quinta-feira, 19 de agosto de 2010

M239 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - VII


ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M233, M234, M235, M236, M237 e M238. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M233, M234, depois a M235… M236... M237…

Manuel Godinho Rebocho
2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)
Bissalanca/Guiné1972 a 1974

O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.
Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M234, M235, M236, M237, M238 e M239:

III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES

(continuação)

3.2 – As Tropas de Elite

As tropas de elite que actuaram na Guerra de África eram constituídas pelos Pára-Quedistas, pelos Fuzileiros Especiais e pelos Comandos. Estas tropas tinham os seus quartéis nas principais cidades, de onde partiam para Destacamentos do Exército colocados em quadrícula e onde permaneciam por períodos mais ou menos longos, conforme a perigosidade da situação que tivesse motivado o seu deslocamento e, ainda, em função da estratégia superior. Era fundamentalmente destes Destacamentos que as tropas de elite partiam para as suas operações na mata. No entanto, situações houve em que as tropas partiam directamente das suas unidades para a mata, embora o mais vulgar fosse uma estadia intercalar nos Destacamentos de quadrícula.
O número de tropas de elite foi sempre muito limitado, razão pela qual os Altos Comandos evoluíram para a criação de uma situação intermédia, entre a quadrícula e a elite, com o destacamento de unidades de recrutamento e formação normais para as funções de intervenção. Com mais esta entidade na estrutura da Guerra, reservavam-se as tropas de elite para intervir nas situações em que o conflito se apresentasse com maior gravidade, face à disposição do inimigo e dos interesses estratégicos, políticos, sociais e/ou económicos. Nestes moldes, as áreas que já não dependendo das unidades de quadrícula e não justificavam a intervenção das tropas de elite, reservaram-se para actuação das tropas de intervenção.
Convém, aqui, intercalar uma ideia: as tropas de elite eram tropas de intervenção, mas também havia tropas de intervenção que não eram de elite; desde logo, as suas utilizações reservavam-se para momentos e locais onde o perigo fosse mais moderado. Era uma utilização de forças num sistema ponderado, caso a caso.
Se, como disse, actuaram na Guerra de África três formações de elite, cada uma integrando um dos ramos das Forças Armadas: os Pára-Quedistas, a Força Aérea; os Fuzileiros Especiais, a Marinha; e os Comandos, o Exército, o certo é que a sua doutrina de actuação não estava dependente da formação técnico-táctica que possuíam, mas da doutrina geral da execução da Guerra. No entanto, as operações em que actuavam estavam dependentes e eram condicionadas pelo ramo a que pertenciam. Por exemplo, para uma emergência ou operação motivada por um qualquer movimento detectado ou suspeito do inimigo, em que a intervenção das tropas fosse urgente, actuavam sempre os Pára-Quedistas, pela dupla razão de a respectiva unidade ser junto das bases onde estavam os helicópteros e de os Comandos da Força Aérea darem ordens directas às duas entidades: Pilotos e Pára-Quedistas.
Este tipo de actuação, motivado mais pela organização e estrutura militar, do que pela formação e recrutamento do pessoal, que era em tudo idêntico para as três tropas, voluntariado e selectivo, determinou que as tropas Pára-Quedistas tivessem, ou melhor, fossem obrigadas a ter, um nível de prontidão diferente pela urgência com que muitas vezes eram confrontadas. Por exemplo, e é apenas um caso paradigmático entre muitos outros: na madrugada do dia 3 de Janeiro de 1974, caiu um helicóptero, por avaria, a Norte de Mansoa, na Guiné, e aconteceu de madrugada porque os meios aéreos voavam com limitações, devido a ataques a partir do solo. Dado o alerta, seguiram para o local em três helicópteros, os únicos disponíveis, 15 Pára-Quedistas que tiveram apenas por instrução, que o Comandante, obviamente um Sargento, recebeu em corrida, “corram que caiu um helicóptero”.
Os Pára-Quedistas chegaram ao local primeiro do que os Guerrilheiros, que tinham uma base por perto, salvando-se o aparelho, depois de ali mesmo reparado. Assim se evitou a natural especulação política e militar, pois se os Guerrilheiros tivessem chegado primeiro ao aparelho, por certo o teriam destruído e, naturalmente, reivindicado o seu abate. Reivindicação que provocaria naturais consequências para o moral das tropas em geral, que passavam a considerar-se ainda mais isoladas, pela dificuldade de movimento dos helicópteros para acções de evacuação, como era o caso naquele dia.
A prontidão e a confiança, mercê duma rotina que progressivamente se consolidou, incorporou-se na disciplina, consubstanciada na lógica de «as ordens não se discutem» e, por mais estranho que possa parecer, tinha que ser assim mesmo, pois avultadas explicações a par da ordem, teriam por consequência a nulidade da acção. Nem sempre seria assim certamente, nem sempre as acções eram urgentes, contudo, o facto dos Pára-Quedistas serem poucos, executarem repetidas comissões e, quando na Metrópole, estarem sempre na mesma unidade e formarem os homens ao lado de quem haviam de combater na comissão seguinte, tornou esta lógica da prontidão e de aceitar as ordens sem as apreciar, uma situação natural, como sempre se terá que verificar em tropas de elite. A eficiência caminha sempre ao lado da prontidão.
Por estas razões, que não são alheias às várias perturbações que os Pára-Quedistas protagonizaram nos «pós marcelismo» e, também por estas mesmas perturbações, as tropas Pára-Quedistas são as que melhor representam e exemplificam as tropas de elite. A citada verificação e o facto de ter integrado estas tropas, possibilitando a sua descrição e análise nos termos da técnica de “participação-observação”, que se assume como executada no tempo em que ocorreram os factos que descrevo, justificam que siga estas tropas como exemplo das tropas de elite que actuaram na Guerra de África.
3.2.1 – As Tropas Pára-Quedistas
O fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, a assinatura da nossa adesão à NATO em 1949 e as movimentações que se desenvolviam por toda a África, no sentido das independências dos povos deste continente, quase todo ainda colonizado, motivaram o Governo português a modernizar as FA o que, dizia-se, era uma medida no âmbito dos acordos internacionais mas, com as nossas Províncias Ultramarinas no pensamento. Na linha deste propósito seguiram para França, em 1951, dois Oficiais do Exército que, aceitando um convite do respectivo Ministério, iriam lançar as sementes do Pára-Quedismo militar português: respectivamente, os Capitães Armindo Martins Videira e Mário de Brito Monteiro Robalo. Dois anos mais tarde seguiu, também para França, o Aspirante Fausto Pereira Marques com idêntico objectivo.
Em 1955, Kaúlza de Arriaga foi designado como Subsecretário de Estado da Aeronáutica, a quem competia o desenvolvimento da Força Aérea.
As Tropas Pára-Quedistas foram, então, criadas por Decreto-Lei (1) , cujo artigo 2.º determina: “Na dependência do Subsecretariado de Estado da Aeronáutica, em ligação com o Ministério do Exército, é desde já organizado, junto de uma das bases aéreas, um centro de formação e treino de caçadores pára-quedistas, integrando as unidades de tropas da mesma especialidade cuja constituição for determinada pelas circunstâncias.”
Este Decreto-Lei é regulamentado por Portaria (2) , cujo artigo 1.º determina: “Em 1 de Janeiro de 1956 será constituído, (...) um batalhão de caçadores pára-quedistas...”. Assina o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, Kaúlza Oliveira de Arriaga.
Sobre a criação dos Pára-Quedistas, escreveu o General Kaúlza de Arriaga: “A criação das Tropas Pára-quedistas, necessariamente com carácter de corpo de forças especiais, de pequenos efectivos, mas altamente preparadas e gozando de alguns privilégios, mantendo-se muito maiores efectivos de forças normais, com menor preparação e menores regalias, trouxe o dilema referido no primeiro plano da controvérsia. Sobretudo no Exército defendia-se o critério das massas indiferenciadas, o que fez com que várias tentativas de viabilização de forças suas especiais, como os sapadores de assalto e os caçadores especiais, tivessem abortado rapidamente. Na Força Aérea, as forças especiais não causaram qualquer perturbação.
Era o dilema das massas indiferenciadas e das elites apuradas.” (CTP, Vol. III, 1986: 31).
Nos primeiros tempos, o pessoal militar destinado às Tropas Pára-Quedistas era recrutado, essencialmente, no Exército.
Em 1958 seguiu para a Argélia um grupo de Oficiais Pára-Quedistas chefiado pelo Major Martins Videira e de que faziam ainda parte o Major Alcino Ribeiro, o Capitão Rafael Durão e o Tenente Marques da Costa. O grupo partiu de Tancos a 27 de Abril e regressou a 13 de Maio de 1958. Segundo o Major-General Rafael Ferreira Durão, durante a sua permanência na Argélia, os citados Oficiais tiveram oportunidade de contactar com unidades das Tropas Pára-Quedistas francesas em operações naquele território (3) .
Em 1960 um grupo de cinco Pára-Quedistas constituído pelos Tenentes Araújo e Sá e Silva e Sousa, pelos Sargentos João de Bessa e Gonçalves de Campos e pelo Primeiro-Cabo Vítor Dias, partiram para GIBPOM (Grupo de Instrução da Brigada Pára-quedista de Além Mar) em Bayonne, França, onde, de 6 de Julho a 20 de Agosto, tomaram contacto com as técnicas da guerra subversiva e acções de contra-guerrilha que as Tropas Pára-Quedistas francesas estavam a usar na guerra argelina, tendo ainda feito uma curta visita a Arzem, na Argélia.
Foram estes homens, os responsáveis pela organização e direcção de instrução de contra-guerrilha nas tropas Pára-Quedistas (4) ; a partir de Maio de 1961, todos os militares que terminavam os cursos de pára-quedistas eram submetidos a um longo período de instrução de combate, dirigido especificamente para enfrentar a guerra de guerrilha nos então territórios ultramarinos portugueses.
Em Janeiro de 1961, com os responsáveis militares à espera da Guerra e, para fazer face às necessidades mais prementes de pessoal, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica exarou o seguinte despacho:
“1. A partir de 1 de Janeiro de 1961, o quadro de sargentos e praças pára-quedistas deve considerar-se como sendo o seguinte: 10 primeiros-sargentos, 130 segundos sargentos ou furriéis, 150 primeiros-cabos e 1100 segundos-cabos e soldados.
Em face do constante em 1, devem realizar-se as correspondentes promoções.
Se não houver pessoal em quantidade bastante com as necessárias condições de promoção deve o mesmo ser convenientemente preparado.” (entrevista com Silva e Sousa).
As facilidades nas promoções, que já se faziam sentir ao nível dos Oficiais, verificam-se também neste despacho relativamente aos Sargentos e determinaram assim as condições para que os Primeiros-Cabos ascendessem a Furriel. Com este despacho, ou pelo menos a partir dele, criaram-se as condições para que nestas Tropas se formassem Cabos e Sargentos, em condições específicas, adoptando as metodologias acabadas de trazer da Argélia, cedidas pelos Pára-Quedistas franceses que, nessa guerra, testavam o resultado das suas técnicas de formação. O novo procedimento de formação, inovador e nunca seguido pelo Exército, veio a criar a fantástica classe de Sargentos Pára-Quedistas, que determinou o desempenho militar deste corpo ao longo de toda a Guerra de África.
No todo português de então, Metrópole e Províncias Ultramarinas, constituíram-se sucessivamente cinco batalhões operacionais. O Batalhão n.º 11, em Tancos, junto do Regimento, formando a uma ou duas companhias, conforme os efectivos de momento, pois passavam por este batalhão todos os Pára-Quedistas que estavam em condições de partir para as Províncias do Ultramar ou delas tinha regressado, era assim, uma unidade com elevada carga administrativa; o Batalhão n.º 12, em Bissau, formando a três companhias operacionais; o Batalhão n.º 21, em Luanda, formando a três companhias operacionais; o Batalhão n.º 31, na cidade da Beira; e o Batalhão n.º 32, na cidade de Nacala. Estes dois batalhões formavam a duas companhias cada um. Do somatório resulta que existiam dez companhias de Pára-Quedistas em actividade operacional na Guerra de África. Cada Batalhão tinha ainda uma Companhia de Serviços.
Todas as Companhias operacionais formavam a quatro Pelotões e, cada um destes, a três Secções. A Companhia era comandada por um Capitão, cada Pelotão era comandado por um Alferes e cada Secção por um Sargento. Era frequente haver mais um Sargento, em cada Pelotão, que funcionava como adjunto do respectivo Alferes, neste caso, era sempre o Sargento mais antigo dos quatro. Cada Secção tinha cerca de doze Praças, entre as quais dois a três Primeiros-Cabos. Os Batalhões eram comandados por um Tenente-Coronel, com um Major como Segundo Comandante e um outro Major como chefe de operações/informações. Este bloco operacional era apoiado por diversos serviços, que aqui se não apreciarão por os considerar irrelevantes para os propósitos em curso.
Do que fica dito, conclui-se que um Batalhão a três Companhias, como era o caso da Guiné, comportava com relevância operacional um Tenente-Coronel, dois Majores, três capitães, doze Alferes, quarenta e oito Sargentos e cerca de quatrocentos e cinquenta Praças, das quais setenta e dois Primeiros-Cabos.
3.2.1.1 – Opiniões de Elites Militares Conceituadas
Procurei recolher algumas descrições de militares que desempenharam as suas funções com reconhecido mérito, para que das mesmas poder obter confirmação ou infirmação das diversas opiniões favoráveis que desenvolvo sobre as Tropas Pára-Quedistas, pois, como as integrei, poderia ficar a impressão de que teria efectuado uma descrição excessivamente favorável. Não procurei colher as opiniões directamente para, mais uma vez, obter distanciamento face às respostas. Com efeito, recolhi os depoimentos que transcrevo de publicações nas quais não tive qualquer participação. De todas estas opiniões, se colhe a noção da relevância da componente humana na qualidade do desempenho, aspecto nuclear do presente estudo. Seguem-se os depoimentos em transcrição do Marechal Spínola, do General Diogo Neto, do Tenente-General Bethencourt Rodrigues e do Major-General Pára-Quedista François Martins.
a) Marechal Spínola
“Para quem exerceu o cargo de Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné durante cinco anos em guerra e ali viveu intensamente a actividade operacional, é gratificante rememorar a passagem por aquele teatro de operações do Batalhão de Caçadores Pára-Quedistas n.º 12 e praticar o acto de Justiça de exarar na sua História esta breve homenagem do seu brilhante comportamento em campanha.
Dotado de características próprias, aliás, comuns a todas as unidades pára-quedistas, que lhe advieram da formação do seu pessoal na prática do paraquedismo, de que se destacam o culto da coragem e o perfeito autodomínio em situações de perigo, características revalorizadas por uma excelente preparação técnica orientada para a actuação ofensiva na contra-guerrilha, o Batalhão de Caçadores Pára-Quedistas foi, por sistema, empenhado em situações particularmente espinhosas.
Muitas vezes operando em conjunto, com forças de intervenção de Comando-Chefe, teve ocasião de actuar em pleno rendimento de todas as suas capacidades, obtendo resultados espectaculares. Outras vezes as suas Companhias de Caçadores Pára-Quedistas foram atribuídas de reforço a Comandos Operacionais do Exército, tendo em vista solucionar situações pontuais graves ou dinamizar a actividade operacional dessas zonas com o exemplo da sua agressividade.
Daqui resultou a atribuição ao Batalhão de Pára-quedistas das mais variadas, duras e delicadas missões, que sempre cumpriu com apurada técnica, alto espírito de missão e elevado cunho ofensivo. No desempenho dessas missões o Batalhão ganhou o direito de ser justamente classificado como unidade de elite dotada de excelente espírito de corpo e de alto nível de preparação com valorosa actuação em combate no Teatro de Operação da Guiné, onde obteve sucessos que abalaram de forma sensível a organização do inimigo.
Em termos de conduta de combate, nas inúmeras acções levadas a efeito pelo Batalhão e suas Companhias quando destacadas, todos os seus quadros e soldados demonstraram possuir além da elevada coragem e valentia inerentes à sua formação, qualidades de abnegação, sacrifício e espírito de adaptação a todas as situações, num conjunto homogéneo de virtudes e qualidades militares a justificar as muitas condecorações de guerra concedidas ao seu pessoal, que muito honrou, em terras da Guiné, o corpo de Tropas Pára-quedistas a que pertencia, a Força Aérea e as tradições gloriosas das Forças Armadas Portuguesas” (CTP, Vol. IV, 1987: 29).
Spínola, com a autoridade que lhe assistia, confirma, em absoluto, o que afirmo nos sub-capítulos seguintes quanto à capacidade de actuação dos Pára-Quedistas na Guiné. Destaca como características destes homens a coragem, valentia, autodomínio, agressividade, espírito de missão, espírito de corpo, abnegação, sacrifício e espírito de adaptação, e reconhece que estas características eram valorizadas por uma excelente preparação técnica.
Com a sua longa experiência empírica, Spínola acompanha todo o raciocínio que venho desenvolvendo isto é, para ser um bom combatente, o homem tem que possuir de forma inata um conjunto de características que o Marechal citou, sem a preocupação de ser exaustivo. Contudo, estas características podem e devem ser aperfeiçoadas e dirigidas para um fim. Foi o que aconteceu com estas tropas, que acompanharam o sistema de selecção seguido para os Pára-Quedistas franceses e o sistema de formação meio híbrido, em que foram conjugadas as formações francesa e americana, segundo Silva e Sousa (em entrevista).
Já me referi à ida de Oficiais Pára-Quedistas a França e à Argélia, mas outros dois Oficiais, actualmente Coronéis na reforma, Sigfredo Ventura da Costa Campos e Argentino Urbano Seixas, deslocaram-se ao Brasil onde Oficiais Americanos ministravam cursos a Pára-Quedistas.
Foi do saber aprender e conciliar, o que tinham de melhor estas duas escolas de formação militar, que resultou a qualidade operacional das tropas Pára-Quedistas: a escola francesa, no campo operacional, e a escola americana em matéria de pára-quedismo.

b) General Diogo Neto (5)
“Na Guiné, o BCP 12 bateu-se com galhardia contra o PAIGC, bem armado e treinado por oficiais cubanos, alcançando resultados considerados excelentes em contraguerrilha, expressos nas elevadas baixas causadas ao inimigo e no volume de armas e munições capturadas e destruídas.
Em operações como, por exemplo Ciclone II, Titão, a longa série de acções da Júpiter sobre o famoso corredor de Guileje, Dinossauro Preto (Agosto 73) e Jove em que é feito prisioneiro o capitão-comandante Pedro Rodriguez Peralta, ilustram a tenacidade e o espírito de missão dos Pára-quedistas empenhados na Guiné numa luta de vida ou de morte, com especial relevo para os assaltos helitransportados contra posições defendidas por metralhadoras pesadas anti-aéreas de 12.7 e 14.5 mm.
Como comandante da ZACVG, (Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné) de Setembro de 1968 a Agosto de 1970, tive oportunidade de constatar a eficiência operacional do BCP 12 perante um inimigo fortemente armado e protegido por áreas densamente arborizadas onde a progressão se processava em condições desfavoráveis para os nossos soldados. (...)
Na base da brilhante e valorosa acção em operações dos Pára-quedistas em África estão a preparação militar, capacidade de comando, disciplina debaixo de fogo, determinação, espírito de decisão e coragem, qualidades que lhes permitiram resolver as mais difíceis situações surgidas ao longo dos 14 anos de guerra, sendo a sua presença decisiva na manutenção da soberania nacional em Angola, Guiné e Moçambique. Tendo sido os primeiros a chegar em 1961, são os últimos a sair de África, garantindo até ao último momento a segurança dos responsáveis pelo definitivo arrear da Bandeira...” (CTP, Vol. IV, 1987: 37 a 39).
Diogo Neto, o mais prestigiado Piloto Aviador durante a Guerra de África, justifica a capacidade operacional dos Pára-Quedistas nas suas qualidades pessoais, as quais especifica como sendo a “capacidade de comando, disciplina debaixo de fogo, determinação, espírito de decisão e coragem”. Para Diogo Neto, neste tipo de guerra, as qualidades pessoais e humanas constituem o factor determinante do comportamento em combate.
c) Tenente-General Bethencourt Rodrigues
“As «tropas especiais», quando realmente o são, para o que - embora indispensável - não chega a designação, nem a preparação, nem o equipamento, têm valor inestimável para um comandante de tropas em campanha.
É a sua permanente disponibilidade, é a adopção dos processos tácticos mais adequados a cada situação, é o espírito ofensivo, é a firme vontade de cumprimento da missão, é a resistência física e capacidade de sobrevivência nas condições mais adversas, é a imunidade à surpresa pelo inimigo, é a força da determinação, a robustez psicológica, o destemor.
É ainda a eficiência e a solidez da organização do comando e do apoio quando as unidades entram em acção.
E é, finalmente, o estabelecimento claro e inequívoco de uma corrente de confiança entre a tropa especial e o comando superior, que permite ao comandante daquela tropa interpretar com justeza e lucidez o espírito do conceito operacional do comandante de quem depende e o verdadeiro objectivo na base da sua ideia de manobra - para deduzir o sentido profundo da missão atribuída e decidida e ousadamente aproveitar o grau de liberdade de acção que lhe é concedido.
Na Zona Militar Leste de Angola, de 1971 a 1973, e na Guiné em 1973 e 1974, tive sob o meu comando, em operações, unidades pára-quedistas.
Quer integrando-se no desenvolvimento metódico do plano de operações do comando do escalão superior, como empenhando-se para resolver situações críticas, em acções cujo factor primordial é a rapidez de intervenção e o pronto discernimento do melhor processo de actuação, sempre aquelas Unidades de Pára-Quedistas se bateram como verdadeiras tropas especiais, na exuberante plenitude da acepção que dou a este qualificativo” (CTP, Vol. IV, 1987: 33).
Tal como o General Diogo Neto, também o General Bethencourt Rodrigues coloca o acento tónico nas capacidades pessoais dos combatentes, as quais especifica, dizendo mesmo “não chega a designação, nem a preparação, nem o equipamento”. A preparação é importante, mas sempre como factor secundário, que só é verdadeiramente eficaz perante capacidades relevantes do foro psicofisiológico.
Bethencourt Rodrigues do «alto da sua experiência e superior competência», que o conduziu à prisão e passagem à reforma compulsiva após o 25 de Abril de 1974, destaca ainda a qualidade de comando em combate, que era função de Sargento. E foi esta função e este desempenho que constituiu o maior problema pós Guerra de África. As Forças Armadas não têm, como nunca tiveram, capacidade orgânica para incorporar os seus melhores membros quando chega a paz. Abril não foi excepção: prendeu-os, expulsou-os, difamou-os. Liquidou-os.
d) Major-General Pára-Quedista François Martins
“Se alguém me pedisse para resumir numa curta frase o essencial da vida dos militares pára-quedistas em África, eu proferiria três palavras: sacrifício, abnegação, coragem.
Estas três palavras não esgotam, naturalmente, nem pretenderiam esgotar, o leque dos adjectivos que poderiam caracterizar actividades tão diversas, e tão diferentemente praticadas, por tantas e tão diferentes pessoas, ao longo de 15 anos, as quais nem todas e nem sempre as terão merecido (6). Mas escolhi-as porque me parecem resumir o sentido profundo da actividade geral, tal como se apresentaria a um espectador que a visse no seu conjunto durante todo o tempo em que durou.
A ordem porque as coloco também não é indiferente. Primeiro o sacrifício, porque este esteve quase sempre presente, mesmo nos pequenos acontecimentos da vida quotidiana.
As tropas pára-quedistas, em África, estiveram sempre sujeitas a todos estes sacrifícios, sacrifícios da separação, da incomodidade, da tensão nervosa prolongada que o perigo gera. Até quase ao fim, estiveram mal instaladas. A falta de forças capazmente treinadas e enquadradas em quantidades suficientes obrigou sempre os Comandantes-chefes a imporem, às tropas pára-quedistas um ritmo de actividade operacional muito elevado.
As tropas pára-quedistas tiveram sempre pouco tempo de descanso, foram sempre utilizadas nas zonas que os comandantes militares consideravam mais perigosas.
O sacrifício foi, portanto, a grande condição sempre presente, com variações de intensidade, é certo, mas sem nunca deixar completamente de marcar a vida quotidiana, no quartel, no mato, mesmo na cidade. A essa constância do sacrifício, que às vezes era exigido em doses quase sobre-humanas, os militares pára-quedistas responderam, de um modo geral, com abnegação. O cansaço, a frustração, a doença, a fome, a sede, a saudade, os muitos e variados incómodos de uma vida dura, foram enfrentados e superados por uma vontade de cumprir que se manteve até ao fim. Os militares pára-quedistas não pouparam nem trabalho nem iniciativa e imaginação, para tirar partido de tudo, e assim levar a cabo da melhor forma possível todas as missões, ultrapassar todas as faltas e deficiências de várias ordens que afectaram o seu armamento, o seu equipamento, o seu potencial de combate mesmo a nível de quadros, melhorar enfim, pelas suas próprias mãos, as infra-estruturas do seu quartel.
Talvez este espírito de sacrifício, esta capacidade de abnegação, sejam no fim de contas a maior glória de todos - ou de quase todos, com raras excepções - os militares pára-quedistas que tão bem, com tanta valentia, se portaram em combate. Mas as oportunidades de combater foram apesar de tudo, e em comparação com o total de missões realizadas, relativamente poucas, e quase sempre limitadas a contactos de fogo de curta duração. Em troca, o sacrifício foi uma constante, e a abnegação a grande qualidade que tornou possível, pela persistência, pela paciência, pela resistência física vinda não só do treino, mas também, e sobretudo da vontade galvanizada, para superar as dificuldades e conseguir, enfim, os êxitos operacionais e os feitos heróicos que permitiram merecer amplamente as muitas condecorações e louvores conquistados de armas na mão, e obter os resultados brilhantes, entre os mais brilhantes obtidos por tropas portuguesas em África.
A coragem, enfim, patenteou-se sempre que para ela surgiu oportunidade, sempre que o inimigo combateu, sempre que as situações de grande perigo se apresentaram, em diversas acções colectivas, e em muitos actos individuais. Apesar de tudo, não faltaram durante os treze anos de guerra, em que os pára-quedistas estiveram sempre empenhados, ocasiões em que a excepcional valentia, a bravura, que os pára-quedistas reclamam como seu timbre, puderam manifestar-se. Esse é o aspecto que normalmente dá mais brilho, é mais citado, e que não faltou nunca, na história dos pára-quedistas em África. Ao contrário, o sacrifício e a abnegação que estiveram por trás da heroicidade e a tornaram possível, são muitas vezes esquecidas. Não brilham, são apagadas, mas estiveram lá. E muito nos honram” (CTP, Vol. III, 1986: 66 a 68).
François Martins conhece bem África, onde desempenhou funções com as patentes de Tenente, Capitão, Major e Tenente-Coronel. Efectuou duas comissões em Moçambique, uma na Guiné e outra em Angola. Neste seu depoimento, que generaliza, tem sobretudo Moçambique no pensamento. Aliás, este III volume da História das Tropas Pára-Quedistas, reporta-se ao Batalhão n.º 31 situado na cidade Beira, em Moçambique e foi coordenado pelo próprio François Martins. De entre os inúmeros depoimentos que recolhi de várias publicações ou que me foram especificamente cedidos, os quais, pela contínua repetitividade não se justifica a sua transcrição, escolhi este para o fim, porque considero que François Martins, Oficial competente e sério, fez uma abordagem, que embora longa, vem comprovar as minhas afirmações sobre tudo o que disse acerca do valor dos militares, que não era igual em todos, provando-se que os valores estavam no «homem» e não na formação técnica.
Destaco, na abordagem de François Martins, a sua consideração de que o valor dos Pára-Quedistas estava fundamentado nas “qualidades” pessoais, entre as quais refere “sacrifício, abnegação, coragem, valentia, bravura e heroicidade”, qualidades que qualifica como adjectivos que nem todas as pessoas nem sempre os terão merecido. Não me surpreende a última referência, pois, como em qualquer profissão ou lugar da terra, os profissionais não são todos iguais. É mesmo frequente grandes disparidades entre eles. A partir deste princípio, vejo com toda a naturalidade, que tanto Oficiais, como Sargentos, ou mesmo com menor impacto as Praças, os haja desde o muito bom ao muito fraco.
Nos vários e longos comentários que manuscreveu, na folha que lhe dirigi com um pedido de parecer, e onde acentuei que a resposta seria publicada, François Martins afirma que as características pessoais representam 50% da capacidade de um graduado combatente, os conhecimentos técnico-tácticos representam 20% e a experiência 30%, mas acrescenta: “a indicação numérica é, obviamente, estimativa grosseira, com base em impressões subjectivas. Na realidade, a minha resposta deve ser entendida como simples parecer com base nas seguintes opiniões: a nível de desempenho operacional no terreno os conhecimentos técnico-tácticos requeridos eram simples e sumários, contribuindo com menos peso para a eficiência do que as características pessoais (coragem, rusticidade, capacidade de liderança, argúcia) e do que a experiência”.
Analisando mais detalhadamente os Capitães, François Martins considera que a capacidade desta classe de operacionais provém em 30% dos conhecimentos técnico-tácticos, 35% das características pessoais e 35% da experiência. Este brilhante Oficial Pára-Quedista meditou com rigor na questão que lhe coloquei, efectivamente os Capitães eram operacionais, mas a posição em que seguiam na coluna não lhe permitia comandar os combates, logo, as suas características pessoais já não eram tão relevantes. De qualquer modo e, mesmo ao nível de Capitães, continua a atribuir pouca relevância à formação técnico-táctica, enquanto componente contributiva para a formação de capacidades de desempenho.

NOTAS do texto:
(1) N.º 40 394, de 23 de Novembro de 1955 (OE, 1955).
(2) N.º 15 671, de 26 de Dezembro de 1955 (OE, 1955).
(3) Em entrevista, no dia 05/03/2002, no âmbito da presente investigação.
(4) Em entrevistas com os Tenentes-Coronéis Silva e Sousa e João de Bessa, respectivamente, nos dias 08/09/2002 e 04/08/2002, no âmbito da presente investigação.
(5) Diogo Neto foi General Piloto Aviador, íntimo de Spínola, integrou a Junta de Salvação Nacional, órgão político que dirigiu o país, nos pós 25 de Abril de 1974 e, em acumulação, Chefe do Estado-Maior da Força Aérea.
(6) Sublinhado de minha responsabilidade, para destacar que também este brilhante Oficial General considera haver diferenças entre as pessoas, não obstante tratar-se de um conjunto ao qual era ministrada uma profunda e homogénea formação técnica.

(continua)

Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados

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