sexta-feira, 27 de agosto de 2010

M246 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - XIII

ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M234 a M244. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M233, M234, depois a M235… M236... M237… etc.
Manuel Godinho Rebocho
2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas 12)
Bissalanca/Guiné

1972 a 1974
O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.

Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M233 a M244:
III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES
(continuação)

a) Jemberém
Os Guerrilheiros não conseguiram evitar a construção da estrada entre Cadique e Jemberém, mas criaram as maiores dificuldades ao Destacamento do Exército que foi aberto nesta última localidade, com um efectivo de duas Companhias e um Pelotão de Artilharia, tendo como Corpo de Oficiais apenas um Capitão miliciano e cinco Alferes também milicianos. Quanto a armamento pesado o Destacamento possuía um morteiro 80 e dois obuses 10,5 com granadas em número suficiente “para manter o psico dos militares” (1). Em jeito de conclusão da nossa longa entrevista dizia-me António Augusto: “Não posso deixar de comentar como foi possível acontecerem situações como aquelas que os nossos governantes da altura nos fizeram. Temos a consciência que nenhuma guerra se faz só com os profissionais; os milicianos também têm que fazer parte dela; mas falo da Guiné que foi o que conheci, nós milicianos e os soldados fomos pura e simplesmente despejados para zonas das quais não conhecíamos nada nem sabíamos o que é que íamos fazer.
Ter um Comandante de Batalhão, que não sei se comunicámos mais de vinte vezes, que nunca teve a coragem de nos visitar, que nunca nos apoiou em nada, sendo ele profissional, foi no mínimo uma irresponsabilidade total.” (2)
Os Guerrilheiros tentaram impedir por todos os meios o abastecimento destes militares. No dia 13 de Maio, uma força da CCP 122, na altura estacionada em Cadique, foi emboscada por uma força de 30 Guerrilheiros quando escoltava uma coluna de abastecimentos para Jemberém.
Dos confrontos entre os Guerrilheiros e esta Companhia, durante os dois meses que permaneceu em Cadique, resultou a morte de 1 militar Pára-Quedista e ferimentos em mais 18.


Um dos dois obuses 10,5 que guarneciam Jemberém. Vê-se ainda parte do espaldão que proporcionava alguma segurança aos homens que utilizavam esta arma, nos momentos em que estivessem a ser atacados. É também visível um abrigo contíguo ao espaldão e o próprio Alferes António Augusto.
Fotografia de António Augusto


Canhão sem recuo instalado numa posição defensiva e, como habitualmente, na periferia dos Destacamento e ao nível do solo
Fotografia de Costa Ferreira



Delgadinho Rodrigues examinando as valências do Canhão sem recuo rotativo instalado em Jemberém. Este canhão, de origem russa, foi capturado aos guerrilheiros, tem um calibre menor do que o canhão português, mas neste caso era vantajoso pois tem um ângulo de tiro de 360.º, o que motivou a sua colocação num ponto mais elevado e no interior do Aquartelamento. A criatividade destes milicianos no aproveitamento das potencialidades do canhão, revelam, com toda a clarividência, que para este tipo de guerras a formação técnica tem, efectivamente, uma menor contribuição do que as capacidades pessoais.
Fotografia de Delgadinho Rodrigues
A CCP 122 regressou a Bissau a 15 de Maio e o Exército estacionado em Cadique não era capaz de abastecer Jemberém, já que a guerrilha lhe fazia frente, não os deixando passar, pelo que a «pérola» ficou isolada. A CCP 123, que ainda estava em Caboxanque, foi enviada de urgência para Cadique no dia 17 de Maio. Dois Pelotões seguiram a pé, os outros dois, onde se incluía o meu, seguiram numa barcaça de pesca particular.
Mas o Estado-Maior parece ter ignorado ou não ter ponderado devidamente as marés, pelo que quando saímos de Caboxanque, ao entrarmos no rio Cumbijã, fomos surpreendidos com uma corrente violenta, devido ao vazamento da maré e o consequente abaixamento das águas no rio, tendo o barco encalhado num banco de areia e ficado a «balançar».
Uma catástrofe esteve iminente, que se traduziria em 70 homens.
Com muita serenidade e disciplina, com o Capitão de pé a meio do barco, mandando que um homem se chegasse «devagarinho» para a esquerda ou para a direita, lá fomos evitando que o barco se inclinasse de todo e fosse arrastado pela corrente violenta. Através de contacto rádio conseguiu-se o apoio de Cufar, que enviou dois Soldados com um barco Sintex, que transportava 7 ou 8 homens. Muito devagar e com igual quantidade de paciência, lá fomos passando de um barco para o outro, até que por fim respirámos de alívio, estávamos todos molhados e cheios de lama do tarrafo, mas todos na margem do rio. Era meia-noite.
O resto do percurso foi feito a pé, com as botas cheias de lama. Ao nascer do Sol chegámos a Cadique, onde o Exército nos tinha preparado um café bem quente, e que muito bem soube. Nesse dia tomámos banho e limpámos as armas como se impunha, porque também elas estavam cheias de lama. Às 10 horas da noite, quando a população dormia e nos preparávamos para fazer o mesmo, como sugeria o cansaço da noite anterior, o Capitão chamou os graduados e, em voz calma e ar preocupado, disse-nos: “esta noite vamos para Jemberém”.
Ninguém comentou e o Capitão continuou: “à meia-noite apagam-se as luzes dando sinal de avaria do gerador (a preocupação era a de evitar que os Guerrilheiros fossem informados pela população, dos nossos movimentos); o Rebocho prepara um grupo de 15 homens e sai do estacionamento à uma hora, atravessa a última bolanha e embosca do lado esquerdo; o Delgadinho Rodrigues acompanhado pelo Furriel Oliveira preparam um grupo igual, saem colados ao grupo do Rebocho e emboscam do lado direito antes da última bolanha; o Alferes Eurico com o Furriel Pires preparam outro grupo igual, seguem colados ao grupo do Delgadinho Rodrigues e emboscam a antiga picada que ligava Cadique a Jemberém. Antes do Sol nascer, eu e o Tenente Sousa Bernardes, com o restante pessoal, saímos com as viaturas de abastecimento para Jemberém”.
Ninguém fez comentários, mas o Capitão cometia um excesso de confiança. Todos conhecíamos a zona e sabíamos que qualquer combate seria sempre depois da última bolanha, para onde seguia uma força de 15 homens com um só graduado. A tensão era grande e não nos íamos zangar por causa disso, eu tinha os meus Cabos que eram melhores que muitos Sargentos, por isso não me senti só.
Cumpriram-se as ordens que tinham sido emanadas do Comandante de Batalhão, um comando sabedor e criativo. Cheguei ao local e aproveitando uns raios de luz que a Lua proporcionava, reparei numa quantidade de terra que ali tinha ficado quando da construção da estrada. Mandei encostar ali o «meu pessoal» e, via rádio, informei o Comandante de Companhia que estava instalado. Os Guerrilheiros tinham sido ultrapassados e surpreendidos pelo arrojo da operação. Após o meu contacto com o Capitão, as tropas iniciaram os movimentos em Cadique, carregando as viaturas e desenvolvendo outros preparativos para seguirem para Jemberém.
Por volta das 3 horas e 45 minutos o Álvaro, que estava à minha direita, disse-me: “vêm aí meu Sargento”. Mandei-o calar para não fazer barulho. Um pouco depois volta a dizer-me: “estão a chegar meu Sargento”. No profundo silêncio e escuridão da noite ouvia-se o suave partir de ramos na floresta. Os Guerrilheiros não sabiam da nossa presença naquele local, mas já nos conheciam; só o nome os incomodava. Tínhamo-nos encontrado várias vezes, contra nós tinham perdido nos últimos meses, dois Comandantes de bigrupo, situação única nos treze anos de Guerra.
Falando junto à orelha do Álvaro à minha direita e recomendando a transmissão da ordem, repetida à minha esquerda, disse a todos os homens: “silêncio absoluto, ninguém dispara até eles encostarem o nariz às nossas armas”. Se eu merecia do Capitão uma tal confiança, que atribuísse tão difícil operação a um só graduado, os «meus rapazes» não a mereciam de mim menos e eu conhecia-os. É necessária muita calma e muita confiança em quem comanda, para não se ser tentado a disparar quando se pressente que um forte grupo armado se aproxima de nós. É, aqui, que reside a diferença dos combatentes e não nos cursos frequentados por cada um.
Os Guerrilheiros tiveram azar, vinham emboscar a coluna precisamente no local onde nós estávamos. Foi-lhes fatal. Ao pretenderem encostar-se ao mesmo morro de terra, onde estávamos encostados, todos nós disparámos ao mesmo tempo e o resto é fácil de imaginar. Os Guerrilheiros que conseguiram fugir, ou vinham mais atrasados, continuaram o tiroteio. Os disparos isolados e à distância prolongaram-se por várias horas. Muitas foram as movimentações de ambas as partes, mas nós sempre nos antecipámos. O Alferes Eurico ainda nos apoiou com dois tiros de morteiro, muito certeiros, a provar que os Alferes milicianos também podiam ser bons, desde que o fossem.
Com o dia já claro e o Sol sobre as árvores a coluna passou por nós; o Capitão seguia na viatura da frente, com o Sargento Palma, o melhor Sargento que estava na coluna; o Tenente seguia na viatura de trás com o Furriel Bica, o seu melhor graduado. No regresso as situações alteram-se, indo o Tenente na primeira viatura. O PAIGC teve 19 mortos e um número indeterminado de feridos — acabou-se a pressão sobre Jemberém. Os Pára-Quedistas não sofreram um arranhão.
Os Capitães tinham todos a mesma formação técnico-táctica, mas eram muito diferentes, tal como os Alferes e os Sargentos do quadro ou milicianos. Como se pode afirmar ou conceber uma grande relevância da formação técnico-táctica no âmbito do desempenho das elites combatentes? Quanto a estas elites, não restam dúvidas, o valor combativo reside no valor do homem: nas suas capacidades psicofisiológicas, na sua presença de espírito, na sua criatividade, na sua inteligência emocional, na sua disponibilidade para se expor ao risco, na sua lealdade, na sua solidariedade, na sua capacidade de liderança e comando.
No entanto, se as capacidades pessoais são determinantes, não são exclusivas; eu não teria sido capaz de comandar aquela acção quando cheguei à Guiné, nem nenhum dos outros graduados faria o que fez sem a experiência já acumulada, nem nenhuma das Praças seria capaz de nos acompanhar, sem a habituação que o tempo lhe dera. O conhecimento entre todos os homens é outro factor, que só se obtém com o tempo. Reconheço, porém, que uma formação mais centrada na componente psicológica do que na técnico-táctica, como efectivamente acontecia nas tropas Pára-Quedistas, também ajudava bastante.
Se a componente de formação estritamente técnico-táctica detém alguma influência, ela limita-se a alguns princípios muito básicos, conhecidos de todos os militares, tanto do quadro como milicianos. Não parecem ter assim, qualquer razão, aqueles que sustentam que as tropas não tinham a preparação suficiente para a guerra que enfrentámos. O que faltava era a motivação e também a justificação interior para tanto sacrifício, que não era compreendido pelos militares colocados em quadrícula em condições de extrema penosidade. 

Resolvida a questão Jemberém, iniciámos o embarque numa LDG para Guileje, no dia 22 de Maio, embarque que foi cancelado devido ao abandono de Guileje, nesse mesmo dia, pela respectiva guarnição. O cancelamento deste embarque constitui mais uma das muitas provas da incapacidade do Estado-Maior em prever o que se iria passar no futuro, já que deveria ter previsto que os Guerrilheiros passariam a bombardear Gadamael, logo que capturaram Guileje, bombardeamento que nunca se teria verificado se a CCP 123 tivesse continuado a sua marcha, agora não para Guileje mas para Gadamael, para onde foi efectivamente, mas só a 2 de Junho quando este Destacamento já estava a ser fortemente bombardeado.

NOTAS do texto:
(1) Segundo afirmação de António Augusto, então Alferes Miliciano a comandar uma das Companhias, em entrevista no dia 2005-07-13.
(2) António Augusto na mesma entrevista.

(continua)

Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados



Vista parcial do Aquartelamento de Jemberém, em Maio de 1973.
Fotografia de António Augusto
António Augusto ao lado de um invólucro do foguete de 122 mm, designado por Katiuska, frequentemente lançados sobre Jemberém.
Fotografia de António Augusto
Outro ponto do Aquartelamento de Jemberém, no qual estavam estacionadas duas Companhias de quadrícula e um Pelotão de Artilharia, perto de 300 homens.
Fotografia de António Augusto


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