ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M233, M234 a M241. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M233, M234, depois a M235… M236... M237… etc.
Manuel Godinho Rebocho
2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)
Bissalanca/Guiné
1972 a 1974
2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)
Bissalanca/Guiné
1972 a 1974
O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.
Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M234 a M241:
III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES
(continuação)
3.2.1.2.1.3 – Os Cabos Pára-Quedistas
Estando a estudar a formação das elites executivas segundo três hipóteses de trabalho, importa agora equacionar a componente formação técnico-táctica, sabendo que os membros de cada uma das três classes em presença tinham todos a mesma formação. No entanto, tinham um desempenho extremamente diferente, ficando provado que a formação técnico-táctica melhora o desempenho, mas não o determina.
Ao nível das Praças falo da minha Secção, que era semelhante a todas as outras. Nela havia homens de grande e média capacidade e outros muito fracos, como em todas as profissões e em cada uma das três classes militares. Reportando-me apenas aos Cabos, veremos que o desempenho é uma consequência das características pessoais, ou seja, das qualidades psicofisiológicas, com particular evidência para a liderança. E são estas lideranças ou vontades, como afirma Gaston Courtois, que um Comandante tem que saber gerir. Não precisa arriscar muito, mas tem que gerir bem.
a) O Ferreira
Este jovem de 20 anos, natural de Salvaterra de Magos, onde ainda vive e é um construtor civil de sucesso, era um líder natural. Adorava mandar, mas detestava ser mandado; tinha uma particular vocação para o negócio; para todo o lado que fôssemos ele montava um negócio; dizia tudo ao contrário do que pensava e algumas vezes se prejudicou por isso, porque levou outros a acostumarem-se a fazer tudo ao contrário do que ele dizia.
Ao nível das Praças falo da minha Secção, que era semelhante a todas as outras. Nela havia homens de grande e média capacidade e outros muito fracos, como em todas as profissões e em cada uma das três classes militares. Reportando-me apenas aos Cabos, veremos que o desempenho é uma consequência das características pessoais, ou seja, das qualidades psicofisiológicas, com particular evidência para a liderança. E são estas lideranças ou vontades, como afirma Gaston Courtois, que um Comandante tem que saber gerir. Não precisa arriscar muito, mas tem que gerir bem.
a) O Ferreira
Este jovem de 20 anos, natural de Salvaterra de Magos, onde ainda vive e é um construtor civil de sucesso, era um líder natural. Adorava mandar, mas detestava ser mandado; tinha uma particular vocação para o negócio; para todo o lado que fôssemos ele montava um negócio; dizia tudo ao contrário do que pensava e algumas vezes se prejudicou por isso, porque levou outros a acostumarem-se a fazer tudo ao contrário do que ele dizia.
A versatilidade dos Pára-Quedistas evidencia-se nestas duas fotografias do Cabo Costa Ferreira, em que na primeira trabalha com um Sneb, enquanto na segunda com uma metralhadora. Na segunda fotografia, a chegar ao Aquartelamento, é bem visível o cansaço provocado por longos km de caminhada.
Fotografias de Costa Ferreira
Merecidamente, o Soldado Costa Ferreira foi promovido a Cabo, por distinção, cujas divisas lhe foram colocadas pelo Comandante dos Pára-Quedistas na Guiné, Tenente-Coronel Araújo e Sá.
Fotografia de Costa Ferreira
Num treino com metralhadoras apercebi-me que o “Salvaterra”, como era conhecido, por causa da sua naturalidade, tinha um jeito particular para trabalhar com aquela arma e disse-lhe o óbvio, que ele passava a usar a metralhadora. Desde esse dia, cada vez que bebia um copo a mais, ia à minha procura para me dizer sempre o mesmo: que eu o castigava obrigando-o a usar a metralhadora. No dia em que se despediu de mim, para regressar à Metrópole em fim de comissão, disse-me: “tenho um segredo para lhe contar, eu adorei andar com a metralhadora. Quando lhe dizia o contrário era só para o chatear”. Também lhe contei um segredo: «sempre soubera o segredo dele».
Reparei mais detalhadamente no Ferreira quando, ainda no início da comissão, a Secção foi escalada para arranjar o jardim do Pelotão, nas instalações em Bissau. O Ferreira não esteve calado um segundo, ralhou o tempo todo sem, no entanto, ser indisciplinado. Talvez uma hora depois de termos iniciado o trabalho, eu disse à «minha rapaziada» “preciso ir estudar; se não vos parecesse mal eu ia-me embora e o Ferreira ficava a comandar a Secção”. Todos concordaram.
Umas duas horas depois apareceu-me o Ferreira dizendo: “gostava que o meu Furriel fosse ver se o trabalho está à sua vontade”. Estranhei um pouco a conversa e fui com ele. Cheguei ao local e tive uma enorme surpresa, considerando que fazer mexer os Soldados, neste tipo de trabalhos, é uma tarefa de monta. Estava tudo impecável. Compreendi então, e desde logo, que aquele jovem fazia tudo, desde que fosse ele a mandar. E os seus camaradas faziam tudo o que ele mandava, sem a mínima contestação. Não lhe disse, mas fiquei satisfeito. Tinha encontrado um colaborador de grande eficiência; um amigo dos bons e maus momentos. Porém, e em silêncio, a reciprocidade não foi menor.
Desde esse dia, em todos os trabalhos que era necessário fazer na unidade, quem comandava a Secção era o Ferreira. Os outros Sargentos ficavam cheios de ciúmes quando me viam abandonar os trabalhos e eles tinham que ficar acompanhando as suas Secções. Quando me diziam: “para ti não há trabalho, é só para os outros”, eu respondia: “vocês não têm Cabos à altura e têm que aí ficar”. O Ferreira vivia esses momentos de prazer, e eu essa conveniência. No entanto, a situação era tolerada pelos vários Capitães que, sucessivamente, comandaram a Companhia, porque eles sabiam o que eu ia fazer: estudar. Era assim uma responsabilidade partilhada.
b) O Gonçalves
O Gonçalves, que tal como o Ferreira, foi promovido a Cabo com base numa proposta que eu fiz e foi aceite pela cadeia hierárquica. Era um homem calmo, que nunca discutia fosse o que fosse, muito competente e decidido. Ninguém na Secção discordava duma ordem do «Cabo Gonçalves», como gostavam de o tratar.
Fotografia de Costa Ferreira
Num treino com metralhadoras apercebi-me que o “Salvaterra”, como era conhecido, por causa da sua naturalidade, tinha um jeito particular para trabalhar com aquela arma e disse-lhe o óbvio, que ele passava a usar a metralhadora. Desde esse dia, cada vez que bebia um copo a mais, ia à minha procura para me dizer sempre o mesmo: que eu o castigava obrigando-o a usar a metralhadora. No dia em que se despediu de mim, para regressar à Metrópole em fim de comissão, disse-me: “tenho um segredo para lhe contar, eu adorei andar com a metralhadora. Quando lhe dizia o contrário era só para o chatear”. Também lhe contei um segredo: «sempre soubera o segredo dele».
Reparei mais detalhadamente no Ferreira quando, ainda no início da comissão, a Secção foi escalada para arranjar o jardim do Pelotão, nas instalações em Bissau. O Ferreira não esteve calado um segundo, ralhou o tempo todo sem, no entanto, ser indisciplinado. Talvez uma hora depois de termos iniciado o trabalho, eu disse à «minha rapaziada» “preciso ir estudar; se não vos parecesse mal eu ia-me embora e o Ferreira ficava a comandar a Secção”. Todos concordaram.
Umas duas horas depois apareceu-me o Ferreira dizendo: “gostava que o meu Furriel fosse ver se o trabalho está à sua vontade”. Estranhei um pouco a conversa e fui com ele. Cheguei ao local e tive uma enorme surpresa, considerando que fazer mexer os Soldados, neste tipo de trabalhos, é uma tarefa de monta. Estava tudo impecável. Compreendi então, e desde logo, que aquele jovem fazia tudo, desde que fosse ele a mandar. E os seus camaradas faziam tudo o que ele mandava, sem a mínima contestação. Não lhe disse, mas fiquei satisfeito. Tinha encontrado um colaborador de grande eficiência; um amigo dos bons e maus momentos. Porém, e em silêncio, a reciprocidade não foi menor.
Desde esse dia, em todos os trabalhos que era necessário fazer na unidade, quem comandava a Secção era o Ferreira. Os outros Sargentos ficavam cheios de ciúmes quando me viam abandonar os trabalhos e eles tinham que ficar acompanhando as suas Secções. Quando me diziam: “para ti não há trabalho, é só para os outros”, eu respondia: “vocês não têm Cabos à altura e têm que aí ficar”. O Ferreira vivia esses momentos de prazer, e eu essa conveniência. No entanto, a situação era tolerada pelos vários Capitães que, sucessivamente, comandaram a Companhia, porque eles sabiam o que eu ia fazer: estudar. Era assim uma responsabilidade partilhada.
b) O Gonçalves
O Gonçalves, que tal como o Ferreira, foi promovido a Cabo com base numa proposta que eu fiz e foi aceite pela cadeia hierárquica. Era um homem calmo, que nunca discutia fosse o que fosse, muito competente e decidido. Ninguém na Secção discordava duma ordem do «Cabo Gonçalves», como gostavam de o tratar.
O Cabo Gonçalves: na fotografia da cima a montar segurança aos trabalhos da estrada Cadique-Jemberém, e na fotografia de baixo, onde é o segundo homem, patrulhando o sul da Guiné.
Fotografias de álbum pessoal
Os dois Cabos eram ambos muito competentes, mas totalmente diferentes enquanto pessoas. Quem tivesse estes dois Cabos teria forçosamente uma boa Secção e seria um bom Sargento, desde que os soubesse utilizar. Para se ter uma ideia do valor e do conceito em que a hierarquia tinha o Gonçalves, direi que ao iniciarmos uma das últimas operações que efectuámos quando da nossa primeira estadia em Cadique, o Capitão disse-me: “Rebocho parte na frente”. O Gonçalves que estava junto a mim, olhou para o Capitão e disse: “mas que (m.) é esta? É sempre o Rebocho na frente?” O Capitão ficou petrificado a olhar para mim, sem ser capaz de emitir ao menos um som. Salvei a situação ao dizer-lhe: “tens razão Gonçalves, hoje vou eu à frente”. Ao que ele respondeu: “não vai nada, quem vai à frente são os Soldados, venha lá para o seu lugar”, que sempre foi o terceiro. O Ferreira, igualmente muito bom, mas totalmente diferente reagiu na brincadeira, dizendo-me: “até dava jeito, se você morresse, víamo-nos livre de si. Mas depois nós não somos capazes de resolver a situação e morremos todos, por isso venha lá para o seu lugar, se morrer o da frente você safa os outros”.
Ambos os Cabos dizem o mesmo. Contestaram a posição do Capitão. Para nós andar na frente já se tinha tornado uma rotina, não querendo que eu siga em primeiro lugar, dizem-no de forma e em termos totalmente opostos um do outro. Para pessoas tão iguais em competência e tão diferentes em comportamento, eu tinha que ser igual na consideração, mas muito diferente no relacionamento. Em combate manda quem é capaz de mandar; e um Capitão pode «cumprir ordens» de um Cabo e até lhas agradecer se lhe resolver um problema e lhe salvar a vida. É assim a guerra, que só a conhece quem lá esteve. Nenhum manual, por mais perfeito, consegue traduzir as pressões que sente um Comandante de uma unidade em combate, quando vê caírem balas e rebentamentos por todos os lados e tem a consciência que todos os homens que o rodeiam estão suspensos de uma ordem sua, que pode não ser capaz de dar. Pelo que, se alguém o fizer, é muito bem-vindo.
Ambos os Cabos dizem o mesmo. Contestaram a posição do Capitão. Para nós andar na frente já se tinha tornado uma rotina, não querendo que eu siga em primeiro lugar, dizem-no de forma e em termos totalmente opostos um do outro. Para pessoas tão iguais em competência e tão diferentes em comportamento, eu tinha que ser igual na consideração, mas muito diferente no relacionamento. Em combate manda quem é capaz de mandar; e um Capitão pode «cumprir ordens» de um Cabo e até lhas agradecer se lhe resolver um problema e lhe salvar a vida. É assim a guerra, que só a conhece quem lá esteve. Nenhum manual, por mais perfeito, consegue traduzir as pressões que sente um Comandante de uma unidade em combate, quando vê caírem balas e rebentamentos por todos os lados e tem a consciência que todos os homens que o rodeiam estão suspensos de uma ordem sua, que pode não ser capaz de dar. Pelo que, se alguém o fizer, é muito bem-vindo.
c) O Álvaro
O Álvaro era um jovem que se apresentava e apresenta como o «5.º filho da ‘ti’ Maria das Barracas». Era um homem difícil, muito esperto e muito capaz. Chegou à Secção de uma forma enviesada: em Setembro de 1972 o meu Pelotão, devido ao sistema de rendições, tinha menos Praças que os outros, o que motivou a transferência de um Soldado de cada um dos outros três Pelotões para o meu. Sem surpresa, o 3.º Pelotão transferiu o Álvaro que foi colocado na 2.ª Secção, comandada pelo Furriel miliciano Cerqueira.
Por uma questão de compostura, os homens mais baixos formavam à frente. O Álvaro, como era muito alto, formava em último. Na primeira vez que formou na sua nova Secção colocou-se fora de alinhamento. O Furriel mandava-o chegar para o outro lado, e ele ajustava-se pouco de cada vez. Quando se apercebia que, chegando mais um bocadinho ficava alinhado, ele chegava muito, desalinhando-se para o outro lado. E a situação repetiu-se várias vezes sem que o Cerqueira «desse conta dele». Até que desistiu. Enquanto a «cena» durava, eu disse em voz baixa ao Alferes Fernando Pires Saraiva, que comandava o Pelotão: “importa-se que o Álvaro passe para a minha Secção?” Ao que este me responde: “é pá davas-me um grande jeito, já vi que ninguém dá conta dele”.
O Cabo Álvaro, o militar à esquerda na fotografia, pouco depois da captura do mais prestigiado chefe da Guerrilha no Cantanhez, o Comandante de Bigrupo Malam Camará
Fotografia de Costa Ferreira
Quando a formatura terminou, eu coloquei a mesma questão ao Cerqueira, que me respondeu colocando as mãos na cabeça: “é pá era o maior favor que tu me poderias fazer, já não posso com esse «gajo»”. Chamei o Álvaro e, como ambos éramos conhecidos na Companhia, fomos logo cercados pelos Soldados, que queriam ouvir a conversa, já que a ninguém passara despercebida a cena que ele fizera. Eu disse então ao Álvaro: “a partir deste momento formas na minha Secção, mas lembra-te: se te portares bem, tens aqui um «amigo do peito», se te portares mal tens a resposta”. O Álvaro não teve dúvidas. Cumpriu o que lhe disse e foi um dos meus melhores camaradas; mas eu também cumpri a minha missão: com frequência ele arranjava problemas, era a sua maneira de ser, mas eu sempre lhos ajudei a resolver.
3.2.1.2.1.4 – O Cantanhez
No dia 20 de Dezembro a Companhia iniciou o seu calvário. Desenvolveu uma operação a dois bigrupos — um formado pelos 1.º e 4.º pelotões, comandado pelo Comandante de Companhia e o outro formado pelos 2.º e 3.º Pelotões, comandado pelo Tenente Sousa Bernardes. Três grupos seguiram de avião até Cufar, de onde foram colocados na mata, de helicóptero tendo o 1.º grupo, que era o meu, onde se integrava o Capitão, sido helicolocado a partir de Bissau. Mal saltámos dos helicópteros sobre um capim com mais de dois metros de altura, o Capitão disse-me: “Rebocho segue na frente”. Quando ainda estávamos nos helicópteros vimos que íamos descer junto a um tabancal, com cerca de 20 palhotas, mas desconhecíamos a reacção de quem lá estava, pelo simples facto de se conhecer pouco do Cantanhez. O desconhecimento impunha cuidados a dobrar: mesmo que se visse alguém, não podíamos abrir fogo sem nos certificarmos que estava armado, o que implicava deixar a iniciativa ao adversário.
Ao ouvirem os aparelhos aéreos a população fugiu, pelo que entrámos no tabancal sem problemas. A correr passei para o lado oposto de onde tínhamos entrado. Mandei colocar o «meu» pessoal em linha para garantir que se alguém se aproximasse não nos surpreendia. Voltei para trás para fazer a minha própria inspecção (sempre fiz isso) e eis que um pato consideravelmente corpulento veio na minha direcção com o pescoço e bico muito estendido e soprando, aliás o que é próprio destes animais. As palhotas estavam todas a ser revistadas como que era habitual. Eu olhei para o pato e fiz em voz alta este comentário: “olhem, o pato quer ir comigo”. O Capitão que estava atrás de mim, disse-me: “ó Rebocho, ninguém pode tocar em nada, o nosso General não quer”, referindo-se a Spínola, certamente. Respondi-lhe: “então, não vê que estou só a cumprimentar o pato?”
Fez-se ali algum compasso de espera até que chegou o 4.º pelotão. Prosseguimos a marcha em patrulhamento e continuei à frente. Se a doutrina recomendava a escolha de quem seguia na frente, tal escolha tem que ser feita com ponderação e com tacto, que ali faltou. Todo o dia andei à frente, rompendo mata, correndo todos os riscos. Algumas vezes eu próprio em primeiro lugar para ajudar os «meus» Soldados e ninguém se apresentava para me substituir, nem o meu amigo Palma.
De cansado, passei ao estado de furioso. Ninguém tomava a iniciativa de me substituir, mas também não o pedi a ninguém. Encontrámos outro tabancal, cuja população não fugiu. Passei com cuidado, cumprimentei quem ia encontrando e montei a segurança no fim do tabancal. Ao cabo de algum tempo recebi ordens para continuar a marcha, mas sempre à frente.
Ao aproximar-se a hora de recuperação recebi a tradicional ordem de comando: “graduados ao centro”. Esta ordem, transmitida de homem a homem ao longo da coluna, tinha um significado conhecido, o Capitão queria reunir com todos os graduados. O termo centro não tem um sentido geométrico, mas significa que quem está para a frente vem para trás e quem está para trás vai para a frente, até chegarem junto do Capitão.
Como vou à frente sou o último a receber a ordem. Não me ausentei sem colocar os «meus» homens em posições que, no momento, nas condições do terreno e das armas que possuem me pareciam as mais seguras. Informei a todos que me ia ausentar e quem comanda a Secção na minha falta momentânea. Ao chegar junto do primeiro homem que já não era da minha Secção vi que está carregado de bens que tinha retirado das palhotas, tal como todos os outros daí para trás. Se, do estado de cansado passei ao estado de furioso, agora estava perplexo e compreendi o que tinha acontecido.
Durante o tempo em que tudo fez para me prejudicar, o Capitão assumiu compromissos que agora estava a pagar: ninguém o respeitava; na mata cada um manda para si. Mas isto não podia ser, se houvesse um ataque, o pessoal nem sabia onde tinha a arma, tal era o carrego que todos levavam. Para sermos mais precisos, cada um, Oficiais, Sargentos e Praças roubou tudo o que viu e que lhe dava jeito.
Deixei de estar furioso e perplexo e passei a estar preocupado. Se houvesse um ataque ninguém era capaz de reagir e o Capitão tinha perdido o controlo das tropas. Ironia, das ironias, tinha que ser eu a colocar de novo o Capitão no «comando». Com este pensamento cheguei junto do grupo de graduados, estando tanto Oficiais como Sargentos igualmente carregados, conquanto o Capitão nada tivesse, é justo esclarecê-lo. A falta de sentido prático era tal, que um Furriel miliciano até um dente de elefante levava. Estava explicada a razão pela qual o Capitão não mandava nenhuma outra Secção para a frente. Não podia, pois nenhuma estava em condições de lhe garantir a mínima segurança.
Parado, de pé, junto ao grupo de graduados, tive este desabafo com alguma «raiva» à mistura: “olhem para esta (m.), vocês não se envergonham? Eu ando um dia inteiro a romper mata e vocês parecem que vieram à feira”. O Capitão, que certamente estava interiormente revoltado, mas sem capacidade de actuar, aproveitou a «deixa» e disse: “seus filhos daqui, seus filhos dali, essa (m.) toda para o chão imediatamente, se alguém chega a Bissau com alguma coisa vai para a cadeia”. É evidente que o Capitão se excedeu, porque ele estava a acompanhar a situação havia muitas horas e a sua atitude só podia significar que não actuara anteriormente por medo.
Terminada a reunião em que se estabeleceu a ordem de retirada, cada graduado voltou ao seu posto. Ao longo do percurso até à frente avaliei a quantidade de produtos no chão, que se assemelhava a um normal mercado de rua. Chegados ao Batalhão, o Comandante de Companhia revistou todo o pessoal, incluindo Oficiais e Sargentos. Não encontrou nada e não «tocou» sequer na minha Secção. O Capitão não se entendia com ele próprio e não percebeu as consequências daquele acto: criara uma cadeia de comando paralela à sua.
Estas operações enquadravam-se na decisão de Spínola em reocupar de novo o Cantanhez, onde o PAIGC preparava declarar a independência da Guiné. Com este propósito foram abertos, nessa zona, no dia 12 de Dezembro de 1972, dois Aquartelamentos do Exército, em quadrícula: um em Caboxanque onde foi colocada a CCP 122 e outro em Cadique onde foi colocada a CCP 121. Em Cufar foi instalado o COP 4 que passou a ser comandado, em acumulação, pelo Comandante do BCP 12, Tenente-Coronel Pára-Quedista Sílvio Jorge Rendeiro de Araújo e Sá. Significa assim, que o Comando Operacional passou a ser da responsabilidade de um Oficial Pára-Quedista, estão duas Companhias instaladas na zona e a terceira Companhia desenvolve operações móveis por toda a região. O PAIGC concentra as suas melhores tropas no Cantanhez onde se vão enfrentar em força com os Pára-Quedistas.
Tanto a CCP 121 como a CCP 122 executavam diariamente operações, afastando o PAIGC. Foram vários os ataques sofridos, nomeadamente aos próprios Destacamentos onde estavam estacionadas. Os bombardeamentos da guerrilha sucediam-se, nomeadamente com mísseis Katiuska, ferindo vários homens. Os Guerrilheiros apontavam sempre aos sectores dos Aquartelamentos onde estavam os Pára-Quedistas. Para romper a mata e quebrar a movimentação dos Guerrilheiros, Spínola mandou abrir uma estrada entre Cadique e Jemberém, com o objectivo adicional de instalar mais um Aquartelamento nesta última povoação; o PAIGC fez múltiplos programas de rádio garantindo que jamais as forças portuguesas abririam tal estrada. Era o que se iria ver.
Entre os dias 28 e 30 de Dezembro a CCP 123 voltou ao Cantanhez, agora operando com os seus quatro grupos de combate separados, a 30 homens cada um. As outras duas Companhias, saindo dos seus locais de estacionamento, fizeram o mesmo. Doze grupos de combate de Pára-Quedistas rasgaram o Cantanhez em todas as direcções. Os Guerrilheiros não suportaram estes ataques contínuos e começaram a ceder, mas os Pára-Quedistas começaram a somar mortos e feridos.
No dia 10 de Janeiro de 1973 tenho o meu primeiro ferido mortal, o Soldado Pára-Quedista Adriano Rosa Martins. Um tiro lateral e certeiro ceifaria a vida a este jovem de 20 anos. Não houve erros da nossa parte, foi um acto de guerra, que muito lamento.
No dia 18 de Janeiro, a CCP 123 foi colocada em Cadique onde substituiu a CCP 121, que veio para Bissau. Uns dias antes da partida o Capitão chamou os graduados, a quem informou que não havia gostado da maneira como o 1.º Sargento Veiga lhe apresentara as contas do bar, referente ao tempo de estacionamento da Companhia em Nova Lamego, pelo que a partir daquele dia o bar passava a ser gerido por uma comissão. Não foi feliz esta ideia, porque o Veiga era o responsável pela alimentação e não saía do Aquartelamento, enquanto os outros graduados que estavam frequentemente na mata, tinham dificuldades em gerir o bar, não estando sequer por perto. Mas o Capitão insistiu: “era uma experiência” dizia ele. Quando foi para decidir quem ficava na dita comissão é que tudo se complicou: ninguém queria tal tarefa, pois, tratava-se apenas de um trabalho adicional e de uma responsabilidade acrescida.
«À moda da tropa» o Capitão perguntou ao Alferes Eurico Santos se era voluntário, respondendo este que não, mas se a pergunta significava uma ordem, então aceitava. O Capitão repetiu os termos ao Delgadinho Rodrigues e a mim próprio, que lhe demos semelhante resposta e a comissão ficou assim formada. Só que a comissão teve que se enfrentar com o grupo dos Primeiros Sargentos, que não aceitaram a desconsideração e, de certo modo, a desconfiança manifestada para com o Veiga. Para além, obviamente, de se acabarem os petiscos que o grupo fazia em Nova Lamego, que não seriam alheios àquela decisão.
Os contactos de fogo entre os Pára-Quedistas e os Guerrilheiros eram frequentes. No dia 31 de Janeiro, um bigrupo formado pelos 1.º e 3.º Pelotões foi ao fundo das Cachambas Balantas, onde estava estacionada uma importante força da guerrilha. O Comandante do bigrupo, Alferes miliciano Eurico da Silva Santos, mandou seguir na frente o Renato Dias e na retaguarda segui eu. Ao entrarmos na zona do quartel dos Guerrilheiros, os combates sucederam-se nos dois extremos da coluna mas como os dois Sargentos sabiam do seu ofício e com alguma técnica, muito desembaraço e bastante sorte, os militares portugueses saíram daquele inferno de fogo sem um arranhão, enquanto a guerrilha ficou seriamente abalada.
Início da estrada Cadique-Jemberém. Os arames que cortam a estrada delimitam o Aquartelamento de Cadique
Fotografia de Costa Ferreira
Uma patrulha no limite da mata com a bolanha
Fotografia de Costa Ferreira
Fotografia de Costa Ferreira
O Sargento Pára-Quedista Delgadinho Rodrigues, à porta da secretaria da Companhia 123, em Cadique, parecendo meditar sobre a maneira como haveria de contribuir para a resolução do puzzle em que estávamos envolvidos.
Fotografia de Delgadinho Rodrigues
A liderança informal da Companhia continuou adiada. Os dois Sargentos, que já lideravam, tiveram comportamento equivalente, elevaram o seu prestígio no interior da unidade, mas nada ficou decidido, pelo menos em termos definitivos. Os dois Sargentos eram pessoas muito diferentes: o Renato Dias tinha apenas a 4.ª classe, o que hoje se designa por 1.º Ciclo do Ensino Básico, como todos os outros Sargentos. Adorava os Soldados e era duma docilidade extrema para com os Oficiais, o que o tornava um homem muito respeitado; eu era o oposto — dizia o que tinha que ser dito, a quem calhasse, contestava tudo o que considerava mal feito e criticava severamente os erros cometidos, fosse a responsabilidade de quem fosse, mas os estudos já realizados e então em curso pesavam a meu favor.
Três dias depois, quando a noite começou a escurecer, o Aquartelamento de Cadique foi violenta e demoradamente bombardeado com morteiros 81 e canhões sem recuo. No dia seguinte e após uma cuidada inspecção, concluímos que as granadas tinham caído todas na zona onde estavam os Pára-Quedistas, pois Cadique era uma unidade de quadrícula, onde estava uma Companhia do Exército. Os Guerrilheiros colocaram as granadas com grande precisão, pelo que o ataque a Cadique não era indiscriminado, mas cirúrgico. Havia que tomar medidas rapidamente: os Guerrilheiros misturados com a população podiam entrar e sair do Estacionamento com toda a naturalidade; podiam inclusivamente efectuar uma inspecção como nós a fizéramos e, nessa mesma noite ou na seguinte, efectuar novo bombardeamento com o tiro mais corrigido e ser-nos fatal.
Importa referir que o Estacionamento estava cercado com arame farpado e o tabancal da população ficava no seu interior, o que permitia a circulação dos nativos com toda a naturalidade. Perto da nossa cozinha havia várias palhotas, junto das quais existia um abrigo subterrâneo construído pela população para se proteger da aviação portuguesa, que a atacava antes da abertura deste Estacionamento. Durante a inspecção que fiz, os Soldados disseram-me que antes do início do bombardeamento a população daquelas palhotas se teria juntado à porta do abrigo. Não eram necessários mais dados, a população tinha sido antecipadamente informada do ataque.
Chamei o Delgadinho Rodrigues, pois era na área do seu Pelotão que estava colocado o nosso morteiro 81, e os dois combinámos uma estratégia no sentido de evitarmos que nós e os nossos homens fossemos transformados em «churrascos» nessa noite ou na próxima. Fomos ao abrigo onde estava o morteiro e virámo-lo na direcção de Cadique Nalu, a povoação mais próxima, onde não havia tropa; mandámos chamar o Soba e dissemos-lhe: “vês para onde está virado o morteiro? Na próxima vez que formos atacados esmagamos Cadique Nalu e vamos atirar uma granada para dentro do vosso abrigo”.
O Soba, usando dos argumentos possíveis, afirmou-nos que não soubera antecipadamente do bombardeamento, o que não era verdade. Seria mesmo natural que ele próprio fosse Guerrilheiro, o que não surpreendia neste tipo de guerra, em que se «dorme com o inimigo», o que exigia que fôssemos engenhosos e criativos, que a técnica e o que se aprendia na instrução valiam de muito pouco.
Cadique foi bombardeada mais três vezes, enquanto a Companhia lá esteve: uma vez com apenas duas granadas e outra vez com cinco granadas, ao que podemos chamar apenas duas flagelações; em ambas as vezes a população já não foi para o dito abrigo, mas para outros mais longe da nossa posição; a última vez que nos bombardearam eu não estava no Estacionamento, mas a dormir na mata. O ataque, tal como o primeiro, violento e prolongado, foi positivamente dirigido aos Pára-Quedistas: toda a nossa cozinha e arrecadação, que ficavam no centro da área que ocupávamos, foram destruídas. Quando cheguei da mata fui falar como Soba e ameacei-o: “vocês atacaram ontem porque eu cá não estava, mas se isto se repete enforco-te naquela árvore”, enquanto apontava para uma árvore das proximidades. Cadique não foi mais bombardeada enquanto a minha Companhia lá esteve.
É evidente, que nunca pensei fazer o que disse ao Soba, mas não nos podemos esquecer que a guerra era de baixa intensidade de violência, mas de grande intensidade psicológica, que no caso funcionou, como funcionava sempre. As guerras de baixa tecnologia e violência exigem grande criatividade.
A baixa tecnologia e a grande criatividade funcionavam e manifestavam-se nos mais variados aspectos. Era o caso, por exemplo, de os Guerrilheiros saberem onde estavam os nossos Aquartelamentos; desde logo, quando os queriam bombardear, tinham todas as referências, nomeadamente podiam colocar, e colocavam, homens seus no meio da população, os quais, via rádio, lhe iam orientando o fogo, o que lhe permitia grande eficiência. Para respondermos ao fogo, atacando as bases de onde nos atacavam, a Artilharia montou uma rede de recolha de informação a que chamávamos o satélite «Cantanhez».
Em Cufar e em Bedanda estavam instaladas baterias de Obuses 14 e em Cabedú uma bateria de Obuses 8,8 que, no seu conjunto cobriam todo o Cantanhez. Em todos os Aquartelamentos da zona, estava fixo ao solo um bidão de 200 litros, em cuja tampa superior se desenhou uma circunferência com os 360.º, devidamente orientada e na qual se colocou um ponteiro giratório, tipo roleta de casino. Quando se ouvia um disparo de morteiro ou de canhão sem recuo, todo o pessoal corria para as valas e esperava para se ver qual dos Estacionamentos da zona era o eleito do dia. Confirmação que, regra geral, se conhecia passados 10 a 15 segundos, quando a granada chegava. Logo que se ouvia o rebentamento, ficava-se a saber quem estava a ser atacado, os militares dos outros Destacamentos podiam descansar. Para já... Nesta altura, o homem de serviço ao «satélite» de cada um dos Estacionamentos, virava o ponteiro para o ponto onde via os clarões dos disparos, lia o grau que ficava sob o ponteiro e, via rádio, informava-o para a sede do COP, em Cufar.
Em Cufar estava montada uma carta militar, com os pontos da localização dos bidões marcados. O graduado de serviço, ao receber as comunicações, escrevia uma linha sobre a carta a partir do ponto onde estava a marcação do bidão e rumo ao grau que lhe tinha sido transmitido. Duas ou mais linhas, com base em outras tantas comunicações, haviam de cruzar-se num ponto, o qual definia o local onde os Guerrilheiros estavam a efectuar os disparos. A partir deste conhecimento entravam em função os obuses. A actuação da Artilharia funcionava em tempo real e passados em média 5 minutos do primeiro disparo os Guerrilheiros tinham a resposta de volta. Pena era que as nossas disponibilidades em granadas fosse tão pouca, que raramente se podiam disparar mais do que 5 ou 6 granadas, que se não fossem imediatamente certeiras, não calavam os Guerrilheiros. Sem meios, tudo ficava dependente do valor humano e da criatividade. Quando aquele e esta faltavam, restavam os mortos e os feridos para contar.
O PAIGC continuava publicitando na rádio e através de panfletos, que a estrada de Cadique para Jemberém nunca seria concluída e enviou para o local o seu melhor bigrupo, o qual estava estacionado na base de Simbeli, na República da Guiné Conakry, comandado pelo mítico Malan Camará. A 12 de Fevereiro, de 1973, Spínola foi visitar o Aquartelamento de Cadique e Araújo e Sá determinaria uma operação às Cachambas. Foi incumbido da missão um bigrupo comandado pelo Tenente Sousa Bernardes e formado pelos 1.º e 2.º Pelotões. Era a primeira vez e foi a última que estes dois pelotões actuaram em conjunto no Cantanhez: iam-se medir forças com Malan Camará, considerado na altura o melhor Comandante da guerrilha que actuava no Sul da Guiné, pelo que se juntou o melhor Oficial e o melhor Sargento — esperava-se o resultado, que iria ser decisivo, para a construção da estrada. Devido a informações da população os Guerrilheiros conheciam todos os movimentos dos militares portugueses e esperaram-nos à entrada da mata, que consideravam de sua posse exclusiva.
Nessa entrada que é um estreito, os Pára-Quedistas foram atacados por um enxame de abelhas que puseram as tropas em alvoroço. O Alferes Saraiva aproximou-se de mim, que ia como habitualmente em 3.º lugar, e disse-me: “Rebocho alarga o passo que há abelhas à retaguarda”. Virei-me ligeiramente sobre a esquerda, mas continuando a andar e disse-lhe: “não posso que o combate deve estar mesmo a começar”. O Alferes respondeu-me: “é pá eu tenho mais medo das abelhas que dos turras”. Não tomei em conta os receios do Alferes nem tive tempo, pois ao virar-me de novo para a frente, uma rajada de metralhadora passou rente à minha cabeça, disparada de baixo para cima. Um tiroteio invulgarmente violento surgiu então de todos os lados.
O Guerrilheiro que certamente me apontava a arma, mexeu-se ligeiramente quando eu me virei, gesto premonitório e para mim salvador. A agressividade dos Guerrilheiros que usaram balas tracejantes, as quais possuem um efeito letal muito superior às balas normais, ao colocarem-se muito perto de nós e com um numeroso efectivo, também lhes foi fatal: as balas deixavam um rasto que me permitia ver a sua trajectória; logo, permitiram-me conhecer, numa fracção de escassos segundos, quantos eram, onde estavam, para onde estavam virados e com que armas disparavam, pelo que não conseguiram retirar-se quando disso tiveram necessidade. Em poucos segundos dei todas as ordens de posição, de direcção e de cadência, a cada um dos dois homens (Álvaro e Ferreira) que, como eu, se viam cercados dos traços feitos pelas balas dos Guerrilheiros: O Ferreira só podia disparar para a frente, em rajadas curtas, para não encravar a arma nem esgotar as munições e não se devia preocupar com os «turras» que estavam a disparar à sua esquerda e à sua direita; o Álvaro teve que se virar e disparar sobre a direita do baga-baga para impedir que os Guerrilheiros que ali estavam me atingissem a mim e ao Ferreira; eu disparei sobre os homens que estavam disparando nas costas do Álvaro, equilibrando a situação entre nós e eles. Venceria quem tivesse mais serenidade ou, como defendeu Clausewitz, maior presença de espírito. Fomos nós.
Contra todas as técnicas e teorias, a melhor protecção para cada um de nós, foi a falta de protecção, que nos permitiu movimentarmo-nos com facilidade em todas as direcções, embora fôssemos atacados por todos os lados. A situação estava equilibrada, mas ameaçava ruir a nosso desfavor. Nós tínhamos apenas três armas a disparar e os Guerrilheiros eram no mínimo dez a fazer fogo contra nós os três. Era a velha técnica dos primeiros três ou cinco homens: o primeiro foi mortalmente atingido e o quinto gravemente ferido; só restavam três homens para disparar. Seguramente, o Sargento tinha que ser sempre o terceiro homem da coluna, caso contrário já não comandava nada e os Soldados ficavam a combater sem comando.
Pedi o disparo de um RPG sobre o lado esquerdo do baga-baga. Mas esta arma manuseada pelo Soldado Solinho avariou e os segundos passavam. O Bernardino, excelente Soldado e camarada solidário, que embora seguisse numa posição mais recuada da coluna, onde estava livre de ser alvejado, ao ouvir os meus repetidos pedidos de disparo do RPG sobre a esquerda do baga-baga, veio à frente efectuar o citado disparo, não de RPG, que o não tinha, mas de Sneb, uma arma menos potente, mas que, na circunstância, produziu os mesmos efeitos. O disparo, nas condições em que eu o estava a definir, era duma extrema complexidade. A granada tinha que rebentar na retaguarda do baga-baga, porque se fosse de frente não tinha qualquer efeito. Para que a granada rebentasse sobre os Guerrilheiros, o operador tinha que se expor, e muito.
O Cabo Gonçalves, que manuseava uma metralhadora e também estava numa posição onde não era passível de ser alvejado, desenrolou a fita de balas, que tinha à volta da cintura, suportou-a sobre o braço esquerdo, avançou mais de dez metros e, numa rajada contínua e prolongada, deu cobertura ao Bernardino que, surgindo sobre o lado esquerdo do baga-baga, disparou a granada do Sneb directamente sobre o comando da guerrilha. Os Guerrilheiros cessaram o fogo instantaneamente.
Foram estes os Soldados anónimos que fizeram a Guerra de África, que fazem as grandezas dos exércitos, particularmente numa guerra de guerrilha, onde a técnica não é mais de que rudimentar e onde a coragem e a criatividade constituem os suportes de toda a actividade operacional. Os seus actos de coragem e solidariedade nada devem à formação técnico-táctica, são características inatas do foro psicofisiológico que se elevam com a experiência e com o ambiente de camaradagem que se instala numa unidade militar de combate.
Mesmo o rigor da minha posição, das minhas ordens e dos meus 4 camaradas, que comigo fizeram fogo, bem como o facto de dois homens nossos se estarem a movimentar para a frente das nossas balas, nada tem de técnico, não se aprende isso em lado nenhum; é apenas uma questão de serenidade, lealdade de todos para com todos, criatividade e disponibilidade para o risco. Quem diz que isto se aprende, está apenas a querer ensinar o que não sabe e a garantir o seu emprego. Houve aqui, também, a confiança no homem que estava a dar as ordens, mas esta confiança vinha de outros combates anteriores, da experiência, nada fora aprendido nos bancos da formação.
Como afirma Mira Vaz, que sabe o que diz, os Soldados cumprem as ordens na frente de combate, quando confiam no graduado que as dá e, sem as reflectirem, consideram que são as melhores.
Sobre a influência da formação dos Pára-Quedistas para o desempenho naquele combate, há a considerar que nesta primeira fase do combate actuaram cinco homens, o número fatal. Dois destes homens actuaram com metralhadoras que não eram utilizadas na instrução e um com LGF que nem era conhecido na Metrópole. As decisões, todas improvisadas e criativas, violaram as regras doutrinárias que, na circunstância, aconselhavam a retirada, tendo-se feito precisamente o contrário. Se retirasse, teria lá ficado o corpo do «meu» primeiro homem, que faleceu pouco depois, e o Alferes que estava gravemente ferido. Decidindo-me por resistir, salvou-se tudo o que não foi atingido nos primeiros tiros e capturou-se Malan Camará.
O combate foi tão violento que se acabaram os combates nas Cachambas, com a retirada definitiva dos Guerrilheiros daquela zona. Nada do que se fez naquele dia se ensinava nas aulas técnico-tácticas. Ali estiveram as capacidades humanas e a experiência. Morreu-me o «meu» segundo homem, Elias Isidro Picanço Azinheirinha.
Numa segunda fase dos combates, que se reacenderam uns cinco minutos depois, uma vez que os Guerrilheiros não queriam perder o seu Comandante, teve particular relevo o Furriel Cerqueira, que comandou toda a acção a partir da frente. O Cerqueira era miliciano, mas isso não se notou no seu desempenho, evidenciando, mais uma vez, que a formação técnico-táctica não tinha ali qualquer relevo.
Os combates que se seguiram, para podermos ocupar o baga-baga atrás do qual estava o posto de comando dos Guerrilheiros e o próprio Malan Camará, foram duros e comandados pelo Cerqueira, que seguiu pela esquerda. Eu estava a menos de 10 metros, e descaído para a direita; cercámos o baga-baga, mas não fiz fogo porque tinha homens meus na linha de tiro. Nestes momentos, em que as tropas se galvanizam por acção dos seus comandantes, é necessário exercer-se um controlo ainda mais rigoroso, para evitar que nos alvejemos uns aos outros. O baga-baga foi tomado e Malan Camará capturado.
Logo que o primeiro momento de tiros cessou, recuei um pouco para dar instruções aos Soldados que estavam mais perto, no sentido de constituir uma espécie de semicírculo à volta dos feridos e reforçar a nossa posição, pois um certo sexto sentido me dizia que os combates iam recomeçar. Mal dei alguns passos o Tenente Sousa Bernardes já estava junto a mim, o que significa que avançou ainda no momento do fogo cerrado.
Sousa Bernardes disse-me: “eles vão contra-atacar, temos que tomar a iniciativa”. Concordei com ele visto, aliás, ser essa já a minha opinião. Em escassos segundos acordámos a táctica a seguir, que Sousa Bernardes propôs. A táctica era elementar e também não se aprende em lado nenhum, mas exigia uma entrega absoluta e uma exposição total. Enquanto eu comandava as evacuações, protegia os feridos e garantia segurança aos meios aéreos, o Tenente avançava na perseguição dos Guerrilheiros, arrastando com esse acto os combates para o lado contrário do ponto onde os helicópteros tinham que aterrar.
Nesta táctica e momento pouco comum da Guerra que travámos, nas três frentes africanas, Sousa Bernardes também seguiu na frente do pessoal, enquanto o seu Sargento do Quadro fingiu não perceber a ordem e não o acompanhou, ficando colado ao meu último homem. Um acto que, para além de desleal, permitiu ordenar os combatentes numa escala de valores. Nenhum destes actos se fundamentou na formação técnico-táctica, mas sim nas capacidades pessoais dos combatentes e na experiência, sobretudo no conhecimento e na confiança que os homens depositam uns nos outros. O comportamento deste Sargento não foi considerado no relatório final, por iniciativa de Sousa Bernardes, pois, sendo o Sargento do seu Pelotão, a ele caberia a iniciativa.
Ao contrário, o Alferes Fernando Pires Saraiva teve uma atitude de muita dignidade. Durante o espaço de tempo entre a primeira e a segunda fase dos combates, alterei a posição de quase todos os homens do Pelotão, com instruções muito rápidas que não podiam ser discutidas nem explicadas. Não havia tempo. Uma das ordens inevitáveis foi a chamada de “todos os enfermeiros à frente”, o que aconteceu enquanto dei outras instruções e falei com o Cerqueira e com Sousa Bernardes; ao voltar para a frente verifiquei que o nosso melhor enfermeiro, 1.º Cabo Filipe, estava a tratar o Alferes e disse-lhe: “deixa lá o nosso Alferes e vai tratar o Azinheirinha, cujo ferimento é mais grave”; o Filipe ficou surpreendido e olhou para o Alferes que lhe disse: “faz lá o que o nosso Furriel te está a dizer, vai tratar o Azinheirinha”.
É nestes momentos que os homens se diferenciam, porque nas outras componentes da Guerra, como a descascar camarão, todos somos habilidosos e constituiu, em muitos casos a única experiência que alguns militares adquiriram na Guerra.
Nada do que se fez neste combate tinha sido aprendido antecipadamente, tudo se improvisou. Ali esteve a criatividade, a liderança e a assunção do risco pelos graduados que motivaram os Soldados. Mas também ficou claro que todas estas qualidades, a que devemos acrescentar a honra e a dignidade, não são exclusividade de uma ou de outra classe militar: todas as classes têm homens com estas qualidades e todas têm homens a quem elas faltam. Para utilizar uma frase habitual nos grupos militares, não é o posto que faz as qualidades, mas as qualidades que devem fazer o posto. O que determina que um Oficial sem as qualidades, ou pelo menos sem as principais, leve à criação da citada dupla hierarquia porque os problemas que surgem na guerra têm que ser resolvidos a bem de todos. Se o Oficial os não resolve, resolve-os o Sargento, que passa a líder informal, aquele que influenciará as decisões futuras.
Spínola, que acompanhou toda a comunicação rádio deslocou-se ao local onde nos cumprimentou. Malan Camará foi evacuado para o hospital, revelando-se o humanismo destes Pára-Quedistas. O Comandante do BCP 12 e do COP 4, Tenente-Coronel Araújo e Sá, escreveu o seguinte no seu relatório: “o bigrupo da CCP 123 empenhado reagiu da melhor forma à forte emboscada que lhe foi movida por numeroso e bem armado grupo inimigo. Devido à pronta reacção das nossas tropas e à inteligente manobra desenvolvida, o inimigo retirou com elevadas baixas e sendo capturado um Guerrilheiro ferido e diverso material de importância; veio a verificar-se que o Guerrilheiro capturado se tratava de Malan Camará, comandante de bigrupo anteriormente referenciado em Simbeli; o que torna esta captura extremamente valiosa, e justifica o facto do grupo inimigo ter oferecido prolongada resistência e apenas ter retirado face ao envolvimento que lhe foi movido”.
Após este comportamento operacional, a minha liderança informal tornou-se uma situação normal. Sousa Bernardes recolheu, de toda a Companhia, elevados reconhecimentos da sua capacidade e do seu valor, mas não podia assumir posições de liderança, para além do seu próprio Pelotão porque, se assim fosse, colidia com a posição do Capitão e um deles tinha que sair. Sousa Bernardes adquiriu então um grande prestígio junto dos homens da Companhia, que viram nele um comandante em quem podiam confiar, mas como ele não podia enfrentar nem afrontar o Capitão, não pôde assumir qualquer liderança.
Os homens de Sousa Bernardes construindo um abrigo em Cadique. Como se pode verificar, Sousa Bernardes, assinalado com um círculo, está entre os seus homens trajando de forma natural, descontraída e à vontade como eles, marcando e definindo uma relação de proximidade tão determinante numa guerra, sobretudo com as especificidades da Guerra que enfrentámos.
Fotografia de Leite Bica
NOTAS do texto:
(1) Chefe da povoação.
(2) «Baga-baga» é o nome dado na Guiné às formigas térmitas ou salalé; estas formigas constroem ninhos de argila compacta que chegam a atingir mais de 10 metros de altura e a pesar várias toneladas.
(3) Em entrevista, no dia 05/06/2001, no âmbito da presente investigação.
(continua)
Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados
Sem comentários:
Enviar um comentário