sexta-feira, 27 de abril de 2012

M442 – 38ª Companhia de Comandos – Uma lenda da Guerra do Ultramar: Gampará (Agosto a Dezembro de 1972): Nem só de guerra vive um militar (16)


Esta é a 16ª mensagem, continuação das mensagens M417, 418, M422, M423, M424, M425, M426, M427, M429, M432, M436, M437 e M439, onde se iniciou a publicação de algumas das memórias de guerra de Amílcar Mendes, Recordamos que estas mensagens também podem ser vistas no blogue: http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/

38ª Companhia de Comandos 

Uma lenda da Guerra do Ultramar 
Guiné – 1972/74 

Nem só de guerra vive um militar 


Guiné > Zona Leste > COP7 > Margem esquerda do RCorubal > Gampará > 1972 > "Nunca como aqui rapei fome" 



Guiné > Zona Leste > COP7 > Margem esquerda do Rio Corubal > Gampará > 1972 > "Em Gampará com o meu grande amigo Furriel Cmd Ludgero dos Santos Sequeira, a quem mais tarde na picada do Cufeu (outra vez) numa mina iria ficar às portas da morte, ficando quase cego até aos dias de hoje. Continuamos grandes amigos. Um abraço para ti, Sequeira!". 

(i) A cerveja de marca Mijo 

Em Gampará não existe gerador. As noites são mesmo noite e, tirando umas chamas improvisadas nas garrafas de Cristal, nada se vê. No arame farpado duplo, as sentinelas esfregam os olhos para tentar distinguir vultos junto ao arame farpado. Pendem do arame centenas de garrafas de cerveja vazias que são o último grito em tecnologia de alarme. Nesta terra do nada, nada há. Temos uns bidões vazios, fizemos umas caleiras em chapa para apanhar a água da chuva e é dessa água que enchemos os cantis e nos lavamos. 

A população beafada, embora seja muito hospitaleira, é muito ciosa das suas coisas e não abre mão dos animais, somos então obrigados a ir ao desenrasca até porque já atingimos a saturação dos petiscos de Gampará: cubos de marmelada com bianda, bacalhau liofilizado com bianda, chouriço intragável com bianda e tudo acompanhado por cerveja com temperatura ao nível do mijo... Dizia-se então em Gampará quando os hélis vinham trazer mantimentos, que vinham entregar cerveja marca Mijo. Assim se vive em Gampará! 

(ii) Feliz Natal e um Ano Novo cheio de 'propriedades'... 

Todas as noites e sempre à mesma hora, na ausência de música, ficamos entretidos a tentar contar as morteiradas que brindam o destacamento do Xime! Ficamos à espera quando acaba lá e os tubos sejam virados para o nosso lado... Nunca na Guiné atingi um estado de magreza igual. Nunca na Guiné as condições de vida foram tão miseráveis. 

Entramos no mês de Outubro e veio cá uma equipa da Emissora Nacional para gravar as mensagens de Natal para a nossa família. Não foi fácil. Todos íamos para um canto repetir vezes sem conta: Queridos Pais, irmão e irmãs e restante família, desejamos um Natal feliz e um Ano cheio de “propriedades”!... Esta última palavra era emendada mil vezes, que isto com os nervos e emoção não é fácil! 

E como a ladainha era igual para todos, só muito depois é que muitos se lembravam que só tinham irmão ou irmãs, mas isso não era problema. Estavam presentes as Senhoras do Movimento Nacional Feminino. Animavam-nos porque a meio da mensagem muitos desatavam a chorar. Uma das Senhoras era de uma simpatia sem igual (Só anos mais tarde soube que era a Cilinha!) 


(iii) O dia mais feliz: quando chegava a LDG com as 'meninas' de Bissau... 

Em Gampará um dia verdadeiramente feliz para os militares era quando chegava a LDG e vinham as meninas de Bissau trazidas pelo Patrão, e que tinham por missão aliviar o stress do pessoal. 

As meninas chegavam, instalavam-se numa tabanca, o pessoal passava pelo posto de enfermagem (?), recebia o sabão asséptico, o tubo da pomada para meter pelo coiso acima a seguir ao acto... Entretanto formava-se a bicha e trocavam-se larachas para matar o tempo, do tipo Quando chegar a minha vez com tanta gente, 'aquilo' parece o arco da Rua Augusta!. 

A seguir era rezar para que o “esquenta” não aparecesse... 

(iv) O nosso regresso a Bissau 

19 de Outubro de 1972. Soubemos hoje que metade da 38ª CCmds regressa amanhã e outra metade irá permanecer aqui a fim de dar o treino operacional à CCAÇ 4142 até 3 de Novembro de 1972. O meu Grupo de Combate será um dos que regressa. 

Gampará, com todas as privações, teve o mérito de reforçar ainda mais os laços de amizade e confiança da 38ª CCmds. Aprendemos na privação a dar valor às pequenas coisas que a vida nos dá. A amizade entre os praças, sargentos e oficiais é na 38ª CCmds visível a quem observa a Companhia de fora. Essa amizade irá reflectir-se em diversas ocasiões e irá levar a Companhia a muitos sucessos na actividade operacional. 

20 de Outubro de 1972. Pela MSG imediata 3831/c , a 38ª CCmds regressa a Bissau, donde segue para Mansoa para um período de descanso, ficando apenas a realizar segurança imediata ao Aquartelamento. (Esse período de descanso só durou três dias, logo a seguir correram connosco para Teixeira Pinto, de tão má memória para a 38ª CCmds) 

Um grande abraço para todos os ex-Combatentes. 
Amílcar Mendes 
1º Cabo Comando da 38ª CCmds 

Texto e fotos: © Amílcar Mendes (2006). Direitos reservados. 
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Palavras usadas no texto de origem crioula: 

Bianda = Comida, arroz, base da alimentação da população na época 


Tabanca =- Aldeia, morança, cubata, casa
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Do mesmo autor veja também as mensagens:


1ª Mensagem em 16 de Março de 2012 > 

2ª Mensagem em 18 de Março de 2012 > 

3ª Mensagem em 25 de Março de 2012 > 

4ª Mensagem em 25 de Março de 2012 > 

5ª Mensagem em 30 de Março de 2012 > 

6ª Mensagem em 31 de Março de 2012 > 

7ª Mensagem em 3 de Abril de 2012 > 

8ª Mensagem em 5 de Abril de 2012 > 
M427 – 38ª Companhia de Comandos – Uma lenda da Guerra do Ultramar: Soldado Comando Raimundo, natural da Azambuja, morto em Guidaje: Presente! (8)

9ª Mensagem em 8 de Abril de 2012 > 

10ª Mensagem em 12 de Abril de 2012 > 

11ª Mensagem em 15 de Abril de 2012 > 

12ª Mensagem em 17 de Abril de 2012 > 

13ª Mensagem em 19 de Abril de 2012 > 

14ª Mensagem em 22 de Abril de 2012 > 
M437 – 38ª Companhia de Comandos – Uma lenda da Guerra do Ultramar: Guidaje, Maio de 1973: Só na bolanha de Cufeu, contámos 15 cadáveres de camaradas nossos  (14)

15ª Mensagem em 24 de Abril de 2012 > 
M439 – 38ª Companhia de Comandos – Uma lenda da Guerra do Ultramar: Promessa de comando: vou retomar as minhas crónicas de guerra  (15) 

1 comentário:

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Caro amigo e ex. combatente Amílcar, não foram poucas as vezes que nós no Xime (1972) prestávamos apoio de fogo mediante vossa solicitação, através de "OBUS 10,5 cm", algumas vezes quando prestávamos apoio a vocês éramos atacados ao mesmo tempo, rapidamente tínhamos de mudar de estratégia. Era assim a vida, no Xime e Gampará ora embrulhas tu ora embrulho eu. Ouvíamos sempre quando vocês eram atacados.
Nota: "Embrulhar" quer dizer quando eramos atacados pelo PAIGC