sábado, 21 de agosto de 2010

M241 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - IX

ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M233, M234, M235, M236, M237, M238, M239 e M240. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M233, M234, depois a M235… M236... M237…


Manuel Godinho Rebocho
2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)
Bissalanca/Guiné
1972 a 1974

O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.

Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M234, M235, M236, M237, M238, M239 e M240:

III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES
(continuação)

3.2.1.2.1.1 – Os Novos Quadros
No dia 13 de Julho só estávamos dois graduados no Pelotão, o 1.º Sargento Claudino e eu, os outros tinham partido para Bissau em fim de comissão. Quando nos preparávamos para partir de novo para patrulhamentos na mata, o Capitão disse-nos: “hoje chega o novo pessoal, já aqui tenho a lista”, que leu a nosso pedido. Um dos Furriéis, e vinham vários, era o meu grande amigo Feliciano da Palma Candeias; tínhamos frequentado toda a formação militar juntos e até fôramos do mesmo Pelotão em Angola. Pedi ao Capitão que, se fosse possível, o colocasse no meu Pelotão, o que ele fez. Mas o tempo revelou-nos que foi um erro.
Neste grupo de graduados vinham dois Oficiais, o Tenente de carreira Sousa Bernardes e o Alferes miliciano Pires Saraiva. Era natural que o Tenente fosse comandar o 1.º Pelotão e o Alferes, o 2.º, por serem aqueles que no momento estavam sem Comandante. No entanto, a colocação do Palma no 1.º Pelotão causou um enorme desequilíbrio nas equipas de Sargentos dos vários Pelotões, havendo necessidade de o restabelecer na medida do possível, pelo que Sousa Bernardes foi comandar o 2.º Pelotão. Para agravar ainda mais estas diferenças, o Furriel miliciano do 1.º Pelotão, o Cerqueira, tornou-se num dos dois melhores Furriéis milicianos da Companhia. Nesta altura, terminadas as rendições, a Companhia formava com o Capitão, um Tenente de carreira, três Alferes milicianos, quatro Primeiros Sargentos e doze Furriéis, seis do quadro e seis milicianos, que comandavam as doze Secções da Companhia.

No intervalo das operações na mata os Pára-Quedistas recolhiam a lenha para cozinhar as suas refeições.
Fotografia de Costa Ferreira
A Companhia deixa Teixeira Pinto e regressa a Bissau, à sede do Batalhão, no dia 28 de Julho, sem que nada de importante, do ponto de vista operacional, se tivesse passado.
Durante Agosto, mês em que a Companhia esteve estacionada na sua sede em Bissau, realizaram-se várias operações, mas sem contactos sérios com o inimigo. Andava-se muito, grandes cansaços, mas só isso. O PAIGC desenvolvia a sua campanha internacional como lhe era possível e, nessa altura, afirmava ter libertado a região do Cantanhez o que, correspondendo à verdade, era contrariado pelas autoridades portuguesas. A povoação mais importante na área que o movimento de libertação considerava libertada era Caboxanque, o que motivou uma visita a essa povoação do Adido Militar de Inglaterra em Lisboa o qual, em nome da comunidade internacional, pretendia saber quem falava verdade.
Os Pára-Quedistas receberam ordens para levarem o Adido Militar a Caboxanque, o que não seria fácil. Como era a CCP 123 que naquele momento estava em Bissau, foi esta Companhia encarregada de resolver tão árdua tarefa. Elaborou-se no papel um plano de operações que consistia em colocar 30 Pára-Quedistas na povoação, transportados em 6 helicópteros, os quais, dois a dois, colocariam os militares nos vértices duma espécie de triângulo, com a povoação no meio. Os militares, movimentando-se para um espaço aberto existente no centro da povoação, obrigariam a população a concentrar-se nesse espaço onde, pouco depois, chegaria o Adido Militar vindo noutro helicóptero, para comprovar que a população satisfizera «voluntariamente» um «pedido» das autoridades portuguesas e se concentrara ordeiramente para receber tão ilustre visitante.
A ideia não era má e o Estado-Maior provava que no papel tudo dá certo. O problema era a movimentação de 30 homens, separados em grupos de 10, numa povoação que se sabia «ser o centro do poder da guerrilha naquela zona». Silva Caldas, um Capitão miliciano, não disse nada a ninguém e elaborou uma formação com o seguinte efectivo: 6 graduados, um para cada helicóptero; 3 intérpretes, 1 para cada grupo de 10 homens porque a população não falava português; e 21 Soldados. Silva Caldas mandou formar a Companhia e escolheu os 21 Soldados ainda por sua exclusiva iniciativa. Seguindo um sistema misto de escolha e de sorteio, que só ele controlou, designaram-se os graduados. Formado o grupo dos «30» houve graduados que quiseram intervir no planeamento da operação, porque a «conversa» do Estado-Maior não lhes interessava, por não lhes merecer confiança. Operações planeadas por quem nunca pôs o pé na mata, com medo dos «bichos», têm pouca credibilidade. E o risco era elevado.
O Capitão formou os grupos da seguinte maneira: divide os 21 Soldados em 3 grupos e a cada um agrega um intérprete; numera os grupos de 1 a 3 e agrega-lhe os graduados. No final os grupos ficaram assim formados: o Capitão comandava o primeiro grupo com o Furriel Bica no segundo helicóptero; o Alferes Eurico Santos comandava o segundo grupo com o Primeiro Sargento Vicente no segundo helicóptero; o Furriel Rebocho comandava o terceiro grupo com o Furriel Pires no segundo helicóptero.
No “briefing” com todos os homens, concluiu-se que a chegada seria fácil: o PAIGC, surpreendido pela «ousadia», não reagiria a tempo. Depois dos militares se infiltrarem na população, os Guerrilheiros não iriam atacar para não causarem vítimas no seu próprio povo, esperando pelo desenrolar dos acontecimentos. O pior seria a partida: se o grupo se afastasse da povoação estaria a convidar ao confronto, se subisse para os helicópteros junto à população teria os Guerrilheiros nas costas. Havia que ser engenhoso para minorar os riscos.
É conhecido que cada helicóptero transporta cinco homens, subindo dois pela porta do lado direito e três pela porta do lado esquerdo. O graduado é sempre o segundo homem a subir do lado esquerdo, para se sentar de frente para a restante equipa. Continuando a esquematização do plano, o Capitão afirmou: “os helicópteros não podem parar, se alguém falhar a subida fica lá, não se pode perder tempo”. Não custa a compreender que se alguém ficasse fora de tempo seria o terceiro homem a entrar pela porta do lado esquerdo. O nervoso instala-se entre os Soldados, que pensam sempre o pior. Como a maioria dos homens da Companhia ainda não tinha enfrentado uma situação de fogo, ninguém se conhecia, pelo menos nos termos em que se conhecem os combatentes, isto é, conhecer antecipadamente qual o comportamento de cada no caso de surgir uma situação difícil.
Havia que encontrar uma solução para restabelecer ou mesmo estabelecer a confiança. Cada graduado indicaria a ordem e a porta pela qual cada homem iria entrar no helicóptero. Eu indiquei um Soldado para entrar em segundo lugar na porta do lado esquerdo e passei para terceiro. Esta atitude teria consequências na formação geral, porque o Capitão determinou que assim se procedesse em todas as equipas.
Tudo se planeou e previu até ao mais ínfimo pormenor, mas com o Estado-Maior à distância. A saída de Caboxanque foi um acto digno do melhor filme da especialidade. O embarque nos helicópteros processou-se numa abertura da mata junto às últimas palhotas da povoação; os homens distribuíram-se por equipas, afastadas umas das outras o suficiente para que os aparelhos operassem todos ao mesmo tempo; os homens que subiriam por cada uma das portas afastaram-se, deixando um corredor no meio para os helicópteros circularem; em cada uma das duas linhas assim formadas os homens afastaram-se cerca de 10 metros; o Capitão estava em contacto rádio com os Pilotos, que colocaram os aparelhos, em pleno voo contínuo, em linha sobre a copa das árvores e, deslocando-se de lado estabilizaram no meio dos dois primeiros homens a subir; não pararam e voaram para a frente apanhando os dois homens seguintes; os quintos homens, neste caso os graduados, atiraram as armas para os colos dos militares que já estavam sentados nos aparelhos, agarrando-se aos manípulos das portas e colocando o pé no ponto de apoio de subida; os helicópteros levantaram e guinaram imediatamente e todos em simultâneo, para a direita, fazendo com que os corpos dos homens ainda no exterior dos aparelhos se deitassem sobre os mesmos, enquanto se perdiam de novo sobre a copa das árvores.
Os aparelhos não estiveram visíveis de Caboxanque mais de 5 segundos. Os Guerrilheiros ainda dispararam, mas surpreendidos pela rapidez do movimento fizeram-no fora de tempo e os Pára-Quedistas saíram dali ilesos como entraram. A comunidade internacional concluiu, erradamente, que o Governo português tinha razão quanto ao domínio do Cantanhez, onde haveríamos de voltar no dia 20 de Dezembro.
No dia 16 de Setembro, a Companhia foi colocada na cidade de Nova Lamego, na zona Leste da Província. A partir desta cidade foram realizadas várias deslocações para aquartelamentos do Exército na zona, de onde os Pára-Quedistas iniciavam prolongados patrulhamentos, sem que nada de relevante se verificasse, para além do cansaço, da falta de água, das moscas, das abelhas e dos mosquitos. Os tempos na unidade eram passados em sessões de educação física matinal, algumas formaturas e noites de fados cantados pelos Furriéis Palma Candeias e Dias, acompanhados à viola pelo Capitão Caldas, com umas «batotas» de cartas à mistura. Os petiscos tinham acabado. O responsável pela alimentação era agora o 1.º Sargento Veiga, que limitava esses benefícios ao grupo dos Primeiros Sargentos e, não havendo braço de mar, também deixou de haver mariscos.
A terrível Guiné parecia que afinal o não era, mas o pior estava para chegar. E mais uma vez se provava que o pior eram os homens, o seu comportamento e o seu relacionamento.
3.2.1.2.1.2 – O Novo Capitão – João Manuel da Costa Cordeiro
No dia 11 de Outubro de 1972 chegou a notícia que ninguém esperava e correu velozmente. Contudo, não chegou ao meu conhecimento, pela simples razão de que passava os tempos disponíveis com os meus livros, pouco participando da vida social da Companhia. É um dos meus amigos Furriéis quem acabou por me dar a má nova: “sabes quem chega amanhã para comandar a Companhia?” Digo-lhe que não sabia, e ele concluiu, com ar apreensivo, pela grande amizade que nos unia: “o Capitão Cordeiro”.
Não duvidei que o futuro seria difícil, mas o grande desequilíbrio na competência dos Sargentos trabalhava a meu favor. Para além de que dois dos Furriéis, Comandantes das Secções, formavam comigo o trio que não tinha nada a ver com mais ninguém; eles eram meus amigos e esse facto condicionava a vida da Companhia. Fiz-lhe sentir que, contra tudo e contra todos, levaria as minhas competências profissionais ao extremo, fosse qual fosse o preço a pagar por isso. Ele ficou ainda mais preocupado e disse-me: “não faças isso, ninguém é capaz de te acompanhar e podes provocar graves consequências para a Companhia”. Estávamos em guerra, ou poderíamos vir a estar, já que até aí não a tínhamos sentido.
O Capitão chegou no dia seguinte, 12 de Outubro. Com toda a naturalidade, todos os graduados o foram esperar, uns à chegada do avião, outros à entrada da unidade. Eu não fui, marcando desde logo que não estava para contemporizações. Algum tempo depois, o Capitão cessante convoca os graduados para a sessão de apresentações e de passagem de testemunho. Compareço, naturalmente. É uma sessão de trabalho, mas não cumprimento o novo Capitão. O Capitão Caldas apresenta individualmente os graduados e, ao referir-se a mim, acrescenta: “o Rebocho é o contestatário da Companhia, é um homem culto, e nisso se diferencia dos outros Sargentos, as suas posições são geralmente atendidas porque têm fundamento”. Aparentemente a conversa ficava equilibrada, mas Caldas deixava a sua marca para o futuro. Contudo, não se percebeu muito bem porquê aquela referência muito específica, tanto mais que a não fizera para mais ninguém, nomeadamente para o grupo dos Primeiros Sargentos com quem Caldas tinha tido inúmeras dificuldades. Terminadas as apresentações e a reunião formal, passou-se aos cumprimentos protocolares. Retirei-me de imediato, sem apresentar cumprimentos.
Façamos um parêntese na descrição da vida da CCP 123, para abordar a razão do «ódio» entre mim e o Capitão Cordeiro, cujas verdadeiras razões só o Palma e o Delgadinho Rodrigues então conheciam. Em 1971, realizara-se em Tancos um curso de Instrutores / Monitores, vulgarmente conhecido por curso de Queda Livre. O Chefe desse curso foi o Capitão Cordeiro. O Palma, o Delgadinho Rodrigues e eu fomos alunos nesse curso, cada um em sua patrulha. O Instrutor da minha patrulha era o Segundo Sargento Catarino, com quem me desentendi com alguma gravidade. O Capitão Costa Cordeiro, sem tacto nem engenho, deixou-se conduzir pelas queixas do Catarino, enquanto eu fui apoiado pelo Comandante do Batalhão de Instrução e pelo Capitão Alfredo Augusto Ferreira Rodrigues, Chefe dos Serviços de Acção Psicológica, um homem de grande prestígio, ao qual ninguém se opunha e cujas posições eram atendidas pelo Comandante do Regimento. Com os apoios que recebi, o Capitão Cordeiro foi desautorizado e restou uma grave inimizade entre os dois.
Com este pano de fundo encontrávamo-nos agora na Guiné, não havia ainda guerra, mas se houvesse, ou quando houvesse? Retirei-me de toda a vida social da Companhia e fiquei a viver para os meus livros, conversas com o Capitão nenhumas e operações na mata todas. O Capitão aproximou-se socialmente dos Sargentos, especialmente do grupo dos Primeiros Sargentos, com quem passaria os serões a jogar às cartas. A vida da Companhia era isso, o ambiente era péssimo. A formação que se tinha de nada valia, nada influenciava, podíamos ser todos analfabetos, ou nunca termos entrado numa unidade militar, que não se notava a diferença, apenas restava a formação humana de cada um.
O Tenente Sousa Bernardes distanciou-se deste ambiente e o meu amigo Palma Candeias acusava-me de ser o responsável do mau relacionamento da Companhia, por não ceder a alguns esforços do Capitão para nos entendermos, acusando, porém, o Capitão de incapacidade para gerir a situação. Foi notável e único este comportamento: dizia mal dos dois, na presença dos próprios, e dizia bem de ambos nas respectivas “costas”.
No início de Novembro o Comandante de Companhia cometeu o seu primeiro grande erro. O Comandante do Sector deslocou-se ao nosso Aquartelamento para informar o Capitão que um Soldado Pára-Quedista estava a urinar na rua. Eu estava de «Sargento de Dia» e recebi ordens para ir buscar o Soldado. Como era perto fui a pé. Naquelas situações, em que o relacionamento é muito intenso, independentemente da qualidade, já todos nos conhecíamos, pelo que ao ouvirem a ordem que recebo, os Cabos antecipam-se, não querendo que surgisse qualquer desentendimento entre mim e o Soldado, que está perdido de bêbado. Neste dia fui protegido pelos Cabos. A falta de respeito seria natural, pelo que um grupo deles foi à minha frente buscar o camarada, que não queria vir, mas que eles arrastaram. O Capitão esperou-nos à entrada do Aquartelamento e mandou pôr o Soldado em sentido. De seguida mandou-o fazer um 4. O Soldado que mal se segurava nas duas pernas, não foi capaz de se segurar só numa e respondeu mal ao Capitão, que lhe deu uma bofetada, derrubando-o. Seguiram-se ordens de participação, que questionei sucessivamente com argumentos simples: “se o Soldado urinou ou não na rua eu não vi; a mim não me faltou ao respeito; se respondeu mal ao Capitão tem que ser o próprio a resolver o assunto”.
Os Soldados que compreensivelmente nos cercaram, para assistir à situação, ficaram satisfeitos pela protecção dada ao seu camarada e por ter truncado os argumentos do Capitão, o qual, por sua vez, se sentiu incomodado por não ser capaz de provar tecnicamente que tinha razão.
O Capitão Pára-Quedista que seguia a doutrina dos Oficiais de carreira, excessivamente repressiva e escassamente dialogante, não percebeu a gravidade de bater num Soldado que, no seu todo, constituem uma classe numerosa e muito unida e que aquele mesmo Soldado tem ali os seus amigos íntimos, com quem o Capitão terá, talvez no dia seguinte, de enfrentar uma situação, que até pode ser de guerra, na qual a participação efectiva dos Soldados é fulcral.
Esta situação, exemplificativa de uma atitude de desprezo moral do Oficial pelo Soldado, não era exclusiva dos Pára-Quedistas. Salgueiro Maia também se refere a ela ao afirmar: “os Soldados entendiam-se com os Sargentos e pouco mais” (Maia, 1994: 76).
O Comandante de Companhia provava ali, com aquela atitude, que não reunia nem estava dotado das capacidades exigíveis a um chefe, as quais Gaston Courtois sintetiza assim: “conhecer o homem em geral, os seus homens em particular, e a fundo os seus subordinados directos; conhecer de modo exacto os seus compromissos e respeitá-los; lembrar-se de que, na acção, actua sobre vontades e não sobre engrenagens; abrir, por consequência, horizontes largos à sua iniciativa; obter deste modo a docilidade, o zelo, o ardor em vez da passividade indiferente e mecânica; preferir à violência a disciplina voluntária; manter a subordinação dos interesses particulares ao interesse geral; levar sem desânimo as tendências centrífugas a uma coordenação fecunda — tal é a função essencial do chefe, para a qual se torna necessário e insubstituível” (Courtois, 1968: 9). Sublinhado meu.
Prosseguindo no meu relato dos factos: no dia seguinte, já no seu estado normal, o Soldado em causa pediu desculpas ao Capitão por o ter ofendido, não sem ter concluído: “o meu Capitão bateu num homem com barbas na cara e pai dum filho, por se ter embebedado, o que os graduados fazem todos os dias”. A frase, certamente reparada antecipadamente, correu por toda a Companhia, mas quem conhecesse as múltiplas relações, capacidades e maneiras de actuar não tinha quaisquer dúvidas, aquela frase era do 1.º Sargento Renato Dias, que prezava muito os Soldados, que também o adoravam; o mesmo era dizer que o Capitão tinha, também, perdido o apoio do grupo dos Primeiros Sargentos. E, toda esta situação, com o Cantanhez a aproximar-se.
A vida na Companhia estava agora estruturada da seguinte forma: entre os Oficiais Subalternos ninguém contestava ou se opunha ao que dissesse ou fizesse o Tenente Sousa Bernardes, pela sua personalidade e porque os outros três eram Alferes milicianos; nos Primeiros Sargentos só havia uma voz, a do Renato Dias; no grupo dos Furriéis não havia uma liderança, mas a existência de um subgrupo forte, constituído pelo Palma, pelo Delgadinho Rodrigues e por mim próprio impedia que outro Furriel tomasse qualquer posição contra o que estes diziam ou faziam. Renato Dias era, aparentemente, o líder dos Sargentos, mas como não influenciava o grupo dos três Furriéis, a classe de Sargentos encontrava-se à deriva. Os Furriéis milicianos pouco ou nada contavam neste xadrez e iam para onde os levassem, seguindo sempre os Sargentos. Compreende-se então, por que é que na quadrícula do Exército o Capitão era o líder orgânico e informal: não tinha a oposição dos Sargentos do quadro, porque eles, enquanto operacionais, não existiam.
Estranhamente, mas talvez aconselhado por Sousa Bernardes, o único com lucidez bastante para ultrapassar a situação, o Capitão veio falar comigo pedindo uma opinião sobre a maneira de ultrapassar a crise com os Soldados, os quais, entretanto, passaram a apoiar o seu colega, dizendo-me: “o que é que tu farias se estivesses no meu lugar?”. A pretensão do Capitão ia no sentido de atenuar o nosso mau relacionamento, o que teria influência nos meus amigos mais próximos e, por extensão, no próprio Renato Dias, o qual influenciava todos os Primeiros Sargentos. Respondi-lhe que seria melhor deixar ficar as coisas como estavam, não fazendo nada mais que tudo se iria recompor.
Após uma intervenção junto dos Soldados, efectuada por Sousa Bernardes, pelo Renato Dias e por mim próprio, que desta vez não recusei o pedido do meu amigo Palma, tudo voltou ao normal. Mas sabia-se que, enquanto durasse o distanciamento entre mim e o Capitão, ninguém se expunha a grandes compromissos. O Capitão continuou a contar com um apoio moderado do Renato Dias, do Palma e do Delgadinho Rodrigues, mas tinha perfeita consciência de que se me agredisse para além do razoavelmente aceitável, adensaria a conflitualidade e mau estar em toda a Companhia. Ele tinha, aliás, a experiência do que se passara em Tancos: quando os Sargentos mais prestigiados me apoiaram, o Comandante desautorizou-o. Era assim a vida nos Pára-Quedistas. E, para além de tudo, «estávamos à porta da guerra».
No dia seguinte à intervenção junto dos Soldados, o Capitão tomou a decisão que tardava. Após a formatura geral e habitual para almoço, os Soldados dirigiram-se ao seu refeitório improvisado e os graduados para o local onde também iam almoçar: um barracão onde, com umas tábuas mais ou menos ajeitadas, se construíra uma mesa em forma de «U». Não havia nenhuma obrigatoriedade de todos os graduados tomarem as refeições ao mesmo tempo, mas era um momento de diálogo entre todos que ajudava a ultrapassar algumas dificuldades. Desde a chegada do novo Capitão, não voltei a tomar as refeições com os meus camaradas, o que vinha contribuindo para o evidente mau estar, tanto mais que os meus amigos dificilmente aceitavam aquela situação.
Nesse mesmo dia o Capitão não deixou que ninguém iniciasse a refeição enquanto, dizia ele, “o Rebocho não chegasse”. Os graduados estavam sentados à mesa, mas ninguém comia, pelo que o Palma me foi chamar. Logo que me sentei à mesa, o Capitão iniciou uma longa intervenção, dizendo em substância o que todos sabíamos, que o ambiente da Companhia era péssimo e isso se devia a uma frase sua, que reconhecia infeliz, e a uma resposta que eu lhe dera e que ele considerava igualmente infeliz, propondo-me então que eu aceitasse que tivera metade das culpas, enquanto ele aceitava que tivera a outra metade. Aceitei e fizemos quase uma «jura» de atirarmos para bem longe o nosso desentendimento. A bem da Companhia, reentrei na vida social da mesma, reservando a maior parte do tempo livre para os meus livros, mas isso todos sabiam e não incomodava ninguém. Durante a tarde desse dia e daí para o futuro, tudo mudou.
Em 6 de Dezembro o Capitão dirigiu uma informação manuscrita ao Comandante de Batalhão a qual, depois de dactilografada a subscreveu, onde afirma, “o Furriel Rebocho é um graduado aprumado, competente, disciplinado e disciplinador. Actualmente está a estudar, não descorando a sua valorização pessoal. Elemento muito válido e de prestígio na classe de Sargentos, promete com mais experiência vir a tornar-se um óptimo Sargento.” Esta informação era uma peça processual necessária para a minha promoção a 2.º Sargento, a qual se devia processar como sucedeu, no dia 1 de Janeiro de 1973.
Nesta informação refere-se que o Furriel “promete com mais experiência...”, o que demonstra claramente o quanto o elemento «experiência» era considerado importante para a capacidade e o desempenho dos militares na Guerra de África. Na circunstância, fala-se dum Sargento de tropas de elite, que considero uma elite executiva, mas a mesma relevância sobre a componente experiência, era atendida em toda a cadeia de comando, sobretudo para assegurar confiança aos homens que recebiam as suas ordens.
É evidente que o Capitão aprendeu o que nunca lhe disseram na Escola Militar e isto consiste já em experiência, o que Gaston Courtois enfatiza quando afirma que o chefe actua sobre vontades e não sobre engrenagens (Courtois, 1968: 9), e ter-se-á esquecido que também actua sobre solidariedades, que nestes momentos são decisivas. Este pequeno exemplo é bem a demonstração de que a Guerra de África sempre dependeu do factor humano.
No dia 13 de Dezembro a Companhia regressou a Bissau. Ia começar o Cantanhez. A calma de 1972 estava chegando ao fim.

(continua)

Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados

Sem comentários: