seguinte, e ao Domingo não havia avião de Bissau a Teixeira Pinto, perdia-se a minha primeira oportunidade de exame. Quando, nesse Domingo, cheguei a Teixeira Pinto, o Capitão disse-me: “entregue a arma e o equipamento a um Soldado e corra para a pista, que está a chegar um avião para o vir buscar, e boa sorte no exame”. Não respondi, porque o acelerar dos motores do avião, que se fazia à pista, me não deram tempo. Segui para Bissau. Fiz o exame e regressei, de avião, na Terça-feira seguinte, partindo de novo para a mata na Quarta-feira.
Perguntei posteriormente a Silva Caldas o que havia motivado a vinda do avião ao Domingo, ao que este me respondeu: “informei o nosso Coronel Durão que você tinha que ir a Bissau fazer o exame e ele mandou vir o avião”. Conhecia Durão o suficiente para saber que não era só isso. Membro duma tradicional família de militares, este Coronel tinha tanto de exigente como de humano, dele se contando muitas histórias, entre as quais que mandou prender o seu Segundo Comandante em Angola por ter chamado ladrão a um Sargento. Mas a sua principal característica era a de dividir os graduados por capacidades e valores, constituindo duas escalas de três níveis, uma para Oficiais e outra para Sargentos. O avião ao Domingo era esclarecedor da minha posição nessa escala. Uma outra particularidade, da qual só tive conhecimento, quando recentemente entrevistei o Tenente-Coronel Pára-Quedista Ângelo Mendes da Silva e Sousa, era a de que os Comandantes de Batalhão efectuavam uma estatística sobre os Sargentos que comandavam Secções de combate, para assim os avaliarem continuamente. Esta avaliação, tão secreta, que nenhum Sargento a conhecia e eu só tomei conhecimento dela 30 anos depois e por uma questão lateral, é inequivocamente reveladora para a presente investigação, quanto ao facto que todos sabiam que os êxitos militares dos Pára-Quedistas estavam centrados nos Sargentos que comandavam as Secções.
A mulher do 1.º Sargento Tiago, que estava em Bissau, adoeceu e este, naturalmente, quis ir a Bissau, o que não lhe foi autorizado; a do 1.º Sargento Guimarães chegava a Bissau, vinda da Metrópole, mas este também não foi autorizado a ir a Bissau recebê-la. O ambiente era mau. Eu regresso mais uma vez da mata e, no início de mais um almoço, o Capitão afirmou (os graduados tomavam as refeições todos juntos): “hoje quem paga as bebidas é o Rebocho”. Ninguém percebeu, nem fez qualquer comentário. Após eu ter procedido ao pagamento, o Capitão esclareceu: “o Rebocho passou no exame e dispensou da oral”. No dia seguinte segui de novo de avião para Bissau para comprar os livros com os quais me havia de preparar para o próximo exame. Rotina que se manteve durante toda a minha comissão, o que fez de mim o graduado com mais privilégios de todo o Batalhão. Mas as contrapartidas que paguei, em desempenho operacional, foram bem caras. No plano dos estudos concluí o então 5.º ano do Liceu. Estudos estes que iniciei já na Guiné.
O mínimo que se pode considerar foi que a hierarquia Pára-Quedista e da Força Aérea me proporcionou todas as condições e todos os apoios para eu ingressar na Academia Militar e desenvolver a minha carreira como Oficial. Porém, a Guerra de África acabou, e ainda bem, pelo que me resta a resignação de enfrentar o problema das FA, quanto à incapacidade orgânica de integrar os seus melhores operacionais.

NOTAS do texto:

(1) Portaria n.º 22260, de 20 de Outubro de 1966 (OE, 1966).

(2) Renato da Silva Dias, um portista de nascimento e devoção, tratava assim os amigos e já se tinha apercebido, dos convívios em Tancos, que ali havia «gente».

(3) Como fontes sigo o plano da operação e o respectivo relatório, cujos originais se encontram na ETAT e, especialmente para a presente obra me foram facultados, as entrevistas e os meus apontamentos pessoais apoiados pela memória.

(continua)

Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados


A meio do segundo dia, disse aos meus camaradas Sargentos: “agora vai a minha Secção para a frente”, — o que aconteceu contra a sua vontade mas com o apoio dos Cabos, que consideraram engraçada a minha insistência ao fim de tão pouco tempo em operação. Pouco depois dei a minha primeira ordem, quando um casal de jovens nativos saiu detrás de uns arbustos fugindo atrapalhadamente, correndo paralelamente à coluna. Os Pára-Quedistas sempre tiveram uma grande disciplina de fogo e ninguém o iniciava, a não ser numa situação de perigo ou à ordem. Naquele momento, os dois militares que seguiam à minha frente olharam-me como a pedir instruções e eu disse em voz alta: “deixem ir o casalinho”. A resposta à minha ordem não tardou e com ela uma lição — éramos atacados à retaguarda, o que significava que o casalinho nos tinha denunciado aos Guerrilheiros, ou seja, os dois jovens eram agentes activos da Guerra ou, pelo menos, foram-no naquele momento. A dificuldade de saber quem era ou não o inimigo constituía um obstáculo sério que não se via como o resolver, pelo menos como o resolver em termos de guerra. No entanto, nem tive problemas de consciência, nem ninguém criticou a minha benevolência porque, quando os Guerrilheiros nos atacaram estávamos a descansar, logo parados, e como eles estavam a seguir-nos o rasto, acabaram por «encostar» o nariz às nossas armas, do que por certo se teriam arrependido se tivessem tido tempo para isso.
No último dia de operação, com a tropa cansada, com fome e sem água, o Alferes mandou parar a coluna dizendo-nos: “esperem aí um bocadinho que eu vou ali à frente para me orientar melhor”. Estranhei a atitude e disse-lhe que ia com ele, o que recusou, aconselhando antes que aproveitasse para descansar um pouco. Percebi que o Alferes não era doido, nem estava a arriscar nada, apenas que sabia «ler a mata», para o que não há técnica que se aprenda nas Academias, mas apenas conhecimento decorrente da experiência. Aprendi, com ele e com o tempo, que a mata tem uma escrita que só se aprende lendo muito.
Ao chegarmos a Porto Gole, a meio da tarde do último dia da operação, o Comandante do Destacamento do Exército, um Alferes miliciano, mandou assar umas sardinhas, que tinham vindo na Lancha, de Bissau. Sardinha «puxa» sardinha, comemos tudo o que era suposto ser o almoço do Destacamento do Exército para o dia seguinte e, por mais que insistíssemos, ninguém do Exército provou qualquer sardinha.
Estas guerras não têm técnica de execução, mas desembaraço; só se aprende, vivendo-se. E o maior factor é o humano, quem o souber usar tem tudo, quem o não souber usar, também tem tudo... mas em falta. No entanto, já não penso da mesma forma quanto aos Altos Comandos e Comandos Superiores, para os quais os conhecimentos estratégicos e tácticos são relevantes e podem ser decisivos.



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