quarta-feira, 18 de agosto de 2010

M238 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - VI

ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M233, M234, M235, M236 e M237. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M233, M234, depois a M235… M236 e M237.

Manuel Godinho Rebocho2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)Bissalanca/Guiné1972 a 1974

O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.

Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M234, M235, M236, M237 e M238:
III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES
(continuação)
3.1.2 - O Factor Humano como Elemento Decisivo Sabendo que o Capitão Canha da Silva era Oficial oriundo da Escola Militar e que foi para a Guiné em cumprimento da sua primeira comissão, procurei analisar a qualidade do desempenho de outros Capitães que fossem igualmente oriundos da Escola Militar e tivessem ido para a Guiné na sua primeira comissão. Com esta metodologia tinha presentes duas das minhas hipóteses de trabalho: a formação base e a experiência.
Procurei, assim, analisar a vida e a qualidade do desempenho de outras Companhias, cujos Capitães fossem oriundos da Escola Militar e tivessem ido para a Guiné na sua primeira comissão, tendo optado pela seguinte forma de selecção da amostra: pedi ao meu filho que abrisse o livro “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), Fichas das Unidades, Guiné”, tendo o livro ficado aberto na página 436, na qual se encontra uma breve história da Companhia de Artilharia n.º 494, a qual foi comandada pelo Capitão de Artilharia Alexandre da Costa Coutinho e Lima.
Pedi depois à minha filha que repetisse o procedimento e o livro ficou aberto na página 127, na qual se encontra uma breve história do Batalhão de Caçadores n.º 2879. Este Batalhão formava a três Companhias operacionais, a primeira das quais foi comandada pelo Capitão miliciano de Artilharia José Fernando Covas Lima de Carvalho que, por doença, cedeu o comando ao Capitão miliciano de Artilharia João José Pires de Almeida Loureiro. A segunda Companhia foi comandada pelo Capitão miliciano de Infantaria Luís Fernando da Fonseca Sobral e a terceira Companhia, com o n.º 2549, pelo Capitão de Infantaria Vasco Correia Lourenço.
Pela ordem da metodologia estabelecida era a terceira Companhia a que reunia as condições impostas para o estudo, por ter sido comandada por um Capitão de carreira, como Canha da Silva. Desloquei-me então ao AHM onde consultei os elementos ali disponíveis sobre as histórias destas duas Companhias. O que vi e li é bastante elucidativo e esclarecedor para tudo o que procurava saber. Desse conhecimento se dá conta.
O Capitão de Artilharia Alexandre da Costa Coutinho e Lima é o mesmo Oficial que, com a patente de Major e chefiando o COP 5, ordenou o abandono do Aquartelamento de Guileje, pelas 4 horas do dia 22 de Maio de 1973. As tropas que saíram deste Aquartelamento dirigiram-se para Gadamael Porto, onde não havia condições de defesa. A guerrilha atacou então as tropas neste Aquartelamento e as baixas portuguesas cifraram-se em 34 mortos e 150 feridos.
A Companhia comandada por Coutinho e Lima chegou à Guiné no início da luta armada, no dia 22 de Julho de 1963 e de onde partiu no dia 24 de Agosto de 1965. Foi colocada no Sul, em Gadamael, onde passou a maior parte da sua comissão.
Consultada a documentação que, no conjunto, constitui a história desta unidade, nada de relevante se observa, porém, um elemento deixa qualquer investigador negativamente impressionado, foram punidos 50 dos homens desta Companhia: 45 Praças e 5 Sargentos, ou seja, 36% do efectivo. Sem mais adjectivos, concluí a caracterização de um Oficial que nunca o devia ter sido.
A Companhia comandada pelo Capitão de Infantaria Vasco Correia Lourenço chegou à Guiné no dia 25 de Julho de 1969 de onde partiu, de regresso à Metrópole, no dia 26 de Junho de 1971. Em 30 de Julho de 1969 foi colocada em Cuntima, no Sector de Farim, no norte da Província.
A leitura dos documentos sobre esta Companhia impressiona pela negativa e revela o que foi a Guerra de África e como a mesma foi, na generalidade, conduzida. Ao folhear as páginas, li a seguinte frase, sobre o que se teria passado no dia 30 de Maio de 1970 isto é, 10 meses após a chegada da Companhia a Cuntima: “Sua Ex.ª o General Comandante-Chefe visitou Cuntima da qual resultou uma tremenda crítica à acção do Comandante de Batalhão e do Comandante de Companhia”. O Comandante-Chefe era o General António de Spínola.
Na página seguinte e sobre o que se teria passado no dia 2 de Junho ou seja, 3 dias após a visita de Spínola, li: “O Ex.mo Comandante de Batalhão foi levado a Cuntima, por Sua Ex.ª o Brigadeiro Comandante Militar, a fim de tomar medidas sobre os assuntos focados na crítica de Sua Ex.ª o General Comandante-Chefe, seguindo no mesmo dia para Bissau e outras localidades, para visita de estudo a vários aquartelamentos, com a finalidade de poder aplicar em Cuntima os ensinamentos colhidos.” Esclarecedor: vai um Brigadeiro levar um Tenente-Coronel a vários aquartelamentos para aprender e depois ensinar o Capitão Vasco Lourenço que, depois de «cursar» a Academia e após 10 meses na Guiné, apresentava carências desta natureza.
Pela sua relevância histórica e pelo que contém de pertinente para a investigação, enquanto prova empírica de um comportamento e de uma relação social, transcrevo o despacho de Spínola sobre a sua visita a Cuntima, despacho que foi publicado pela circular n.º 2237/C - P.º 33.8, da REP OPER .
1. Inspeccionei no dia 30 do passado mês a guarnição militar de Cuntima
Desde há muito que estava informado de que o ambiente disciplinar da CCaç 2549 era mau e que nos últimos tempos piorara.
Acusação: falta de aptidão do Capitão para Comandar.
O que vi, observei e ouvi na inspecção a Cuntima, excedeu tudo o que se possa imaginar.

2. Rancho

O pessoal queixou-se de que há cerca de 15 dias se encontrava sem batata e arroz e que teve falta de farinha e sal.
Averiguada sumariamente a origem de tal anomalia, imediatamente concluí pela existência de graves negligências do CMDT/Compª (4) e do Vaguemestre (5) .
Ambos se encontram de licença, com o conhecimento do CMDT/Bat. (6)
3. Alojamento de Pessoal
As condições de alojamento são péssimas, com a agravante de se encontrar em construção um aldeamento que oferece a experiência suficiente para se improvisarem rapidamente instalações aligeiradas, que satisfaçam condições mínimas de habitabilidade.
Há pessoal a viver em abrigos, que são buracos absolutamente inabitáveis.
O pessoal encontra-se há dez meses na Província e ainda não tem colchões.
Porquê? Quando unidades mais recentes já os têm.
4. Armamento
Encontrei G3 em péssimo estado de limpeza e conservação, o que denota que há muito tempo não é passada revista ao armamento, negligência grave de comando em campanha.
Note-se que as Companhias Africanas e as milícias vêm revelando especial cuidado com a conservação do armamento.
5. Acção disciplinar sobre o pessoal
Proíbo que com base na presente inspecção se punam soldados (refiro-me ao armamento), pois as faltas por mim detectadas encontram-se cobertas pelos Comandantes de Pelotão e estes pelo Comandante de Companhia a quem deve ser pedida responsabilidade.
A boa actuação do alferes encarregado dos reordenamentos. Levantou problemas válidos que imediatamente foram resolvidos, e que revelaram uma precária assistência por parte do CMDT/Bat.
7. O soldado chefe da equipa de Engenharia não vem cumprindo devidamente com os seus deveres, de que resulta um muito baixo rendimento da referida equipa.
Este facto já devia ter sido detectado e resolvido adequadamente.
8. O CMDT/CTIG (7) deve providenciar no sentido do CMDT/Bat. se deslocar a PELUNDO, e o CMDT/CCaç 2549 (8) a PELUNDO e JOLMETE, para verificarem o que é possível fazer-se em matéria de instalações numa zona de esforço, simultaneamente com a actividade operacional.
Salienta-se que a Companhia de JOLMETE foi comandada por um Capitão do QC e encontra-se proposta para a medalha colectiva da Cruz de Guerra de 1.ª Classe.
9. Inspeccionarei CUNTIMA dentro de um mês. O Sr. CMDT/CTIG e CMDT/BAT. adoptarão as medidas necessárias, em ordem a resolver todas as anomalias detectadas”.
A gravidade da situação referida no ponto 4, «G3 em péssimo estado de limpeza e conservação», pode aferir-se com a notícia que circula, com base num relatório recente do Exército americano, segundo a qual o acidente com a Soldado Americana no Iraque, Jessica Lynch, se ficou a dever, entre outras razões, à “má manutenção das armas” (9) . O que pode significar que as armas dos Soldados Americanos não tenham disparado convenientemente por falta de limpeza.
Conheço bem a gravidade que pode provocar a falta de conservação das armas, o que testemunho comigo próprio e com os homens que cumpriram sob o meu comando directo: nunca parti para uma operação sem que a arma estivesse limpa e o carregador que seguia colocado na arma tivesse sempre balas novas, ou seja, utilizava 7 carregadores; no entanto nem sempre havia tiros, mas quando isso acontecia e, mesmo que voltasse a sair no dia seguinte, descarregava um carregador, limpava-o e voltava a carregá-lo, mas com balas novas.
Os Soldados que manuseavam as metralhadoras faziam o mesmo: a fita de munições que seguia colocada na arma para ser disparada em primeiro lugar, tinha sempre os elos lavados com gasóleo e as balas eram sempre novas. Como vimos na página 232, o 7.º mandamento dos Pára-Quedistas dizia que “o Pára-Quedista sabe que só triunfará quando as suas armas estiverem em bom estado. Por isso, obedece ao lema: «primeiro cuidar das armas, só depois dele próprio»”. Compreendo assim perfeitamente a perplexidade de Spínola ao ser confrontado com aquele estado do armamento.
A circular da responsabilidade do General António de Spínola revela que o Capitão Vasco Correia Lourenço, um Capitão da Academia, não tinha aptidão para comandar. O seu pessoal passava fome, vivia em buracos e dormia sem ao menos um colchão. Na Guiné nos meses de Julho, Agosto e Setembro, que aqueles homens já ali haviam passado, as chuvas caem com a violência de verdadeiros dilúvios e, estes jovens, filhos de Portugal, dormiam num buraco e no chão.
O armamento estaria próximo da inoperacionalidade: as G-3 enferrujam bastante o que torna duvidoso o seu funcionamento, nessas condições. E estavam em guerra, ainda que aquela fosse uma zona relativamente serena, o que lhes valia. Spínola, experiente e conhecedor, proíbe que sejam punidos os Soldados.
Por fim, em termos severamente humilhantes, Spínola inferioriza a Companhia de Vasco Lourenço relativamente às Companhias de homens africanos e às próprias milícias, terminando por ordenar que o Capitão da Academia fosse aprender com um Capitão miliciano, que comandara a Companhia colocada em Jolmete.
O mínimo que se pode afirmar é que a formação militar não teve, neste caso, qualquer influência na qualidade do desempenho, a diferenciação esteve nos valores e nas capacidades pessoais. Spínola ordena que Vasco Lourenço vá aprender com um miliciano. Sobre esta circular o Comandante de Batalhão, Tenente-Coronel de Infantaria António José Ribeiro, exarou o seguinte despacho:
“Ciente.
Foram tomadas as providências requeridas.
Tinha conhecimento pessoal dos assuntos expostos, excepto na falta de aptidão do Cap. para Comandar, só está há dois meses sob o meu comando, e do estado de limpeza das G3. Aguardo a chegada do Vaguemestre da Companhia para o ouvir nos termos do Art.º 130.º do RDM (Regulamento de Disciplina Militar) e puni-lo, caso, como parece verificar-se, haja incúria nos serviços a seu cargo.”
O resultado da audição ao Vaguemestre traduziu-se na punição deste, pelo Comandante de Batalhão, nos seguintes termos:
“Puno com 10 (dez) dias de detenção o Furriel (...) (10) por no desempenho das funções de Vaguemestre da sua Companhia ir acumulando erros de controlo que levaram ao aparecimento de uma situação crítica, sem procurar esclarecer as suas dificuldades junto de sargentos mais experientes que existiam na sua subunidade...” o Comandante de Batalhão, ao punir o Vaguemestre, assume que os Sargentos é que sabiam. E o Capitão!?
Este despacho retrata o outro exército, aquele que não queria abordar, por não lhe reconhecer os valores que identificam os exércitos institucionais. No meio de tanto alheamento, incompetência e incúria, o Furriel é responsabilizado por se não ter «esclarecido junto dos sargentos», sem uma palavra sobre o oficialato. Afinal, este foi o exército do Sargento, da não elite, do Soldado anónimo. Aqui estão as raízes e as justificações das correntes, facções e grupos de Oficiais que “caíram” em Lisboa na madrugada de 25 de Abril de 1974. Aqui estão as justificações do ódio que alguns Oficiais, auto-designados como democratas, nutriam por Spínola. Mas estão também, aqui, as consequências dos erros de recrutamento do oficialato, seguido pelos políticos portugueses. Tanta cautela política do anterior regime conduziu à pior das consequências.
Algumas notas soltas dão-nos conta do ambiente que se passou a viver em torno de Cuntima, tais como: “O Comandante fez incidir a sua presença sobre Cuntima a fim de solucionar os problemas focados na crítica atrás referida, dentro do prazo de um mês estabelecido por Sua Ex.ª o General Comandante-Chefe.”
“Sua Ex.ª o General Comandante continua com o Batalhão sob observação.
Admite-se que os factos passados em Cuntima e referidos no mês de Maio estejam na base desta observação atenta.
O Oficial de Operações é impedido de gozar a sua licença.
Todos os factos relatados abalaram psicologicamente o Comandante de Batalhão.”
Em 17 de Julho de 1970 a Companhia de Cuntima foi transferida para Farim, sede do Batalhão, e a Companhia que estava em Farim foi para Cuntima.
Em 21 de Julho, já em Farim, “o Comandante da CCaç 2549, Capitão Vasco Lourenço, (solicitou) a Sua Ex.ª o General Comandante-Chefe que modificasse a opinião formada, e lhe desse a mesma divulgação que a crítica tinha tido.” Com o que se fica a saber que Spínola tinha divulgado a circular. A divulgação dum documento desta natureza e com estes fundamentos «arrasa» qualquer profissional. Estávamos a 4 anos do PREC, onde as «contas» se viriam a ajustar.
Spínola não só não modificou a opinião formada, como exarou o seguinte despacho, em 30 de Julho, desse mesmo ano de 1970:
“Li atentamente a exposição do Sr. Comandante de Companhia de Caçadores 2549.
Embora reconheça e respeite o seu legítimo desejo de defesa e reabilitação, mantêm-se válidas todas as críticas anteriormente formuladas.
Tudo o que se faça para justificar a situação de manifesta precariedade em que encontrei a Companhia, nos seus vários aspectos, resulta negativo perante a constatação do que foi possível fazer-se a seguir à minha visita.
Ao Comandante-Chefe interessa fundamentalmente a resultante e não as diligências efectuadas. Por outras palavras: os soldados não comem ‘notas nem mensagens’, comem batata, e também não dormem sobre ‘notas, diligências, conversas, etc. ...’ mas sim sobre colchões que não tinham e que apareceram dum dia para o outro.
Sendo assim, as justificações apresentadas não alteram a crítica formulada, tanto mais que muito se podia ter feito na esfera das possibilidades do Comando da Companhia.
Em resumo, verificou-se falta de determinação, aquela determinação que tem realizado ‘milagres’ no TO da Guiné em alguns aquartelamentos com vista a melhorar as condições de vida dos nossos soldados.
Aliás, a forma como encontrei a Companhia um mês depois mais reforça a razão em que se baseiam os presentes comentários”.
Não me preocupa o entendimento que o General Spínola seguia quanto à qualidade do desempenho, mas considero relevante referir a existência de uma idêntica interpretação sobre este assunto. Com efeito, avalio a formação, não pelo currículo dos cursos frequentados, mas pela qualidade do desempenho; Spínola afirmou: “Ao Comandante-Chefe interessa fundamentalmente a resultante e não as diligências efectuadas”. (Sublinhado meu).
Nos últimos tempos em que permaneceu no TO da Guiné, concretamente nos dias 8, 9 e 10 de Junho de 1971, a Companhia de Vasco Lourenço executou na área de Bricana a operação “Última Vendetta” durante a qual e segundo o relatório da operação, destruiu 44 moranças (11) , 58 vacas, 15.700 kg de arroz, 1 porco, 60 molhos de capim, 1 capinzal pronto a ser colhido, milho, óleo de palma, galinhas, artigos escolares e outro material diverso sem interesse militar, destruído grande quantidade.
O relatório da operação é um pouco sumário e não descreve onde estavam as ditas moranças mas, pela sua quantidade, deveria tratar-se de um tabancal, que poderia designar por aldeia, de consideráveis dimensões. Para aqueles que se afirmam contra a Guerra a «façanha» é de relevo. Operacional fui eu, em tropas de elite, durante 26 meses e nunca a minha Companhia destruiu qualquer produto alimentar da população.
Em resumo, observa-se que os três Capitães, Comandantes de Companhias de quadrículas, apesar de terem todos a mesma formação militar e a mesma experiência, um deles, Canha da Silva, revelou-se um Oficial de valor, o que não aconteceu com nenhum dos outros dois. Viu-se mesmo, através destes relatos, que havia milicianos prontos a ensinarem Capitães de carreira.
Para o desempenho das missões que eram atribuídas a estes Oficiais, todos, inclusive os milicianos, dispunham dos conhecimentos militares necessários. Não se pode afirmar que estes ou aqueles não tinham formação técnica suficiente, todos a tinham. Não foram questões técnicas que implicaram baixos desempenhos, que determinaram, por sua vez, as consequências que todos conhecemos: um abandono apreçado de África, com grandes perdas para os portugueses e não menos para os africanos, muitos dos quais lutaram e trabalharam ao nosso lado. A qualidade do desempenho, possuindo conhecimentos técnicos suficientes, depende em grande parte das características pessoais, que nuns indivíduos abundam, enquanto noutros escasseiam.
Analisando o comportamento e a qualidade do desempenho das unidades de quadrícula, algumas observações se extraem:
A qualidade do desempenho das unidades de quadrícula revestia-se de grande importância, porquanto eram elas que determinavam as posições da população: maior apoio às autoridades portuguesas e o consequente afastamento da guerrilha ou o afastamento das autoridades estabelecidas e o apoio à guerrilha. Sendo certo que a guerrilha não pode viver sem o apoio explícito da população, compreende-se a importância destas unidades.
Como já sublinhei, as condições de vida dos militares vindos da Metrópole eram, de um modo geral, muito precárias. Contudo, o trabalho, a inteligência, a liderança e o desembaraço, o aprumo e a capacidade de comando e de decisão, poderiam minimizar as condições desfavoráveis e criar mesmo algumas condições de vivência.
O comando e a articulação da tropa branca com a tropa nativa determinavam outra vertente de equilíbrio entre o valor humano, a complacência, a rigidez e a objectividade da missão.
As matérias determinantes deste desempenho não eram ministradas na Escola Militar. E muito dificilmente o poderiam ser. Neste sentido, a própria formação técnico-táctica não conferia qualquer qualificação para a função a desempenhar. Os conhecimentos básicos adquiridos nos cursos de milicianos eram suficientes para organizar a defesa imediata e de proximidade dos Estabelecimentos militares. Compreende-se assim, que se tenha tornado indiferente, para a qualidade do desempenho, que o Capitão fosse de carreira ou miliciano.
O desempenho das Companhias de Quadrícula estava completamente dependente do Comandante de Companhia. A capacidade deste, considerando que os conhecimentos técnico-tácticos eram suficientes dependia, em absoluto, das suas características pessoais e dos valores que o orientavam enquanto ser humano.
Sendo indiferente a formação técnico-táctica, o regime errou profundamente na forma e no modelo que adoptou para formar Capitães; e a Academia não cumpriu, minimamente, o seu objectivo. Não formou combatentes nem líderes militares; formou grupos de pressão que liquidaram o império, sem honra, nem glória, nem futuro.
A experiência não era muito importante, uma vez que todos os homens da Companhia eram colocados em sector ao mesmo tempo, pelo que não havia ninguém com mais experiência do que o Capitão que pudesse realçar algum erro ou alguma deficiência deste. Os erros tácticos por falta de experiência também não se notavam, pelo simples facto de não haver muitas atitudes tácticas a assumir, já que a actividade operacional era progressiva. Tratava-se de unidades com funções estáticas, que nos seus primeiros tempos em sector não actuavam isoladamente em locais muito afastados dos seus pontos de estacionamento. Os seus actos eram genericamente repetitivos, não proporcionando grandes surpresas, característica principal de uma guerra de guerrilha.
A experiência era, contudo, necessária quanto ao comando de homens, particularmente em situações tão difíceis e com tantas carências. Esta experiência poderia e deveria ser obtida quando o Oficial detinha os postos de Alferes e de Tenente, posições em que comandava Pelotões e adquiria prática no contacto directo com as tropas. A norma que se foi acentuado, segundo a qual os homens da Academia iam para África já em Capitães, impedia-os de adquirirem essa experiência. Ao contrário, os Capitães milicianos que já tinham cumprido uma comissão como Alferes, possuíam esta experiência, o que permitiu uma vantagem considerável dos Oficiais milicianos face aos Oficiais do quadro.
Portugal viu-se assim com dois exércitos: o dos valores, vocacional ou institucional, e aquele para onde foram apenas os que procuravam um emprego, que posso designar por ocupacional. Só os primeiros devem constituir os exércitos, por só eles reunirem condições para defender os interesses do País. Para Clausewitz a guerra é o reino do perigo, daí que o valor seja a virtude guerreira por excelência (Clausewitz, 1973: 77).

NOTAS do texto:

(1) Caixa n.º 120 - 2.ª Div. / 4.ª Sec., AHM.
(2) Todos os elementos sobre esta Companhia encontram-se na Caixa n.º 110 - 2.ª Div./ 4. º Sec., AHM.
(3) REP OPER significa Repartição de Operações.
(4) Comandante de Companhia.
(5) Responsável pela alimentação.
(6) Comandante de Batalhão.
(7) Comandante do Comando Territorial Independente da Guiné.
(8) Termo que designa o Comandante de Companhia, Capitão Vasco Lourenço.
(9) Jornal “24 Horas” de 12 de Julho de 2003, p. 15.
(10) Omito o nome do Furriel, por considerar injusto que, no meio de tanta incúria e incompetência se responsabilize apenas o «pobre» Furriel miliciano, que estava ali, apenas porque a Pátria lho ordenara.
(11) Conjunto de tabancas pertencentes à mesma família.

(continua)

Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados

6. Aspectos positivos

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