domingo, 29 de agosto de 2010

M249 - Manuel Godinho Rebocho -“AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, Um Pára-Quedista Operacional da CCP123 do BCP12 - Guiné - XV


ATENÇÃO: Esta mensagem é a continuação das mensagens M233 a M244, M246 e M248. Para um correcto seguimento de leitura da sequência da narração, aconselha-se a iniciar na mensagem M234, depois a M235… M236... M237… etc.



Manuel Godinho Rebocho2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12 (Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123 do Batalhão Caçadores Pára-quedistas 12)
Bissalanca/Guiné
1972 a 1974

O Dr. Manuel Godinho Rebocho é hoje Sargento-Mor na reserva e foi 2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, escreveu um excelente livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, sobre as suas guerras em África (uma comissão em Angola e outra na Guiné combatendo por Portugal) e a sua análise ao longo dos últimos anos, de que resultou esta tese do seu doutoramento.


Nesta mensagem continua-se a publicação de alguns extractos do seu livro, já iniciadas nas mensagens M233 a M244, M246 e M248:
III – A GUERRA DE ÁFRICA E O DESEMPENHO DAS ELITES MILITARES
(continuação)

c) Gadamael Porto 


A desgraça de Gadamael, com 34 mortos (1) e 150 feridos, foi efectivamente um acto de guerra, provocado pela acção da guerrilha, mas indiscutivelmente facilitada pela falta de comando e de capacidade de comando. “Spínola irradiara já, por atribuída incompetência, alguns oficiais superiores e capitães das suas funções de comando” (Carvalho, 1977: 65), mas quando a guerra apertou não segurou os fugitivos, que foram à procura da democracia.
O drama de Guileje, de Gadamael Porto e de todos os Destacamentos que durante a Guerra se foram abrindo e fechando ao longo do corredor de Guileje e de todos os caminhos que a ele conduziam era tão antigo como a própria Guerra. Com efeito, este corredor era vital para que a guerrilha alimentasse os seus operacionais que actuavam em todo o Sul da Guiné. A relevância do caminho, conjugada com a proximidade da fronteira com a Guiné Conakry, onde os Guerrilheiros se movimentavam livremente, determinava os constantes ataques de que estes Estacionamentos eram alvo.
Para protecção das tropas foram construídos, em Guileje, vários abrigos subterrâneos com resistência para suportarem o rebentamento de granadas de morteiro 120. Os ataques não eram novidade, como se vê, mas a capacidade de resistência era elevada, devido às condições de defesa que ali tinham sido construídas.
Guileje constituía, assim, uma espécie de lança cravada num corredor vital para a guerrilha. As tropas que ali estivessem seriam sempre, como foram, fortemente massacradas, o que não significa que tivessem muitas baixas, conquanto as condições de vida fossem sempre muito degradantes.
Em Janeiro de 1973, Spínola criou naquela zona um COP com responsabilidades em toda a área compreendida entre o rio Cacine e a fronteira com a Guiné Conakry ver mapa 1, na página 263. Os efectivos militares neste espaço eram os seguintes:
Em Cacine estavam a Companhia de Caçadores n.º 3520 e uma Companhia de Milícias;
Em Gadamael Porto estavam igualmente 2 Companhias: uma de Caçadores, a 4743; e uma de Milícias. E ainda 2 Pelotões independentes: um de Reconhecimento, o 3115; e um de Canhões, o 4174;

Vista parcial do Aquartelamento de Guileje, vendo-se no canto inferior esquerdo da fotografia, a entrada para um abrigo subterrâneo onde estavam inscritas as coordenadas dos pontos mais importantes para a Artilharia.
Fotografia de Carlos Santos

Entrada para um abrigo subterrâneo em Guileje.
Fotografia de Carlos Santos

Abrigo subterrâneo em Guileje. Este abrigo resistia ao rebentamento das granadas de todas as armas de que os Guerrilheiros dispunham. Os abrigos tinham capacidade para instalar cerca de 40 homens.
Fotografia de Carlos Santos

Valas abertas em toda a periferia do Aquartelamento de Guileje, onde os militares se colocavam em posição de defesa para deter eventuais ataques dos Guerrilheiros. Estas valas estendiam-se até à entrada dos abrigos subterrâneos.
Fotografia de Carlos Santos
Em Guileje estava uma Companhia de Cavalaria, a 8350; um Pelotão de Artilharia, um Pelotão de Milícias e uma Secção de auto-metralhadoras Fox (EME, B, 3.º e 7.º Volumes, 1988. Os elementos constantes nestas publicações foram corrigidos a partir de erratas publicadas posteriormente em EME, 2002).
Por mais que o queira evitar, não é possível deixar de reconhecer a extrema debilidade de organização e comando que tinham estas tropas. Para um efectivo de cinco Companhias, quatro Pelotões independentes e mais uma Secção; ou seja, para seis Companhias, o que corresponde a um efectivo de um Batalhão reforçado, existia apenas um Oficial de carreira, Major Alexandre Costa Coutinho e Lima.
Mas estes quadros existiam, só que estavam no «conforto» de Bissau, com as mulheres e os filhos. Ouvimos, no nosso dia-a-dia, muitos militares dizerem que estiveram na Guiné, mas falta sempre saber onde é que de facto estiveram. Os Soldados e os Milicianos estiveram na guerra, mas os Oficiais de carreira foi como se vê – estiveram em África – o que não é a mesma coisa, nem pode ter o mesmo significado.
Contrariamente aos outros COP’s que estavam colocados em locais mais recuados, das frentes de combate, este tinha a sua sede em Guileje, no ponto mais agudo de toda a área por ele controlada. Ao aprofundar a razão para tão estranha táctica, fui informado pelo então Comandante do COP, Coronel Alexandre Coutinho e Lima, que fora Spínola quem lhe ordenara que se instalasse em Guileje, reconhecendo o próprio Coutinho e Lima, que se tinha tratado de um erro, cuja motivação tinha por base um «castigo», já que o então Major Coutinho e Lima se teria desentendido com o Coronel que na altura o comandava (2).
Mas o Major “responde” a Spínola com igual agressividade e determina a retirada de Guileje de todas as peças de Artilharia que guarneciam este Destacamento. Sem estas armas, que asseguravam a sua defesa, Guileje ficou totalmente exposto aos ataques da Guerrilha. Tanto mais que estávamos num momento em que a aviação praticamente não levantava, sobretudo para aquela região, onde, como se disse, fora abatido o primeiro avião.
Ao longo das múltiplas entrevistas que mantive com elevado número de militares que estiveram em Guileje Oficiais e Furriéis milicianos e Praças pude formar a convicção de que estas peças de Artilharia, manuseadas com uma eficiência superior, por dois Oficiais milicianos, garantiam total segurança a Guileje segundo um princípio de “toma lá dá cá”, ou seja, se os Guerrilheiros atacavam Guileje, os referidos dois Oficiais milicianos colocavam algumas granadas da sua Artilharia, na base de Candiafara, situada na República da Guiné Conakry, com o que faziam “calar” o ataque. Situação que se prolongou por oito meses. 


Peça de Artilharia 11,4 instalada no Aquartelamento de Guileje. Vendo-se ainda parte do Destacamento.
Fotografia de Carlos Santos
Peça de Artilharia 11,4 instalada no Aquartelamento de Guileje direccionada para Candiafara, cujos Guerrilheiros colocava em respeito.
Fotografia de Carlos Santos
A perícia e valor destes dois Oficiais milicianos, o próprio Comandante da Companhia Capitão miliciano Abel dos Santos Quelhas Quintas e o Alferes de Artilharia não só calava os ataques da Guerrilha, como assegurava protecção às tropas quando patrulhavam a zona até à fronteira e quando acompanhavam as colunas de abastecimento ou iam à água. Com a retirada das peças de Artilharia veia a derrocada.

Poço onde a Companhia colocada em Guileje se abastecia de água. Nos primeiros meses de 1973 as deslocações ao poço eram tranquilas, como se vê. Deslocações que pouco depois se tornaram proibitivas.
Fotografia de José Carvalho


Peça de Artilharia 11,4 que, depois de retirada de Guileje, permanecia mais ou menos abandonada em Gadamael.
Fotografia de José Carvalho


Morteiro 10,7 em Guileje. Como se vê, está colocado num buraco guarnecido em alvenaria. A proximidade da porta do abrigo revela-nos o quanto a segurança deste Destacamento foi devidamente concebida e preparada. Em volta do espaldão vêem-se referências úteis para direccionar as granadas.
Fotografia de José Carvalho


Vista parcial do Aquartelamento de Guileje, onde o General Spínola se deslocara em visita de inspecção. A maior das amarguras pode trazer um rasgo de felicidade, quando a criatividade a isso nos conduzir. Os homens de Guileje tiveram vontade e gosto para construir um “tapete”, com garrafas de cerveja, desde o bar até ao heliporto.
Fotografia de Carlos Santos


O General Spínola, Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, noutro ponto da sua visita de inspecção ao aquartelamento de Guileje, tendo à sua direita o Major Coutinho e Lima e à sua esquerda o Capitão Quelhas Quintas.
Fotografia de Carlos Santos
Nesta sua inspecção a Guileje, em 10 de Maio de 1973, cuja presença de Coutinho e Lima, Spínola impusera, o Comandante-chefe garantiu aos homens de Guileje que não lhe faltaria com o apoio, garantia que, tudo o indica, não os convenceu. Mas Spínola cumpriu a sua palavra, só que não lhe deram tempo, como se verá a seguir.
A 19 de Maio a guerrilha bombardeou Guileje, que já não pode responder por falta das peças de Artilharia (3), e o Major pediu para ir a Bissau, o que não lhe permitiram, partindo então no dia seguinte para Cacine, e assim ir a Bissau. Coutinho Lima regressou a Cacine a 21 de Maio, dia em que a guerrilha efectuaria novo e violento ataque a Guileje. Não houve vítimas, graças aos resistentes abrigos subterrâneos, “mas as condições de vida no interior do aquartelamento eram difíceis: a população fugiu da mata, refugiou-se no quartel e os abrigos estavam à pinha” (Catarino, 22/12/2002).
A frase que transcrevo, ou o facto que ela relata, revela um total desconhecimento da realidade, por parte de quem comandava aquela tropa. Como referi, nas situações de Cadique e de Caboxanque, as populações não eram atacadas pela guerrilha, desde logo, não havia a mínima justificação para que procurassem refúgio no quartel.
Não custa a crer que a população participou de uma manobra da própria guerra: os Guerrilheiros sabiam qual o resultado dos abrigos sobrelotados, eles próprios tinham abrigos para se defenderem dos ataques da nossa aviação e terão sido eles mesmos a mandar a população para o Aquartelamento, certamente porque já conheciam a lógica do comando. Estive, uma vez, num abrigo durante um ataque e embora estivéssemos lá poucos homens, rapidamente começou a faltar o ar para se poder respirar.
Nestes casos, não há conhecimentos técnicos, nem valor humano, que nos valham: aqui conta a experiência, que só se obtém com a rotina ou, como diz o povo, «com o traquejo». Inequivocamente, a elite só existe de facto e com capacidade para enfrentar as grandes dificuldades, quando se encontra a bons níveis dos três pressupostos iniciais: técnico-táctica, qualidades pessoais e experiência.
Em 21 de Maio, Coutinho e Lima encontrou-se com Spínola, em Bissau. Segundo o próprio, o encontro decorreu no Gabinete de Spínola, mas segundo outras fontes, que admito estejam erradas, o encontro deu-se no Clube de Oficiais. Fosse onde fosse, Spínola ordenou a Coutinho e Lima que regressasse a Guileje, mas na condição de Segundo Comandante do COP, para cujo Comando ia nomear, como nomeou, um Coronel, nomeação que recaiu sobre o Coronel Pára-Quedista Rafael Ferreira Durão.
Segundo Coutinho e Lima “foram-me levar de avião até Cacine, fui depois de barco até Gadamael e daqui, a pé até Guileje” (4) numa extensão de 19 km, onde chegou já de noite. De Gadamael para Guileje, o Major foi acompanhado por dois Pelotões da Companhia que estava sedeada em Gadamael, sob o comando do respectivo Comandante de Companhia, um Capitão miliciano.
Compreende-se o estado de espírito de Coutinho e Lima que se sentia humilhado por Spínola, quando lhe impôs que se mantivesse em Guileje, que constituía um tipo de Aquartelamento onde não havia qualquer Oficial de carreira. Assim, às primeiras horas do dia seguinte, 22 de Maio de 1973, o Major Coutinho e Lima decidiu abandonar o quartel, o que aconteceu cerca das 6 horas da manhã. Em Guileje ficou tudo o que os militares não puderam carregar às suas “costas”, pois o abandono foi efectuado a pé ao longo dos 19 km que separam Guileje de Gadamael. Além dos militares, cerca de 200, também a população, 317 pessoas, incluindo crianças e idosos, efectuaram este mesmo percurso. Refira-se que além de muitos bens pessoais, tanto de militares como de civis, ficaram no terreno um camião Mercedes, quatro berliets, três unimogs 404, um unimog 411, um veículo de Cavalaria Fox, dois Whites e diverso armamento pesado e ligeiro.

Picada Guileje-Gadamael, numa extensão de cerca de 19 km.
Fotografia de Carlos Santos

Os militares de Guileje, cerca de 200, preparam-se para abandonar o Destacamento, na manhã do dia 22 de Maio de 1973.
Fotografia de Carlos Santos

Militares e populares, estes em número de 317, abandonando Guileje transportando os seus haveres. Que podem e como podem.
Fotografia de Carlos Santos

Caminhando pelo trilho da população, que os levará a Gadamael, os militares portugueses olham nostálgicos, para o seguro aquartelamento de Guileje, parecendo eivados de premunição sobre a “tragédia” que os esperava no fim do trilho.
Fotografia de Carlos Santos

Os mesmos portugueses (militares e civis) que tinham abandonado Guileje, fugiram de Gadamael, na sequência dos fortes bombardeamentos a este Destacamento, no dia 30 de Maio de 1973. Dispersos pelo tarrafo, deste braço do rio Cacine, suplicavam socorro, que lhe foi prestado pela Marinha, em cumprimento de instruções que lhe foram dadas pelo Comandante do Subsector de Cacine, Capitão de Cavalaria Manuel Soares Monge, e impostas pelo Capitão Pára-Quedista Sousa Bernardes ao Comandante da LDM, que hesitava no seu cumprimento. Muito se tem especulado sobre quem decidiu esta evacuação, ou este apoio, mas os factos, comprovados por mim, que a eles assisti, aqui ficam.
Fotografia de Delgadinho Rodrigues
O comportamento de Coutinho Lima sugere-me a seguinte frase «vou-me embora que isto não é meu; venha para cá, quem para cá me mandou». No entanto, esta atitude, mal ponderada, trouxe consequências gravíssimas: o efectivo militar em Gadamael, para onde se retiraram os militares de Guileje, aumentou assustadoramente. Neste aquartelamento havia apenas um abrigo com resistência à granada do morteiro 120, não havendo quaisquer outros abrigos para protecção do pessoal. Os Guerrilheiros podiam, agora, transferir as suas bases de fogos para atacarem Gadamael, passaram a estar muito mais seguros sem o ataque da Artilharia de Guileje, além de se ter perdido um dos pontos para referenciar os locais onde as bases guerrilheiras se encontravam.
Para além destas questões de natureza técnica, havia o incentivo ao bombardeamento de Gadamael e outros aconteceriam sucessivamente se as tropas continuassem a recuar. O recuo militar não é uma derrota, nem um erro, desde que seja ponderado, ajustado à situação e a manobra futura devidamente acautelada. Nada disto aconteceu e os resultados foram 34 mortos e 150 feridos. Mais uma vez o comando militar não esteve à altura dos acontecimentos: os factos não são motivo de orgulho profissional do nosso corpo de elites. Neste caso parece que faltou tudo: técnica, capacidade pessoal e experiência, mas estávamos em Guerra havia 13 anos, então, faltou também doutrina de gestão de pessoal.

A população de Guileje, não sendo aceite pela população de Gadamael, por serem chãos diferentes (no sentido de etnias) embarcou num navio Patrulha (depois de recuperados pela LDM) que a levaria para Bissau, onde desembarcou.
Fotografia de Delgadinho Rodrigues
A posição de Coutinho e Lima não tem, nem pode ter, a mínima justificação no campo militar. Compreende-se o seu estado de espírito, que terá motivado tão invulgar decisão, porquanto, se nenhum outro Oficial de carreira estava colocado a sul do rio Cacine, por que razão haveria ele de lá estar? Naturalmente que Coutinho e Lima, não previu o desastre que a sua atitude iria provocar, desde logo, não pode ser condenada no campo da moral, conquanto a especulação sobre a doutrina militar seja legítima.
Em várias reportagens sobre o assunto, os homens que estiveram em Guileje queixam-se de não terem sido apoiados pelas tropas especiais. Têm razão, mas não toda, pois já vimos que estas tropas estavam empenhadas noutros locais que o Comando Chefe considerou prioritários e talvez o fossem.
Numa “corrida contra o tempo”, mas, seguramente a tempo, em 21 de Maio de 1973, ao mandar Coutinho e Lima de volta para Guileje, Spínola ordenou que uma LDG navegasse para Cadique onde deveria embarcar a CCP 123, transportando-a para Gadamael, de onde seguiria a pé para Guileje. Simultaneamente, ordena à CCP123 que prepare o embarque e a consequente deslocação. Dois dos Pelotões de combate desta Companhia, o 2.º e o 4.º, formando bigrupo, sob o comando do Tenente Sousa Bernardes, estavam nesse dia deslocados em Jemberém. Este bigrupo recebeu então ordens para se deslocar para Cadique, o que fez durante a noite de 21 para 22 de Maio. Com esta ordem Spínola cumpria a promessa que fizera aos homens de Guileje de que os não abandonaria.
Nessa manhã de 22 de Maio de 1973, com meia CCP 123 já embarcada, na referida LDG, recebeu-se a informação de que Guileje fora abandonado, não se justificando então, segundo o Estado-Maior, por fora de tempo, qualquer apoio a Guileje, e o embarque foi interrompido e pouco depois anulado, continuando a Companhia de Páras em Cadique.
Pela extrema delicadeza desta ocorrência táctica, não escrevi os dois parágrafos anteriores sem que antes os confirmasse com diversos militares que estiveram envolvidos na acção, já que os meus apontamentos e a minha memória só fazem prova perante mim próprio. Importa então tecer as seguintes considerações:
Coutinho e Lima garante que não fora informado, por Spínola, da transferência da Companhia de Pára-Quedistas para Guileje. Esta não informação, cuja veracidade não se pode confirmar, mas que aceito, face aos muitos diálogos que mantive sobre a mesma, revela o que venho acentuando, uma manifesta desarticulação do Estado-Maior.
A suspensão do embarque revela uma confrangedora imaturidade de combate do Estado-Maior, já que, seguramente, nenhum livro de táctica afirma que os Guerrilheiros iriam atacar Gadamael após o abandono de Guileje, isso teria que ser intuído pelo Estado-Maior, para o que era imprescindível a consequente experiência de combate e do comportamento da Guerrilha, o que devido à doutrina de retirada dos Oficiais do QP das zonas de combate, não lhe permitiu possuírem.
Sem qualquer pressão das nossas tropas os Guerrilheiros deslocaram as bases de fogos, das posições de ataque a Guileje e instalaram-nas de modo a atacar Gadamael.
Em 31 de Maio de 1973, os Guerrilheiros do PAIGC lançaram sobre Gadamael um ataque devastador que causou pesadas baixas e grandes destruições no Aquartelamento, ou seja, deslocaram as suas bases de fogos o suficiente para atingirem o quartel que se seguia ao de Guileje. Se não fossem travados, executariam então o tal ataque em «tenaz» ou em «pinça» mas, como foram travados pelos Pára-Quedistas, ficaram-se pelo «alicate». A CCP 122, que se encontrava no seu Aquartelamento em Bissau seguiu de barco para Gadamael onde chegou no dia 3 de Junho. A CCP 123, que continuava em Cadique seguiu também para Gadamael Porto, na madrugada do dia 2 de Junho, a bordo do navio Patrulha Orion.
A meio da tarde, já no rio Cacine, quando passávamos junto ao cais da povoação com o mesmo nome, o Comandante do navio pediu ordens para as manobras de desembarque. Foi então que o Comando Chefe mandou suspender a manobra. Assisti ocasionalmente, à conversa entre o Comandante do navio e o Comandante da Companhia de Pára-Quedistas, já que estava junto deste último naquele momento.
Perante a continuação dos ataques a Gadamael, Spínola decidiu ir buscar o seu «amigo» Rafael Durão, que para ali mandara já depois de terminada a comissão. Foi o próprio Major-General quem me disse, com toda a riqueza de pormenores (5): “o Spínola disse-me, via rádio, venha para a parada que eu vou aí buscá-lo” e foi, contra a vontade de Durão, que considerou a aterragem do helicóptero um enorme perigo, mas Spínola era useiro a fazer este tipo de coisas. Mais uma vez, o risco foi excessivo e desnecessário, mas Spínola só fazia movimentar os helicópteros para o transportarem a ele próprio. A isto, chama-se quebra da cadeia de comando que, quando acontece, o Exército desmorona-se, como aconteceu.
Conjugando a conversa do Comandante do navio, no dia 2 de Junho de 1973, com a entrevista a Rafael Durão, conclui-se que, após a saída deste último, o pessoal que estava em Gadamael abandonou o Estacionamento e dispersou na mata. O Comando Chefe ficou indeciso sobre que atitude tomar, fazendo uma pausa para recolher melhores informações e determinando depois que o barco voltasse para trás e esperasse, já em pleno mar, por novas ordens.
Cerca da meia-noite foram emitidas novas instruções, segundo as quais a CCP 123 desembarcaria não em Gadamael, mas em Cacine. Compreende-se a manobra, que estava aliás correcta: havia falta de comando, mas nem sempre, também havia gente de muito valor. A questão era simples e o Comando Chefe «jogou» pela antecipação, ou seja, se a fuga de Guileje levou os bombardeamentos para Gadamael, então a fuga de Gadamael levaria os bombardeamentos para Cacine. Neste caso, ia-se já patrulhar a zona de Cacine enquanto Gadamael ficaria a aguardar. 


Vista geral do Aquartelamento de Gadamael antes dos ataques dos últimos dias de Maio e primeiros de Junho de 1973.
Fotografia de Carlos Santos
Contudo, o abandono de Gadamael não foi total, houve quem permanecesse no aquartelamento. Sem a certeza de rigor na afirmação, mas o que consta, é que os Pára-Quedistas quando ali chegaram apenas viram um Alferes miliciano, um Furriel miliciano e algumas Praças. Como o Destacamento não estava totalmente abandonado, a CCP 122 continuou a sua marcha e desembarcou mesmo no seu destino, no dia 3 de Junho e, com ela, o novo Comandante do COP 5, o Major Pára-Quedista António Valério Mascarenhas Pessoa. No entanto, “a sua presença em Gadamael foi, porém, efémera, pois cedendo à tensão nervosa teve de ser substituído” (CTP, Vol. IV, 1987: 224).

Operação de descarga de produtos, em Maio de 1973, no porto de Gadamael. Os rios constituíram sempre a melhor via para a circulação dos abastecimentos na Guiné, sobretudo nas regiões do sul.
Fotografia de José Carvalho


Neste edifício funcionava o centro de comunicações de Gadamael. Este edifício é o mesmo que está ao cimo e ao centro da fotografia anterior. Como se verifica desapareceu todo o telhado, o que ficou a dever-se ao rebentamento de uma granada, que provocou ainda a destruição de toda a aparelhagem e neutralizou as comunicações de e para Gadamael.
Fotografia de Delgadinho Rodrigues 


Efeitos do rebentamento de uma granada sobre a arrecadação dos géneros alimentícios da Companhia do Exército que estava colocada em Gadamael.
Fotografia de Costa Ferreira
Sobre este assunto e sobre Mascarenhas Pessoa, escreve o Tenente-Coronel Mensurado: “foi-lhe movido um auto de averiguações por cobardia, pelo seu comportamento em Gadamael, em que chegara a entrar em pânico, (...) Nessa altura, escreveu-me uma carta do hospital, do serviço de psiquiatria onde estava internado, sob a protecção médica, pedindo-me perdão e dizendo, entre outras coisas, que não teria nascido para militar, que estava completamente desmoralizado e que quereria ser professor de história” (Mensurado, 1993: 151). A ser assim, é o próprio Pessoa que coloca o «assento tónico» na vocação, que reconheceu não possuir. A sua vocação seria para Professor de História, mas foi para a tropa e os efeitos negativos ficaram à vista.
Mensurado também afirma, referindo-se a Mascarenhas Pessoa: “em 1965, o ainda Capitão tinha tido um comportamento operacional muito condenável, em Moçambique, no comando de uma companhia, quando, numa operação, no norte da província, mandara enterrar três páras abatidos em combate, na própria zona de operações. Fora mesmo necessário obrigá-lo a voltar para trás, à zona de acção, para recuperar da terra os corpos dos páras (...) Em 1969 no leste de Angola, no comando de outra companhia, por ter tido uma baixa numa operação, retrocedera com um grupo de combate para evacuar o ferido, e deixando a missão para os outros elementos da companhia” (Mensurado, 1993: 150).

Outra área de Gadamael onde se podem observar os efeitos dos rebentamentos das granadas, tanto nos telhados como no chão, disparadas pelos guerrilheiros.
Fotografia de Delgadinho Rodrigues
Esta última afirmação foi-me confirmada pelo Tenente-Coronel Pára-Quedista Melo de Carvalho (6), o qual, como Tenente, seguia nessa mesma operação que continuou depois sob o seu próprio comando.
De facto, havia pessoas no desempenho de funções bem acima das suas capacidades. Porém, e não obstante tudo isto, o Major Pessoa foi eleito delegado dos Oficiais Pára-Quedistas no Movimento das Forças Armadas, o que não pode deixar de significar que tinha seguidores no interior da sua classe e que o seu comportamento não seria tão singular quanto Mensurado o pretende fazer crer. Tanto mais, que embora com este passado, evoluiu normalmente na sua carreira e chegou a Coronel, o que Mensurado, um operacional de valor, não conseguiu.
Foi o Tenente-Coronel Pára-Quedista, Comandante do BCP 12, Araújo e Sá, também Comandante do COP 4 que, em 5 de Junho, recebeu ordem para se deslocar para Gadamael a fim de assumir o comando do COP 5. Nesse mesmo dia 5 de Junho o novo Comandante procedeu a um imediato estudo da situação, tendo em vista a reorganização das tropas aquarteladas em Gadamael e o estabelecimento de um plano de acção que contrariasse a manobra do inimigo.
“O comandante do COP 5, dando início à operação «Dinossauro Preto» e face à melindrosa situação em que se encontravam as forças sob o seu comando, não perdeu tempo em estabelecer um plano de manobra que se revelou extremamente profícuo. Ordenou a abertura de valas, a construção de abrigos e dispersou as suas tropas pelo perímetro defensivo do Aquartelamento, ocupando, também, toda a periferia dos reordenamentos” (CTP, Vol. IV, 1987: 224). Esta decisão de Araújo e Sá, relativamente a colocar as tropas junto das populações que o Exército tinha concentrado, a que se chamou reordenamentos, está absolutamente em concordância com a lógica da Guerra de África, já que era conhecido que a guerrilha não bombardeava uma posição militar que estivesse junto da população, porque um pequeno erro levaria a granada para cima das palhotas, onde viviam os familiares dos próprios Guerrilheiros.
Estes conhecimentos sobre a atitude da guerrilha, parecendo primários, não estiveram disponíveis em Guileje, a não ser que se queira assumir que houve intencionalidade quando se abriram os abrigos à população. Intencionalidade que aqui não assumo, mas não se pode rejeitar a existência de um inadmissível erro de comando. Estes comportamentos não se aprendem nas salas de aulas, tanto mais que cada etnia tinha o seu próprio comportamento; logo, só com a vivência se poderia aprender ou seja, através da experiência. Para além do conhecimento que o comando tem que ter da população, também é importante o conhecimento que os líderes da população e da guerrilha têm da capacidade e das atitudes possíveis desse Comandante.
Quanto é importante o valor humano na guerra de guerrilha! Basta ver o que um só Tenente-Coronel Pára-Quedista influenciou o rumo dos acontecimentos. É certo, e não o pretendo ignorar, que estiveram em presença muitas e valiosas tropas, mas também se tem que observar que não foi por acaso que, estando colocados na Guiné dezenas de Tenentes-Coronéis e Coronéis, Araújo e Sá, transite, com urgência, do COP 4 para o COP 5, continuando a comandar o BCP 12.
Por todos os feitos na Guiné, o Tenente-Coronel Pára-Quedista Sílvio Jorge Rendeiro de Araújo e Sá, foi condecorado com a medalha normalmente atribuída aos chefes de repartição. Foi preterido e sucessivamente ultrapassado na promoção a Coronel, por Oficiais de currículo muito inferior. Triste e magoado, humilhado pelo seu povo, contra quem nunca virou as suas tropas, nem utilizou a sua extraordinária competência, passou à reforma extraordinária em 23 de Julho de 1979.

NOTAS do texto:

(1) No artigo “Os Anos da Guerra Colonial”, publicado no Jornal 24 Horas fascículo 26, de 2002/12/22, diz-se que houve 24 mortos, mas também se afirma que “as primeiras descargas da artilharia fizeram 20 mortos”. Falta então considerar os 10 homens que, ao retirarem para a mata, foram mortos e cortados aos bocados, cujos restos mortais (os possíveis) foram recolhidos pela CCP 122. Não há completa unanimidade sobre estes números, os homens da Companhia que viera de Guileje sustentam que eram só seis, contudo, reconhecem que não lhes foi autorizado aproximarem-se da viatura onde estavam colocado os restos mortais, que foi possível recolher.
(2) Em entrevista, no âmbito da presente obra, no dia 4 de Junho de 2005.
(3) Questionei Coutinho e Lima sobre a razão que o levara a mandar retirar as Peças de Artilharia. Este respondeu-me que foi por falta de granadas, o que não corresponde à verdade, pois confirmei, com várias fontes, que havia cerca de 400 granadas.
(4) Em entrevista para a presente obra, em 4 de Junho de 2005, na cidade da Tocha.
(5) Em entrevista, no dia 05/03/2002, no âmbito da presente investigação.
(6) Em entrevista, no dia 14/05/2002, no âmbito da presente investigação.

(continua)
Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados

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